Cultura

Os fanáticos das identidades mataram os Oscars

No dia em que se anunciam os nomeados para os Oscars 2021, não tenho boas notícias: os Oscars morreram. Paz à sua alma. Não, não morreram por causa da Netflix, nem de Covid19, nem foi o Trump que os matou. Morreram vítimas do niilismo e do politicamente correcto, incinerados na fogueira das identidades.

Explico melhor: o que antes foi conhecido como a celebração do sonho cinematográfico, a partir de 2024, com as novas regras de nomeações, vai transformar-se num pesadelo às mãos do santo ofício das identidades. Esqueçam o cinema: De Mille, Capra, Ford, Kazan provavelmente não fariam parte desta "admirável" história nova. Allen também não fará, mas isso já sabíamos há mais tempo.

Falo exactamente de quê? Se o estimado leitor, no final dos Cem Anos de Solidão do Gabriel Garcia Marquez, achou que teria sido melhor ter tido um papel e um lápis para desenhar a árvore genealógica, não cometa o mesmo erro duas vezes. Vá, que eu espero. Pronto?

Ora, para ser elegível a Oscar a partir de 2024, o filme tem de cumprir dois de quatro standards. O primeiro standard é assegurar que uma das três condições seguintes é verificada. Primeira condição: o actor ou actriz principal ou um dos principais actores secundários tem de ser asiático, hispânico ou latino, negro ou afro-americano, indígena, americano nativo ou nativo do Alaska, do médio-oriente ou do norte de África, nativo do Hawai ou de uma ilha do Pacífico ou de outra raça ou etnia subrepresentada. Segunda condição: pelo menos 30% dos actores secundários têm de ser de pelo menos dois dos grupos subrepresentados; a saber: mulheres, grupos étnicos ou raciais, LGBTQ+, ou pessoas com deficiências físicas ou cognitivas ou surdos. Terceira condição: a história principal deve ser sobre um dos grupos subrepresentados (os mesmos referidos na condição anterior). O segundo standard deve cumprir uma de duas condições. A primeira é que dois dos directores de departamento (de casting, cinematografia, composição, adereços, cabeleireiro, etc.) sejam de um dos grupos subrepresentados. A segunda é que pelo menos um respeite a primeira condição do standard.

Pronto, pronto, eu fico por aqui... Por esta altura já perdi mais leitores com o parágrafo anterior que o João César Monteiro espectadores nos primeiros 5 minutos da Branca de Neve. Desculpem lá a maçada. Se tiverem mesmo interesse, podem consultar o Guião Moral da Academia aqui.

Sim, disse Guião Moral, mas talvez tenha sido benevolente. É porque não há ali nada de Moral; só moralismo falso e barato. Privilegiados de dedo em riste a educar o povo a partir das suas fantasias identitárias e das suas elucubrações ideológicas. Nada de novo, portanto. Ou, se o leitor cinéfilo preferir, A Oeste Nada de Novo; vencedor do Oscar de melhor filme e melhor realizador (Lewis Milestone) em 1930, e que talvez não cumprisse sequer os standards para a nomeação em 2024.

Dizia eu que não há nada de novo, porque a Academia acredita que a inclusão destes standards será um catalisador para uma duradoura e essencial mudança na indústria. No fundo, trazer luz, onde antes havia escuridão. Estas palavras não são da Academia. Foram ditas em 1979, no Irão, pelo Ayatollah Khomeini. E este é o ponto: beneméritos de engenharia social foi coisa que nunca faltou na história. Exagero na comparação? Infelizmente não, o guião é o mesmo: fanáticos a terraplanarem a arte em nome de um bem maior. Em Teerão foi a literatura (e tudo o mais) em nome da religião, desta feita foi a sétima arte em nome da "inclusão".

O par "identidade e inclusão" é agora o novo "pureza e religião", o novo "bem-comum e revolução"; em todos: boas intenções, pouca liberdade e muita exclusão. Nestes tempos de ocaso civilizacional, identidade é uma palavra cada vez mais perigosa, sem nenhum uso respeitável. Quem o diz não sou eu, foi Tony Judt que, em 2010, pouco tempo antes de morrer, o escreveu na New York Review. Dizia Judt que esta nova identidade, com uma relação ténue com a origem remota dos antepassados, se alicerça numa “vitimização arrogante, usando o pouco que sabem como um emblema orgulhoso de identidade: cada um é o que os seus avós sofreram.” Uma perspectiva redutora e ensimesmada, mas propulsora da acção reivindicativa. E os fanáticos das ideologias sempre adoraram acções reinvindicativas.

Em Casablanca, Ugarte (Peter Lorre) pergunta a Rick (Humphrey Bogart) se ele o despreza. Rick responde-lhe que caso lhe dedicasse algum pensamento, provavelmente desprezaria. Ugarte, nesta história, é a Academia. Rick representa o cinema e a arte; e a mim.

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Post scriptum: Enquanto escrevo este artigo reparo que a Universidade de Manchester se prepara para remover do léxico admissível as palavras "mãe", "marido" e outras palavras tidas - pasmo! - por opressoras. Em nome, claro, da inclusão. Allan Bloom – autor do convenientemente intitulado The Closing of the American Mind, de 1987 – num conjunto de ensaios intitulado Gigantes e Anões afirmou, sobre a Universidade, que “o projecto educativo de reforma do espírito em nome da abertura tem vindo a ganhar força nos últimos anos e está a obter sucesso na mudança dos curricula por todo o país.” Uma desgraça com raízes antigas e, infelizmente, sem fim à vista.

Post scriptum 2 - Na semana passada escrevi aqui, também a propósito da fogueira das identidades, que uma tradutora branca holandesa foi impedida de traduzir uma poetisa negra norte-americana. Advinhem. Esta semana a história repetiu-se em Espanha. Nem a Covid19 se propaga tanto quanto este vírus de demência.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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