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Óscares 2021. “Mank”, uma viagem aos anos de ouro de Hollywood nomeada para Melhor Filme

Amanda Seyfried como Marion Davies e Gary Oldman no papel de Herman Mankiewicz, em "Mank"
Amanda Seyfried como Marion Davies e Gary Oldman no papel de Herman Mankiewicz, em "Mank"
NETFLIX

“Mank”, de David Fincher, centra-se na figura de Herman J. Mankiewicz — que escreveu “O Mundo a Seus Pés”, a obra-prima de Orson Welles. Longa-metragem está nomeada em 10 categorias, incluindo a de Melhor Filme

O que é “Mank”, novo filme de David Fincher, se não um sonho acordado sobre Hollywood? Ou será um ensaio, polémico como se esperava, sobre o meio em que os sonhos se fabricam? A realidade, e disso não restam dúvidas após o visionamento, sonhou-a Fincher também nas gamas daquele preto e branco que apela à idade dourada do cinema americano dos anos 30 e 40, refletindo o que se fez ontem no que é tecnicamente possível apresentar hoje num ecrã caseiro com Netflix.

“Mank” é um filme disposto a abrir a caixa de Pandora de um maiores mitos daquela era. Aquele que, em certa medida — e embora dispense apresentações —, permanece o mais secreto dos filmes: “O Mundo a Seus Pés” (“Citizen Kane”, título em inglês, de 1941), obra-prima de Orson Welles. É uma história longa e complicada de desenlear. Favorece imensamente os espectadores que já ultrapassaram o “no trespassing” do portão de Xanadu, o castelo fantástico de Charles Foster Kane. Tanto assim é que, aos ‘felizardos’ que não fazem ideia do que Xanadu significa, muito se recomenda que vejam “Citizen Kane” pela primeira vez (e o choque tremendo dessa descoberta mantém-se intacto hoje como há 80 anos) antes de entrarem em “Mank”, sob pena de ficarem pelo caminho, isto na melhor das hipóteses.

É que o filme de Fincher ganha toda a sua força ao ser visto como um contracampo histórico e político do filme de Welles. E desde já se sublinha, em jeito de aviso à navegação, que “Mank” nada tem de documentário embora se tenha documentado a preceito e saiba muito bem do que está a falar. É uma ficção de meias-verdades que não têm no ecrã uma superioridade hierárquica sobre as meias-mentiras. E ambas ecoam com estridência no presente, com toda a liberdade criativa a que um grande cineasta como Fincher tem direito. Por isso preferimos falar de sonhos. Ou de realidades sonhadas.

O protagonista de “Mank” não é Orson Welles mas sim o argumentista que escreveu “Citizen Kane” da primeira à última página, Herman J. Mankiewicz (1897–1953), doze anos mais velho que o outro Mankiewicz de Hollywood bem mais conhecido, o seu baby brother Joseph L. (o autor de “The Ghost and Mrs. Muir”, “All About Eve”, “Cleopatra” e tantos outros). No ano de 1940 em que “Mank” começa (o título vem da sua alcunha), Herman era uma estrela cadente que já tinha tratado por tu todos os magnatas dos maiores estúdios de Hollywood.

A sua pluma inspirada fizera-o conhecer David O. Selznick na Paramount, que lhe pagara fortunas pelos seus guiões. Gozara de uma aura de protégé de Louis B. Mayer, o patrão da MGM, em amizade que, tal como Fincher a mostra, foi de cortar à faca, e picava-se frequentemente com Irving Thalberg, braço-direito de Mayer. Herman conhecia desses todo-poderosos a coragem e as virtudes, mas também a ganância e outros podres vícios, numa relação de amor-ódio cheia de sapos que ele nem sempre conseguiu engolir e que “Mank” não vai deixar de esgravatar. Falta ainda acrescentar que Herman também conhecera em tempos Marion Davies, atriz do mudo que perdera quase todo o box office appeal nos sonoros anos 30, e amante de longa data do famoso magnata William Randolph Hearst, que em vão investiu milhões para lhe reabilitar a carreira.

