Saga literária de 007 foi editada para remover referências racistas e "ofensivas"
Nicola Dove
A decisão foi tomada após a empresa que gere o património literário do autor Ian Fleming ter pedido a um grupo de leitores para analisar os textos de 007 e determinar se algumas das passagens literárias poderiam ferir as sensibilidades da sociedade contemporânea
A saga literária de 007, escrita por Ian Fleming entre 1955 e 1963, foi revista para remover referências racistas e "ofensivas" e será republicada em abril para marcar o 70º aniversário do lançamento do primeiro livro, avançou o jornal britânico Sunday Telegraph.
A decisão foi tomada após a empresa que gere o património literário do autor, a Ian Fleming Publications Ltd., ter pedido a um grupo de leitores especializado para analisar os textos de 007 e determinar se algumas das passagens literárias poderiam ferir as sensibilidades da sociedade contemporânea.
Como resultado, centenas de palavras e expressões serão removidas, particularmente uma série de referências raciais que a Ian Fleming Publications Ltd admite poderem ser “ofensivas" para alguns dos leitores modernos.
Segundo o Sunday Telegraph, cada livro irá ser antecedido de uma mensagem que refere e justifica as mudanças: "Este livro foi escrito numa época em que termos e atitudes que poderão ser considerados ofensivos pelos leitores modernos eram comuns”, ler-se-á na nota. “Foi feita nesta edição uma série de atualizações, mantendo o texto o mais próximo possível do original e do período em que decorre a ação”.
Para começar, vários termos insultuosos para referir pessoas de raça negra serão eliminados. Em alguns casos, as características raciais de algumas personagens, mesmo que não sejam exatamente insultuosas, serão também apagadas. Por exemplo, a etnia de um empregado de bar no livro “Thunderball” é omitida nas novas edições, e em "Quantum of Solace", a raça de um mordomo deixa também de ser mencionada.
Já em “Goldfinger”, também a etnia dos pilotos de uma unidade logística da Segunda Guerra Mundial, a chamada Red Ball Express - que tinha muitos militares negros - não é mencionada, sendo apenas referidos como "ex-condutores".
Noutros casos, as mudanças são mais profundas, alterando o próprio significado da frase. Na anterior versão de "Live e Let Die", James Bond, a personagem principal, teoriza que um grupo de potenciais criminosos africanos são “bastante mais cumpridores da lei do que pensava, exceto quando bebem demais”. Agora, os potenciais criminosos africanos, segundo a ótica da personagem do espião britânico, serão apenas "bastante mais cumpridores da lei do que pensava.
Daniel Craig e Lashana Lynch no filme da saga 007 "No Time to Die"
Nicola Dove
Embora o rol de modificações seja extenso, alguns especialistas defendem que não foi tao longe quanto devia..
A homossexualidade é referida num dos livros como uma “deficiência teimosa”, por exemplo, algo que não mudará com as nova revisão. E depois há aquela que é uma crítica bastante antiga à saga de 007: a misoginia e a unidimensionalidade das personagens femininas.
Para Clementine Ford, uma escritora australiana citada pela revista norte-americana Time, a personagem e James Bond “tem uma história de violação, objetivação e utilização de mulheres”, sendo que os filmes "celebravam frequentemente esse comportamento".
"O consentimento é um conceito ausente no mundo de Bond, mas de alguma forma espera-se que o público, e as mulheres em particular, abracem isto como parte do seu valor cultural", acrescenta Ford. “Será que vamos ter um Bond que se insurge contra o flagelo da supremacia branca, mas de alguma forma ignora o impacto que a misoginia tem nas mulheres?”, questiona-se.
A decisão da Ian Fleming Publications Ltd insere-se num recente esforço de rever e editar obras históricas tendo em conta padrões contemporâneos. Já em 2023, a editora Puffin, que faz parte da Penguin Random House, reconheceu vir a mudar a linguagem das próximas edições inglesas destes e de outros livros da obra infantil de Roald Dahl.
Nesse caso, as alterações prendem-se sobretudo com descrições físicas: em vez de ‘gordo’, ‘enorme’; em vez de ‘feia e burra’, apenas ‘burra’. Ao todo, trata-se de centenas de palavras substituídas por outras que a editora assume serem mais “educativas”. Em “Charlie e a Fábrica de Chocolate”, houve mesmo acrescentos ao texto original — prática que, segundo o porta-voz da Puffin, não é “inusual”.