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Cinema: a verdade escondida em “May December: Segredos de Um Escândalo”

A atriz israelo-americana Natalie Portman no papel de Elizabeth
A atriz israelo-americana Natalie Portman no papel de Elizabeth

Há 20 anos, ela, mãe de família, foi apanhada com um miúdo de 13 anos. Agora, dessa história, vão fazer um filme. “May December: Segredos de Um Escândalo”, com Natalie Portman e Julianne Moore, está em cartaz nos cinemas nacionais

Uma das características mais marcantes do cinema de Todd Haynes — além da imprevisibilidade do registo adotado a cada novo filme — é a ínvia aproximação aos personagens, eles próprios atravessados por pulsões contraditórias em contextos sociais violentos. As coisas nunca são o que parecem, as pessoas podem não ser fiéis aos valores em que supostamente acreditam e o olhar de Haynes quase nunca quer chegar a uma conclusão, preto no branco.

Há uma zona de dúvida, de estremecimento, quem a pisa com conhecimento de causa fica agarrado. Por vezes o fascínio alarga o seu campo de ação — e temos sucessos de público. Foi o caso de “Carol”, em 2015, ou de “Longe do Paraíso”, em 2002. “May December: Segredos de Um Escândalo” não parece pertencer a esse lote, apesar do troante título português ser isso que tem em mira.

Quando o filme começa, o escândalo já foi. Agora tornou-se raro que o correio traga caixas com fezes dentro. Afinal de contas tudo se passou há 20 anos, o tempo fez serenar as exaltações. Gracie/Julianne Moore cumpriu o tempo de prisão a que fora condenada por, mãe de família, ter sido apanhada em flagrante delito de fornicação com um miúdo de 13 anos a quem dera emprego na loja de animais de estimação onde trabalhava. E, fundados no argumento de que aquele relacionamento não era abusivo, mas fruto de uma funda e vera história de amor, os dois tinham casado assim que legalmente possível, gerado e criado três filhos, continuando sempre a viver na pequena cidade costeira onde tudo acontecera — Savannah.

“Porque é que havíamos de ter sido nós a mudar?”, argumenta Gracie algures, assim testemunhando ausência de constrangimento, remorso ou culpa. Quando o filme começa, contudo, há alguém a chegar para remexer no assunto. É Elizabeth/Natalie Portman, atriz-produtora, em visita de prospeção. Vai ser feito um filme sobre o caso de há duas décadas, Elizabeth é a protagonista agendada e quer conhecer de perto a verdade da pessoa por detrás da personagem a criar. Gracie aceitou ser cúmplice, porventura para tentar moldar essa verdade a seu modo.

Francois Duhamel

A escavação de uma verdade escondida é feita num processo em que duas mulheres se espiam e induzem, num jogo de fundo vampírico onde os restantes comparsas do caso são pouco mais que figurantes, embora figurantes interessados, também eles com subtextos manipuladores. Entre a frontaria e a porta das traseiras há um mundo de rancores e silêncios, omissões e fingimentos. Em toda a gente, em todos os lugares.

E há Joe/Charles Melton, o adolescente que verdadeiramente nunca deixou de o ser, com uma dependência filial da mulher mais velha, ele que cuida de larvas que serão, a seu tempo, borboletas Monarch (significativa a cena em que liberta uma delas no exterior da casa, lugar onde ele nunca conquistou a liberdade), ele que ficou prisioneiro de uma narrativa amorosa para a qual, vamos percebendo, nunca foi ouvido nem achado.

É no trabalho das atrizes que melhor assenta o filme, num tom leve de quase comédia a cobrir um substrato de vera tragédia

É, então, no trabalho das atrizes que melhor assenta o filme, num tom leve de quase comédia a cobrir um substrato de vera tragédia, pontuado por sopros a qualquer momento desestabilizadores (Gracie de espingarda em punho, à caça, onde irá ter? Aquele filho do primeiro casamento, desconformado pelo escândalo, que bomba irá largar?). Atrizes que forjam, exemplarmente, o cinismo (Elizabeth) e a ingenuidade (Gracie), para logo sugerir o seu contrário, atrizes dotadas de um poder hipnótico que o argumento de Samy Burch aduba — espantosa a cena em que a filha de Gracie experimenta vestidos. Atrizes que induzem mais do que dizem, sugerem mais do que mostram, numa tonalidade cerebral, registo frio, a colocar o espectador uns metros para lá da intimidade. No fundo, é como a cena de sedução entre Gracie e Joe imaginada por Elizabeth, com uma serpente de permeio.

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