Gary Oldman numa imagem de bastidores de "Mank"
Nikolai Loveikis/NETFLIX

Hearst, por seu lado, é outra peça essencial deste xadrez. Dono de metade dos jornais da América falida da pós-depressão de 1929, havia construído um império colossal e era o homem a quem ninguém dizia ‘não’, estúdios de cinema incluídos. Detinha um poder capaz de ditar o êxito ou o fracasso da classe política — e que o diga o democrata e socialista Upton Sinclair, que saiu derrotado das eleições de 1934 para Governador da Califórnia, na corrida contra o republicano Frank Merriam. Nesses tempos, o comunismo na América era visto como uma ameaça muito mais grave para o país do que a recente ascensão de Hitler ao poder na Alemanha. Nos seus flashbacks sucessivos que arrancam sempre de 1940 para a década anterior, “Mank” vai incidir especialmente naquelas eleições e no comportamento escorregadio, quase sempre ácido e não poucas vezes cínico, daquele que testemunhou aquele e tantos outros episódios da vida política e cinematográfica da América: Herman J. Mankiewicz.

Foi Herman quem se lembrou da ideia de produzir filmes publicitários pró-republicanos que, veio-se a saber, prejudicaram gravemente Sinclair nas mesas de voto. E no entanto a imagem que Fincher nos dá do protagonista é a de um filantropo atento ao mundo que o rodeava, curioso pelas ideias antissistema de Sinclair e logo arrependido por ter contribuído para a sua derrota. Em 1940, porém, já quase todos se haviam afastado de Herman. A sua atração suicida pelo álcool e pelo jogo compulsivo não lhe dera apenas uma reputação de infrequentável: minara-lhe por completo a carreira. Herman parecia talhado para ser, mais do que um desmancha-prazeres, um desmancha-poderes. Incorrigível, caíra num buraco sem fundo. Amparava-o ainda, com paciência de santa, a mulher Sara, incansável curadora de tantas bebedeiras, e o irmão Joseph, também ele argumentista, e que só mais tarde (com “Dragonwyck”, de 1946), se tornaria um senhor realizador.

NA ANTECÂMARA DE “CITIZEN KANE”

“Mank”, como se disse, fixa-se em 1940 e é aqui que entra “Citizen Kane”, que também é um filme único pela história dos seus bastidores. Um rapaz que então contava apenas 24 anos, com uma voz grave e inconfundível, e que já levara à cena “Macbeth” e “Júlio César” em Nova Iorque, tinha assustado a América na noite de Halloween de 1938, com uma narração radiofónica assombrosa de “A Guerra dos Mundos”, de H. G. Wells. Não foram poucos os que se convenceram que New Jersey estava a ser invadida naquela noite por marcianos. Em agosto de 1939, partiu para uma Hollywood ávida de novidade, com um prestígio de “narrador formidável”, em tudo estratosférico para a sua idade. Não tinha tido ainda qualquer contacto com o cinema, salvo uma experiência que deveria ter sido usada numa peça teatral (“Too Much Johnson”, 1938). Mas o cinema estava prestes a dar-lhe de mão beijada aquilo que jamais dera a alguém. A R.K.O., que era então dirigida por George J. Schaefer e lutava para se salvar da bancarrota, decidiu apostar tudo num só cavalo, chegando-se à frente.

O filme de Fincher é uma ficção de meias-verdades que não têm no ecrã uma superioridade hierárquica sobre as meias-mentiras. Ambas ecoam com estridência no presente

E não se limitou apenas a passar um ‘cheque em branco’ a Orson Welles: deu-lhe também autonomia criativa absoluta para ele fazer o filme que quisesse, como quisesse e com quem bem desejasse, e direito a um final cut sem supervisão, luxo até então nunca visto e não mais repetido naquela era. E Welles fez o filme que se sabe, em quatro meses de rodagem lançada no fim de 1940 e envolta no maior segredo. Estreava-se também como ator no papel principal, e com ele vieram Joseph Cotten, Ray Collins, Agnes Moorehead, Paul Stewart ou Ruth Warrick, todos eles oriundos do Mercury Theatre que Welles fundara dois anos antes em Nova Iorque com John Houseman — e todos eles eram ilustres desconhecidos na Califórnia. A curiosidade e a ciumeira causadas pela aparição do ‘novo génio’ pararam Hollywood por instantes, até à estreia de “Citizen Kane” a 14 de fevereiro de 1941. Toda a gente quis ver o resultado daquele filme de novatos e sem vedetas, em que Gregg Toland, ilustre diretor de fotografia, era o nome mais sonante da ficha técnica, isto para não falar no veterano argumentista de má fama que Orson Welles chamou para o projeto: Herman J. Mankiewicz.

