Cultura

Crónica de Avignon : teatro, ‘femichismo’ e outras militâncias

Crónica de Avignon : teatro, ‘femichismo’ e outras militâncias
Foto Tiago Miranda

Presença habitual no Festival de Avignon, Rodrigo Francisco, director do Festival de Almada, dá conta das suas impressões, no último dia do evento, aquele em que Tiago Rodrigues subirá a palco para apresentar no Palácio dos Papas, um dos seus trabalhos mais pessoais, “By Heart”. Rodrigo Francisco fala das militâncias da nossa época e de como estas se fizeram sentir nesta edição, antecipando também alguns dos espectáculos que vamos poder ver por cá. É o caso d’ “As Confissões” de Milo Rau, a ver em novembro na Culturgest, ou do de Alexander Zeldin, programado pelo CCB para abril de 2024, de uma das recentes produções de Tiago Rodrigues, “Na Medida do Impossível”, também agendada, pela mesma Culturgest, para abril de 2024, e ainda de outro espectáculo polémico que está a pensar trazer ao Festival de Almada

Venho ao Festival d ’Avignon desde 2008. Iniciei-me pela mão de Joaquim Benite, que cá vinha desde os anos 80. Agora toca-me a mim manter a prática, ano após ano, de encerrar o Festival de Almada a 18 de julho e embarcar, a 19 de manhã, para a Provença. Fundado por Jean Vilar em 1947, o Festival d’Avignon foi criado, nas próprias palavras de Vilar, para “sarar as feridas” que a II Guerra Mundial tinha aberto. O fundador deste festival foi visionário ao ponto de trazer o repertório alemão para o cerne desta cidade francesa: nada mais, nada menos, do que o Palácio dos Papas, que é ainda hoje o ‘palco dos palcos’ deste evento.

Uma ‘Sicasal teatral’

Atualmente o Festival d’ Avignon é, na verdade, dois festivais: o ‘in’ e o ‘off’. No festival ‘off’ participa quem quer – ou quem obtém financiamento para, durante um mês, pagar o aluguer de uma sala para apresentar-se e o alojamento para a sua companhia, contando apenas com as receitas de bilheteira. Mas estes obstáculos não parecem arrefecer o entusiasmo dos artistas, nem do público. Os números são impressionantes: este ano houve 1491 espectáculos (por dia, entre 7 e 29 de Julho), em 141 teatros diferentes (o conceito de ‘teatro’ é generoso), em sucessivas sessões contínuas, de manhã à noite. Uma verdadeira ‘Sicasal teatral’. O ‘off’ de Avignon é, à semelhança do seu equivalente de Edimburgo, um fenómeno turístico sem par, constituindo-se como a mais importante fonte de receitas estivais para esta cidade, que vive para o seu festival uma grande parte do ano. Os largos milhares de turistas que cá vêm assistir a dois, três espetáculos por dia enchem os restaurantes (que abundam) e encorajam a inflação do preço do alojamento ‘intra-muros’, que escasseia – este ano reservamos em março. O ‘off’ é um fenómeno turístico, mas o ‘in’ é outra coisa – e todos os anos eu ando tanto num carrossel como no outro.

A bitola da criação europeia

Esta 77ª edição do Festival fundado por Jean Vilar é a primeira dirigida pelo autor, actor e encenador Tiago Rodrigues. Nunca até este ano um estrangeiro havia mandado no mais importante festival de teatro francês: o maior feito internacional do teatro português; desde sempre, digo eu. Até José Manuel Durão Barroso marcou presença extra-protocolar: veio cá passar a lua-de-mel, como grande aficionado teatral que é.

Não exagero se disser que o Festival d’Avignon – falo só’ do ‘in’ a partir de agora – é a bitola pela qual se nivela o teatro que se faz na Europa. As criações que por cá passam em Julho têm uma vida garantida na temporada teatral por vir. Mesmo que se revelem rotundos falhanços (que os há), as peças apresentadas neste festival em julho já estão anunciadas, entre setembro e junho seguintes, para os principais teatros e festivais franceses. Vem cá o mundo inteiro teatral assistir a espectáculos para programar no ano seguinte. E Almada não é excepção – com a vantagem de só apresentarmos a programação do nosso festival em junho, pelo que só escolhemos criações a que já assistimos previamente.

Um público militante, a sério

O sucesso desta primeira edição programada por Tiago Rodrigues é, ao nível da aceitação obtida por parte do seu público, absolutamente impressionante. A “carta de amor” que Tiago escreveu ao Festival, quando se candidatou ao cargo que agora tem (era ainda diretor do Teatro Nacional D. Maria II), deu os seus frutos: uma arrebatadora corrente de espectadores militantes, no mais literal sentido do termo.

