Cinema

O pior dos monstros é o tirano: a inigualável crueldade dos humanos em mostra no Fantasporto

O pior dos monstros é o tirano: a inigualável crueldade dos humanos em mostra no Fantasporto

Filme do Cazaquistão passado na 44ª edição do Fantasporto adapta os ensinamentos de Maquiavel a um país refém dos gangues e senhores da guerra

Em matéria de violência e perversidade, a realidade revela-se mais cruel e inventiva que a ficção. Basta olhar para os tempos que correm e verificar o que se passa na Ucrânia e em Gaza, sem esquecer a Birmânia, o Sudão ou o Congo. Os promotores do mal não são bruxas, vampiros ou dragões mas sim ditadores, senhores da guerra, traficantes de droga ou fanáticos de todos os matizes. É por isso que num festival como o Fantasporto onde, historicamente falando, o cinema fantástico sempre teve um lugar importante, um filme como “Goliath”, rodado no Cazaquistão, está longe de destoar.

A fita, realizada por Adilkhan Yerzhanov, foi selecionada para o festival de Veneza. Mostra-nos uma região remota do Cazaquistão dominada por um gangue que parasita a atividade económica, vivendo da extorsão e beneficiando da cumplicidade de uma polícia ineficaz e corrupta. Poshaev, o hiper violento chefe do bando, fará a certa altura um discurso que não ficaria mal a Putin: “A diferença entre o nosso sistema e o da Europa é que eles têm o fisco, a polícia e a política separados, e nós temos tudo junto…”

Onde o estado e os cidadãos falham, vai ser um protagonista improvável a levar os criminosos à perdição: um ex-soldado, mutilado de guerra, que irá tecendo uma teia que fará os bandidos virarem-se uns contra os outros. Após o massacre final, o ecrã enche-se com uma citação de Maquiavel: “Ensinei os príncipes a tornarem-se tiranos e os súbditos a livrarem-se deles…”

Ir ao futuro para mudar o passado

Se na sessão de ontem vos falei de um filme alemão e da possibilidade de mundos paralelos, hoje falo-vos de um filme japonês e da interação do passado e do futuro. “From the End of the World” (em português, Do Fim do Mundo) é a história de uma adolescente que tem o poder de, nos seus sonhos (melhor seria chamar-lhe pesadelos), ter vislumbres do passado. E de, com isso, poder modificar o futuro, evitando um anunciado fim do mundo cujas raízes mergulham na época medieval e nas sangrentas guerras entre samurais.

Ir ao futuro para poder mudar o passado, em “From the End of the World”

Uma fita realizada por Kazuaki Kiriya que apenas peca por alguma falta de concisão mas onde não falta um olhar crítico sobre o Japão de hoje: a nostalgia imperial, o poder perverso das redes sociais, o medo do grande terramoto ou explosão nuclear. E cuja moral se poderia resumir assim: para corrigir o presente, o melhor é ir ao futuro e mudar o passado…

Um tema que, de alguma forma, não anda longe de outro filme passado terça-feira nesta 44ª edição do Fantasporto. Trata-se da produção italiana “The Complex Forms”, realizada por Fabio d’Orta. Uma situação clássica no cinema fantástico: um grupo de pessoas (curiosamente só homens) que assinam uma espécie de pacto com o diabo ou, melhor dizendo com os seus intermediários, e se resignam a penar numa estranha mansão até à aniquilação ou à expiação dos seus pecados. Mas onde o tempo corre de outra forma: um dia vale por um ano no mundo exterior…

Finalmente, um filme de bruxas, diabos e adolescentes vindo da Argentina, apropriadamente chamado “The Witch Game" (com realização de Fabián Forte). Num país que elegeu Milei como presidente, dificilmente um bruxedo poderia funcionar como deve ser…

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: RCardoso@expresso.impresa.pt

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