O que a música popular revela sobre a campanha do PS e o estado da política portuguesa
Ilustração Tiago Pereira Santos
As músicas que o PS toca no início dos seus comícios fazem mais do que aquecer a noite e animar as hostes: com letras aparentemente inócuas, dizem coisas importantes sobre este momento da política portuguesa
Uma das inovações do PS nesta campanha eleitoral é a presença de um DJ em palco. Antes de começar cada comício, o DJ Lex (aka, Francisco Oliveira, um universitário de Braga, de 19 anos) anima as gentes com sucessos populares. Uma playlist... digamos... eclética, que mistura funk brasileiro, reggaeton, sertanejo e puro pimba.
O espectador desatento pode julgar que aquilo é só o que parece: campanha-eleitoral-meets-baile-da-aldeia. Mas o ouvido treinado não deixa escapar a pertinência política das escolhas musicais. Também há a música oficial da campanha, que cria o crescendo de expectativa quando António Costa chega ao local e entra em palco - é o tema da banda sonora de "Momentos de Glória", de Vangelis (bocejo...). Mas não é disso que aqui se trata. Segue-se a análise aprofundada da forma como músicas aparentemente inocentes (e até más) condensam acutilantes mensagens políticas.
DJ Lex num dos “aquecimentos” pré-comício
Tiago Miranda
“Faz gostoso”, Blaya
“Ele sabe que eu sou casada/ E até amo meu esposo/ Mas ele faz tão gostoso/ Ele faz tão gostoso”
A música de Blaya, embora pareça referir-se a um banal affair extra-conjugal, aborda, de forma metafórica, o chamado “Dilema Centeno” - a situação de um apoiante tradicional de outro partido que, perante os brilharetes do ministro das Finanças, sente a tentação de votar no PS, porque Centeno “faz gostoso”.
“Coração não tem idade”, Toy “Vou beijar, vou dançar/ Vou hum hum até me cansar/ Toda a noite, toda a noite”
Tem sido um dos maiores sucessos da playlist socialista, e toca todas as noites no warm-up para os comícios. No início ouve-se um desafio aos militantes, apoiantes e simpatizantes presentes - “Solta-te! Liberta-te!” -, que culmina com a promessa do candidato fazer campanha a dar tudo, apesar das dores nas costas: vai “beijar”, “dançar” e “hum hum”, “toda a noite, toda a noite”. Porém, como isto é só política, a promessa não se cumpre e todas as noites, por volta das onze, está tudo a voltar para casa.
“Você partiu meu coração”, Nego do Borel feat. Anitta e Wesley Safadão “Você partiu meu coração, ai meu coração/ Mas meu amor não tem problema, não, não/ Que agora vai sobrar, então/ Um pedacinho pra cada esquema”
Neste dueto há duas partes em confronto, uma de coração partido, porque acreditava que havia amor verdadeiro que podia até dar em coligação mais estável, e outra que queria apenas uma relação passageira, sem nunca ter tido qualquer propósito de casar, conforme confessa:
“Eu nunca quis seu coração/ Amor demais só dá problema, não, não/ Mas você pode ser, então/ Um pedacinho do meu esquema” Ou seja, o protagonista não só nunca teve intenções sérias, como, desfeita essa ilusão, ainda tem a desfaçatez de assumir que, em caso de necessidade, pretende que a outra parte possa voltar a ser “um pedacinho do [seu] esquema”. A metáfora do que se passou entre o PS e os parceiros da geringonça é tão óbvia que quase nem precisa de ser explicitada.
“Mestre de Culinária”, Quim Barreiros “Sou solteiro e bom rapaz/ Vivo num apartamento/ Ainda sou muito novo/ P'ra pensar em casamento.”
Outra referência explícita à opção de António Costa de não fazer coligações de governo com a esquerda — o líder socialista já várias vezes disse, sobre a sua relação com o PCP e o BE, que “dá para sermos amigos, não dá para casar”. Mas, neste caso, a canção acrescenta a essa vontade de continuar “solteiro e bom rapaz”, a referência à habilidade de Costa para cozinhar soluções de maioria imaginativas. “Eu sou o mestre de Culinária/ e sei enfeitar a travessa”, canta Quim Barreiros, aludindo, claro, ao “habilidoso” António Costa.
“Baile de verão”, José Malhoa “Toda malta gritou/ Até o padre ajudou/ Aperta aperta com ela./ A banda sempre a tocar / O Povo todo a cantar/ Aperta aperta com ela.”