Nalgumas sessões de aplausos o ambiente remete para o de um comício. Jean-Pierre Han, um crítico veterano que já cá vem há quase 40 anos, contou-me ontem, à tarde no La Civette (aonde vinham Vilar, Gérard Philipe e companhia) que no final da peça de Milo Rau – “Antígona na Amazónia”, que vai a 11 e 12 de novembro à Culturgest – havia um espectador de punho no ar, solidário com o Movimento dos Sem-Terra brasileiro. No espectáculo do próprio Tiago Rodrigues (“Na Medida do Impossível”, de 17 a 25 de Abril do ano que vem, também na Culturgest), vi eu como um senhor aplaudia à beira de os braços se lhe despegarem do corpo, enquanto instava a sua mulher para que o filmasse com o telemóvel, que durante a peça se reduzira respeitosamente ao ‘modo de voo’: o teatro da Ópera Grand Avignon, cheio atè ao galinheiro, quase vinha abaixo com tamanha ovação.

Este ano a língua convidada do Festival (uma novidade) é o inglês. Ainda assim, a língua de Camões já vai dando um ar da sua graça nos palcos (as actrizes Beatriz Brás e Isabel Abreu) e fora deles (os dois Tiagos, Guedes – o programador que dirige a Casa da Dança de Lyon, e o realizador –; o iluminador Rui Monteiro; e Magda Bizarro, mulher, colaboradora e sombra de Tiago Rodrigues). Não tarda muito aí estará como convidada de honra para o maior festival de teatro do Mundo. Já deve ter metido os papéis, digo eu.

Uma palavra nova, tão detestável quanto a outra

Voltando à militância do público desta edição, é caso para dizer que o tempo não está para flores. Há acusações de agressão racista, ameaças e quejandos. Não há notícia de que já tenha corrido sangue, ‘malgré tout’. Desde o Maio de 68 – quando os universitários parisienses vieram por aí abaixo acusar o Festival de censura, por causa do Living Theatre, e criaram o hediondo ‘slogan’ “Béjart, Vilar, Salazar!” – que não se sentia tanta agitação. À escala, e sobretudo na internet, claro está. (A dada altura digo ao Jean-Pierre Han, durante o tal almoço, que a Humanidade criou três coisas que hão-de contribuir para o seu fim: a bomba atómica, as redes sociais e o ‘sushi’. Ele não ri.) Pois dá-se o caso de, no final de um certo espectáculo alegadamente sobre a violência de género, eu estar tão estupefacto que me esqueci de aplaudir. Senti uma mão a tocar-me no ombro. “Não gostou?”. Era uma rapariga dos seus 20/30 anos. Olhos faiscantes. “Não”, atrevi-me a responder. Caiu o Carmo e a Trindade: “Isso é porque é homem. Vocês não percebem nada. Todas as noites, quando volto a pé para o parque de campismo, há sempre pelo menos dois ou três carros que param, com uns tipos a dizerem-me que sou linda e a convidarem-me a subir”. Ainda procuro argumentar que talvez esse não seja um problema tanto do teatro quanto da polícia, mas já se formou entretanto um grupo de mulheres em redor – estas bem mais velhas – acusando-me de ser violento. (Juro que jamais levantei o tom de voz.) Chega outra mulher, de cabelo à escovinha, envergando uma t-shirt que diz que “Comigo os gajos não fazem farinha!”. Em francês soa-me ainda mais ameaçador, pelo que recolho ao bar do festival, que este ano se chama Mahabharata e cuja entrada está mais “inclusiva” do que nas edições anteriores. (Há sempre menos gente do que no bar do ‘in’; no entanto.)

Invento durante o serão, à conversa com o Alexander Zeldin (cujo imperdível “The Confessions” vai a 5 e 6 de Abril ao Centro Cultural de Belém), um termo do qual porventura havemos ainda de ouvir falar, infelizmente: o ‘femichismo’, tão abominável quanto a sua versão diametralmente oposta.

Festival de Avignon 2023 - By Heart, Tiago Rodrigues © Magda Bizarro

20 lugares de fala

No dia seguinte (ontem) assistia à representação de “Carta Negra Chamada Desejo”, de Rébecca Chaillon. É a tal peça que deu sururu: quem a quiser programar em Portugal tem escândalo garantido. À entrada do espectáculo alguém colou um cartaz com os dizeres seguintes: “Vocês são as maiores! Bravo!”. À minha frente, na bicha de entrada, um rapaz com um vestido comprido, de veludo cor-de-rosa, e protegido do sol com uma sombrinha da Minnie, tira uma ‘selfie’ com o dito cartaz em pano de fundo. Um aviso sonoro convida todas as mulheres negras (ou afro-descendentes), incluindo “pessoas transsexuais ou não-binárias”, a sentarem-se nas poltronas postas ao fundo da cena, voltadas para a plateia onde me sento. Esses 20 lugares parecem bem mais confortáveis do que as cadeiras que cabem ao resto do público, e dão direito a bebidas grátis (não-alcoólicas), mas não estão todos ocupados quando a peça começa.