“Mank” termina na antecâmara da verdadeira polémica que só então estava a começar em torno de “Citizen Kane”, quando ficou subentendido que Charles Foster Kane, o protagonista, era um retrato dos pés à cabeça de William Randolph Hearst e, mais do que isso, um espelho da sua arrogante megalomania. Louis B. Mayer chegou a oferecer a Schaefer uma soma astronómica e superior ao próprio custo do filme, se ele aceitasse destruir os negativos e todas as cópias de “Citizen Kane”, varrendo-o para sempre do mapa. Fê-lo por fidelidade a Hearst, temendo represálias contra os estúdios e quem sabe se a seu mando. Um processo em tribunal deste último contra Welles esteve quase a concretizar-se (Hearst desistiu do mesmo), mas a impiedosa influência do magnata não deixou de ter efeitos: após a estreia, todos os jornais da sua cadeia boicotaram qualquer referência à obra, que os críticos não hesitaram em eleger como a melhor do ano. E até a Academia, que a nomeou para nove Óscares e temeu consequências, não lhe deu mais do que um: o de Melhor Argumento Original, que Herman e Orson partilharam ex-aequo, como se mostra no único flash forward que “Mank” nos dá no final.

Os Óscares de Melhor Filme e de Melhor Realizador desse ano foram parar a “How Green Was My Valley”, de John Ford — e convenhamos, premiaram igualmente um filme gigante. Mas a escolha da Academia pareceu condicionada pelas mesmas razões subterrâneas que, dois anos depois, agitaram intrigas e conseguiram afastar Schaefer da R.K.O. — assim como Welles, que desde então ficou com a carreira amaldiçoada. As bilheteiras da época também não ajudaram “Citizen Kane”, que não foi um fiasco mas ficou muito longe do êxito esperado: a audiência deixava a sala perplexa pelas revoluções narrativas e cinematográficas nunca vistas, e ainda mais apardalada ficava com os seus mistérios, dos quais a origem da palavra “Rosebud” (e Fincher sabe num diálogo viperino de “Mank” que ela não é apenas o nome do trenó de Kane na infância) se tornou a mais célebre.

UMA GUERRA DE EGOS

Mas voltemos ao Óscar ex-aequo de Herman e de Orson pois também aqui há uma querela histórica entre os dois artistas e da qual Fincher toma claro partido do primeiro em “Mank” (Welles, de resto, é deixado por Fincher na sombra, encerrado num papel quase episódico). Curiosidade ou maldição: nem um nem outro jamais voltariam a ganhar qualquer Óscar após “Citizen Kane”. Foi sob pressão, e após violar cláusulas contratuais que enfureceram o realizador, que Herman, inicialmente contratado como script doctor, exigiu assinar sozinho — e por fim coassinar com Welles — um argumento que, supostamente, só o primeiro escreveu. Ora, quem escreveu de facto o quê e o que passou para a versão final tem sido matéria alimentícia para biógrafos ao longo de décadas e também aqui retornamos às meias-verdades e às meias-mentiras de “Mank”.

É justa a revelação de que Welles, uma vez o guião concluído, ofereceu 10 mil dólares a Herman para que este o deixasse assiná-lo sozinho, vergando-o assim à humilhação de um ghost writer? “Mank” diz-nos que sim, que foi verdade. Welles sempre o negou a vida inteira, afirmando que o guião final era uma amálgama do trabalho de ambos — só que John Houseman contestou-o, afirmando que Welles jamais escreveu uma palavra. Mas “Mank” também vai inventar a história de que Herman ditou o argumento de “Citizen Kane” para uma datilógrafa, acamado que estava com uma perna partida após um acidente de automóvel (e assim o vemos nas cenas de 1940), e nada disso foi verdade, é mera fantasia de Fincher: o acidente ocorreu, mas Herman já estava recuperado quando se pôs ao trabalho.

Gary Oldman no papel de Herman Mankiewicz e Sean Persaud como Tommy, em "Mank", de David Fincher
Gisele Schmidt/NETFLIX

Em 1971, a crítica de cinema da “The New Yorker” Pauline Kael pôs mais lenha na fogueira e, num longo ensaio em duas partes que deu água pela barba (e tanta deu que dava outro artigo do tamanho deste), “Raising Kane”, defendeu que a verdadeira autoria e a força motriz de “Citizen Kane” pertenciam a Mankiewicz, não a Welles. Foi uma acusação controversa, que obrigou Welles a reagir (pela voz de Peter Bogdanovich). Afinal, foi ele quem realizou o filme. Foi ele quem o interpretou. Disso não há dúvidas. E tudo aquilo que ele deixou ao cinema após “Citizen Kane” bastava para o manter no firmamento. Contudo, quer para a pluma de Kael quer para “Mank”, Welles apropriou-se de talento alheio, ficando mal na fotografia. De facto, só Herman tinha conhecido Hearst ao ponto de o conseguir diabolizar na sua mais profunda solidão e com tanta mestria, atrás do disfarce de Charles Foster Kane. Tal como não é improvável que a fúria consequente de Hearst, sentindo-se traído pelo homem que o magnata tantas vezes recebera à mesa no seu castelo em San Simeon, se tenha manifestado contra Herman acima de qualquer outra pessoa. Em 1985, outro livro sobre o assunto foi publicado a contrariar a teoria de Pauline Kael e em defesa de Welles: “The Making of Citizen Kane”, de Robert L. Carringer.