Lançado em 2004, quando o país era governado por Santana Lopes, este bonito tema de José Malhoa só alguns anos mais tarde alcançou o merecido sucesso, o que se compreende bem: foi uma música à frente do seu tempo. “Baile de verão” antecipou em muitos anos o jogo de sedução mútua, e também a tensão, entre António Costa e Catarina Martins. O narrador é ele, a quem muitas vozes incentivam que faça maior pressão política, com gritos de “aperta, aperta com ela” - como Costa acabou por fazer nalguns momentos desta campanha. Mas não falta também a referência à recente quezília entre Costa e Catarina sobre as origens da geringonça: “Ainda te lembras amor/ Como tudo começou?/ Se te esqueceste, eu não”. O que nos leva à canção seguinte.
“O pai da criança”, Chave d'Ouro “Mas quem será? Mas quem será? / Mas quem será o pai da criança? / Eu sei lá, sei lá. Eu sei lá, sei lá.”
Esta canção do agrupamento Chave d'Ouro é outro caso de pertinência política precoce. Quando o tema foi lançado, em 2010, a sua verdadeira mensagem política não foi alcançada, até porque faltavam cinco anos para o momento fundador. Foi um sucesso, mas parecia uma singela canção de bailarico. As questões mais fundas que a letra levanta só ficaram claras depois de 2015, e em particular na atual campanha, na discussão entre António Costa e Catarina Martins sobre como e por quem foi concebida a geringonça - em resumo, quem terá sido "o atrevido?”. Costa diz que a criança teve dois pais - ele, e Jerónimo de Sousa. Ou seja, para Catarina resta, quanto muito, o papel de mãe (embora esta divisão das tarefas por género seja muito século passado, e pouco inclusiva…)
“Ô lá em casa”, Leo e Júnior “Eu te avisei/ Cuidado comigo que eu sou um perigo”
De entre a playlist socialista é um dos temas menos impactantes, e com menor reconhecimento popular, mas que importa referir. Não só por trazer o português açucarado do Brasil, e todos sabemos como qualquer governante português dá relevo ao “país irmão”, mas sobretudo porque levanta a questão politicamente relevante de saber (ou não) ler os sinais, e de nunca cometer o erro de desvalorizar o adversário. “E você duvidou/ Não brinca com quem não conhece porque eu sou mestre”. Fica o aviso: em política, subestimar o oponente pode ser, literalmente, a morte do artista.
“Lê lê lê”, João Neto e Frederico “Sou simples, mas eu te garanto / Eu sei fazer um lê lê lê”
Outra incursão pelos ritmos brasileiros, desta vez para a necessária referência ao líder do PSD. Não há campanha sem oposição, e Rui Rio, como quem não quer a coisa, no seu estilo simples, “politicamente incorreto”, vai fazendo o seu caminho. “Você no camarote e eu rodado no pedaço/ Caçando um jeitinho de invadir o seu espaço”, canta a dupla sertaneja, constando a evidência de que o PSD está a subir nas sondagens e a aproximar-se do PS. Com intervenções muitas vezes desarmantes, Rio vai mostrando que pode não “fazer gostoso”, mas à sua maneira sabe “fazer um lê lê lê”.
“O ritmo do amor”, Emanuel “É amor, é amor, é amor/ Que eu sinto no meu coração. / É amor, é amor, é amor/ É loucura entregue a paixão.”
Outro caso de relevância tanto pelo ritmo e melodia, como pela mensagem política. A música de Emanuel é uma coisa tipo-kuduro, o que sinaliza a importância do globalismo em geral e a influência dos PALOP em particular na cultura portuguesa. É uma daquelas músicas que põem meio comício a menear a anca, até porque quem não se deixa contagiar por este ritmo, como diria João Gilberto, “é ruim da cabeça ou doente do pé”. Com o valor acrescido de ser sobre o amor, a loucura e a paixão que são necessários para sair de casa numa noite de semana só para ir ouvir políticos a discursar.
“Se a casa cair”, Bandalusa “Se a casa cair/ Deixa que caia/ Hoje eu vou amanhecer na gandaia”
Opção arriscada do DJ Lex, não pela falta de qualidade da canção (que é indiscutível), mas por trazer para os comícios socialistas o escândalo de Tancos, que envolve as Forças Armadas, o ex-ministro da Defesa, e tem levantado dúvidas sobre o conhecimento que o chefe do Governo e até a Presidência da República eventualmente teriam sobre a encenação do “achamento” do material militar roubado. Em linguagem chata-institucional-jornalística, é um caso que pode “abalar o regime”; em linguagem popular, pode fazer “a casa cair”.