Dou por mim a pensar se não haverá algum artigo na Constituição da República Francesa que impeça a equipa daquele espectáculo de retirar-me de um daqueles lugares, se eu me for lá sentar. De qualquer forma, não deixa de ser sintomático do nosso tempo que um festival criado para sarar as pústulas do holocausto se empenhe agora a tratar as feridas da sociedade hodierna com doses generosas de sal grosso. É segunda-feira, e ainda não consegui descortinar nos jornais franceses se já aqui ao lado, em Espanha, a extrema-direita chegou ou não ao poder.

Dentro do saco de pano que trago sempre comigo – acessório fulcral a qualquer festivaleiro que se preze, utilíssimo para armazenar a catadupa de jornais, panfletos e programas acumulados ao longo do dia – trago o livro que me acompanha nos intervalos entre as três peças que vejo por dia: “Left is not woke”, da filósofa norte-americana (a viver em Berlim) Susan Neiman. Presumo que este ensaio ainda não esteja traduzido em França. Talvez não fosse má ideia começar a pensar em editá-lo no nosso país. Termina assim: “É-nos muitas vezes lembrado que os nazis chegaram ao poder através de eleições democráticas, mas eles nunca obtiveram uma maioria sem já estarem antes no poder. Se os partidos de esquerda, durante a República de Weimar, tivessem querido formar uma frente unida, como defenderam fervorosamente pensadores como Einstein ou Trotsky, talvez o Mundo tivesse sido poupado à sua pior guerra de sempre. As diferenças que dividiam estes partidos eram bem palpáveis. Ainda assim, mesmo que o Partido Comunista Alemão, de facção estalinista, não o admitisse, essas diferenças eram irrisórias face à evidente diferença entre os movimentos de esquerda, universais, e a visão tribal que o fascismo tem do Mundo. Não podemos dar-nos ao luxo de cometer um erro semelhante”.

Este ensaio de Neiman consiste num alerta contra a forma como uma certa esquerda está’ a deixar-se impregnar de postulados próprios, alguns deles, da extrema-direita, que essa mesma esquerda julga combater – mas acicata e alimenta.

Inventar o património do futuro

Esta manhã Tiago Rodrigues veio a Cloitre Saint Louis fazer o balanço da ‘sua’ primeira edição. De camisa azul-clara por dentro dos ‘blue jeans’, saco branco (do Festival) a tiracolo, óculos de aros redondos, Tiago aproveita o ar-livre para fumar um cigarro antes da conferência. Não dá o mínimo sinal de nervosismo, quando começa a falar: “Bom dia a todas e a todos, chamo-me Tiago Rodrigues e trabalho no Festival d’Avignon”. O ‘coup de foudre’ é instantâneo. A comunhão com o seu público, os jornalistas, os políticos ali presentes é total, como se se tratasse de um ensaio-geral para o espectáculo desta noite, o último desta edição: nada menos do que “By Heart”, que bem conhecemos, durante o qual estará’ em palco com doze espectadores-participantes. (Como fará no início, quando convida o público a partilhar o palco consigo, para evitar uma verdadeira invasão de espectadores-aspirantes-a-actores que queiram pisar a Cour d’Honneur do Palácio dos Papas – isso ainda não se sabe).

“Estamos a inventar o património do futuro”, afirma Tiago, justificando os riscos que se obrigou a correr quando idealizou esta sua primeira programação. Durante o seu discurso de pouco mais de meia hora, não se esquivou a algumas comparações com o passado recente (leia-se a direcção anterior, de Olivier Py): o regresso à Pedreira de Boulbon (apesar do “esforço financeiro”, como corroborou o seu adjunto, Pierre Gendronneau, o “homem dos números”); 94% de ocupação das salas (apesar de este ano ter havido mais 15000 lugares ‘a venda); e a novidade do “património vegetal”, com espectáculos realizados “na paisagem”, em plena Natureza. A grande ovação chega quando o diretor do Festival agradece à sua equipa, “aos 34 permanentes e aos 764 intermitentes” que consigo “fazem este Festival: nunca encontrei uma equipa que amasse tanto aquilo que faz”.

E foi-nos revelando já algumas das novidades do ano que vem. Antes de mais, as datas. Jogos Olímpicos ‘obligent’ que em 2024 o Festival d’Avignon decorra entre 29 de Junho e 21 de Julho, uma semana antes do habitual. São chamados então ao palco a encenadora Caroline Nguyen (actual directora do Teatro Nacional de Estrasburgo) e o actor Éric Ruf (que dirige a Comédie Française). Nguyen apresenta-nos a sua criação do ano que vem, “Lacrima”, e Ruf revela-nos que Tiago vai dirigir uma “Hécuba”, de Eurípides, com a ‘trupe’ herdeira de Molière: o encenador português está no topo do mundo teatral francês, literalmente. Descobrimos ainda que em 2024 a língua convidada pelo Festival d’Avignon é o espanhol. Vamos roendo as unhas: havemos de lá chegar.


PS – Quanto ao espectáculo que me esqueci de aplaudir, hei-de mover mundos e fundos para conseguir programá-lo em Almada no ano que vem. (Há-de dar um belo debate com o nosso público, se Deus quiser.)


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