De um ponto de vista analítico, “Mank” é um filme com uma inteligência, um ritmo e uma respiração invulgares nos tempos que correm. Sabe dar tempo ao tempo que os seus momentos graves exigem, é ágil e ritmado como uma screwball nas cenas mais loquazes de Herman. A fotografia old fashioned de Erik Messerschmidt coloca o nome de um novo técnico no mapa. E o elenco é um triunfo. Gary Oldman faz um Herman extraordinário em performance muito superior à do seu oscarizado Churchill. Tuppence Middleton (Sara Mankiewicz) e Amanda Seyfried (Marion Davies) asseguram interpretações femininas de grande nível. John Houseman e Rita Alexander, o sócio de Welles do Mercury Theatre e a sua secretária-datilógrafa, dão papéis sólidos a Sam Troughton e Lily Collins. São eles os anjos da guarda que velam pela estabilidade do protagonista naquele desterro do deserto de Mojave em que Herman é 'confinado' para poder trabalhar em paz, longe do álcool de preferência. Já o veterano Charles Dance, destacado nos créditos do filme, dá a Hearst um porte aristocrático que este não tinha, cabendo a Tom Burke o papel de um Orson Welles que não sai favorecido.

O protagonista de “Mank” não é Orson Welles, deixado por Fincher na sombra. O foco está em Herman J. Mankiewicz, o argumentista que escreveu “O Mundo a Seus Pés” da primeira à última página

Nunca saberemos ao certo se a gloriosa Hollywood dos anos 30 que deu origem a tantos filmes sublimes foi a Hollywood envenenada que “Mank” nos mostra, tão-pouco se o próprio Herman, que é um poço de conflitos interiores, desdenhava assim tanto o poder instalado que o elevou aos píncaros da hierarquia de argumentistas (e depois o condenou). O guião de “Mank” foi escrito por Jack Fincher (1930-2003), pai de David, jornalista da revista “Live” e ocasional argumentista. O guião anterior de Jack que se conhece mas que só poucos leram era também biográfico, focava-se em Howard Hughes e esteve para servir de base a “The Aviator”, que teve um processo de desenvolvimento complicadíssimo e um número invulgar de pretendentes. Mas esse guião acabou por ser rejeitado em favor de outro escrito por John Logan. E foi o guião de Logan que Martin Scorsese acabou por filmar. Por que motivos caiu o texto de Jack Fincher não se sabe ao detalhe, o que se sabe é que também aquele era um projeto em torno de um tycoon – e um guião, tal como “Mank”, não necessariamente impermeável à especulação. Mas não tem sido a especulação uma das armas do Fincher-+cineasta que conhecemos?

Aproximar “Mank” do universo de Fincher, isto é, de jogos meticulosos e de personagens ambíguas, com frequência presas a jogos perigosos que elas não conseguem controlar, não deixa de ser estimulante e ainda mais se torna quando nos apercebemos que aqueles anos 30 são um espelho contundente da América egomaníaca e sociopata pós-2016. É que também “Mank”, que agora se inscreve numa longa linha de 'antiépicos' há muito traçada pelo realizador de “Se7en”, “Fight Club” e “Panic Room”, é uma esplendorosa viagem no tempo recheada de ambientes tóxicos, de desgostos fedentos e de facadas nas costas que, quando não mataram, deixaram remorsos impossíveis de apagar; e pouco se aproveita que enalteça, de facto, as qualidades da espécie humana. A prova disso é a cena daquele escandaloso jantar em que Herman entra de rompante no castelo dos sonhos e evoca Quixote mas sai derrotado pela parábola do macaco do tocador de realejo que Hearst lhe conta. É uma cena de uma amargura terrível. Depois Hearst fecha-lhe (e fecha-nos) a porta. E é um momento autêntico deste filme de pântanos, em que tantas outras coisas, como Orson Welles disse um dia (do cinema), talvez não passem de um “F for fake”.

MANK
De David Fincher
Com Gary Oldman, Amanda Seyfried, Tuppence Middleton, Lily Collins (EUA)
Drama biográfico M/13
Netflix, em streaming

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