
Há dez anos o Expresso fez uma viagem artística, gastronómica e musical pela Rota dos Frescos do Alentejo com o escultor. É essa reportagem, publicada na revista de 21 de agosto de 2010, que aqui reproduzimos, no dia da morte do artista, aos 83 anos
Há dez anos o Expresso fez uma viagem artística, gastronómica e musical pela Rota dos Frescos do Alentejo com o escultor. É essa reportagem, publicada na revista de 21 de agosto de 2010, que aqui reproduzimos, no dia da morte do artista, aos 83 anos
Texto
Fotos
"Estamos perante uma autêntica boda. Isto é o copo-de-água. As iguarias são tantas que não sei o que comer." Fala mestre Cutileiro. Está sentado na Igreja de Santiago, capela mortuária do centro de Évora. A profusão de elementos artísticos junta azulejaria e pintura a fresco numa amálgama de padrões decorativos com motivos catequéticos. Os olhos não sabem, como a boca, por onde começar a degustação. A festa que se celebra é a paz dos idos de 1700, 28 anos depois de uma guerra intensa chegada com a Restauração da Independência. Évora cobre-se de uma alegria barroca.
Tendo como base a parábola do filho pródigo, a temática que se estende a toda a igreja é a tentação. Catarina Vallença, historiadora de arte, vai fazendo a contextualização. Que tamanho mal pode ser perdoado senão pelo único amor capaz de tudo ultrapassar, o amor paterno.
Essa capacidade de abnegação do pai no episódio bíblico, porém, surge ofuscado por todos os símbolos da tentação. A mulher o maior deles, mas também ela a única figura retratada a mostrar o caminho da salvação.
Cariátides de seios bem desenhados ("só mesmo no Alentejo") seguram elementos alusivos à fecundidade e ao enamoramento. O repasto faz-se de melancias, romãs e marmelos - a fruta que o namorado oferecia à namorada em sinal do seu amor, muito antes do atual anel. "É por isso que ainda hoje se diz 'estar na marmelada'." Os sorrisos aparecem ainda timidamente. As quatro virtudes cardeais, prudência, fortaleza, justiça e temperança, intimidam e fazem-nos oscilar entre a tentação da carne e a salvação divina.
Só o escultor não tem dúvidas, prefere a tentação, mas à maneira clássica, "a daqueles bustos romanos em mármore", ou não fosse esse o seu material de eleição. "Isto é uma espécie de cozido à portuguesa, nem são migas com entrecosto ou uma açordinha. É por isso que até eu preciso que me chamem a atenção para aquela maminha de fora que nunca tinha visto! E não é nada hábito escapar-me!" Alentejano e a morar em Évora desde 1985, arrisca ir mais longe. "Mais do que celebrar a paz, o que aqui foi feito chama-se afirmação de poder.
A necessidade que a igreja sempre teve de provar ao pobre que quem manda é quem tem dinheiro. Daí a opulência." O caminho faz-se a pé, logo a seguir, até à Igreja de S. Mamede, no Largo Dr. Evaristo Cutileiro, familiar do nosso guia. Estranhamente a brisa não é quente nesta manhã de verão. Mas é dentro da igreja que melhor se respira. "A sinfonia ficou lá atrás. Aqui oiço uma música de fundo que não me obriga a interpretação nenhuma. É ela que entra em mim e não eu que vou ter com ela." Os frescos são de Lourenço Nunes Varela, datados de 1691, e têm como única função decorar.
Não há nada para dizer. Sente-se a calma. Só isso. E consegue-se respirar melhor num espaço de descontração. João Cutileiro olha os putti, crianças que decoram teto e paredes, e observa-lhe as imperfeições. São desproporcionados.
"Lembram-me o que o meu pai, médico, costumava dizer e tinha razão. As crianças mal nutridas ficam feias. Há nelas qualquer coisa de mal formado. No Alentejo isso via-se muito".
O casario da Rua da Mouraria ainda está intacto. As memórias são muitas. Das casas dos avós, das tias, das missas e da sua recusa em lá comparecer. As memórias vão também até à Azaruja, vila de onde a família Cutileiro é natural, terra da cortiça que o sr. Verdasca continua a trabalhar aos 87 anos, ali mesmo naquela rua.
"Tenho um sonho que nunca há-de ser cumprido - o de ter um claustro em casa", diz João Cutileiro. Estamos quase a chegar às Casas Pintadas, o ex-líbris da Rota dos Frescos eborense, nada mais nada menos do que um claustro pintado. A primeira curiosidade, explica o escultor, é que durante séculos se pensou que aqueles claustros pintados pertenciam à casa de Vasco da Gama, só recentemente se descobriu que não. A casa do navegador ficava na mesma rua mas do lado sul. "O certo é que a história parecia bater certo. Vasco da Gama bem precisaria do sabor de paz que aqui se prova quando vinha a Évora, uma vez que a corte era aqui." Ali nos jardins que hoje pertencem à Fundação Eugénio de Almeida, onde ainda habitam os frades jesuítas, e entre muros do Palácio da Inquisição, João Cutileiro sente-se verdadeiramente em casa. Fala da "pureza dos frescos", da possibilidade dada ao observador "de olhar, ver e pensar sobre o que admira".
"Aqui já não fico confuso entre os croquetes e os rissóis da boda de casamento. Este é o prato do dia. Sabe bem." E sabe bem também porque "quando se vive num sítio como o Alentejo, o espaço de fruição entre o interior e o exterior da casa é fundamental".
As pinturas murais apresentam um ambiente cortesão e a cultura das "cousas de folgar". No seu conjunto são um exemplar único da sua tipologia na Península Ibérica.
Datados da primeira metade do século XVI estão intimamente associados ao gosto pelo grotesco, é a ideia da recuperação da Antiguidade clássica, mas também à sociedade da época, amante da paródia, da liberdade de imaginação. A aparência caótica e bizarra dos motivos ali pintados assim o demonstra.
É o mundo do bobo, do bestiário, da escrita vicentina também. Uma bela garça servindo a alegoria do duelo amoroso, sereias aludindo aos perigos que a alma humana enfrenta, pequenos pássaros a atacar uma coruja falam da sabedoria e da ignorância, dois galos de briga, o veado, a raposa, a lebre e a perdiz simbolizam a luxúria, uma hidra de sete cabeças evoca os pecados mortais...
"Ia bem era um copo de tinto. Beber vinho com esta decoração por companhia deve ser cá uma coisa!". O mestre está encantado.
Volta à infância com facilidade. Quando o Palácio da Inquisição se transformou num hotel, "cada vez que o meu pai vinha a Évora o dono, muito seu amigo, deixava-o ficar num quarto de um anexo do hotel que tinha uma porta que dava para aqui. Vínhamos de casa do meu avô de manhãzinha brincar neste sítio.
Era uma delícia!" O tinto chega masmais tarde para acompanhar uma refeição simples.
O calor mesmo quando se visitam os frescos não permite outra coisa.
Já de carro, chegamos a Portel, mais precisamente à Ermida de S. Brás, atual capela do cemitério. Toda caiada até 2004, só nessa altura foi possível descobrir o que o branco escondia.
Em 1630, a pequena igreja estava completamente pintada com frescos. Grandes elementos decorativos fazem as honras da casa, à alentejana a bem dizer. De um lado as senhoras - Stª Clara, Stª Apolónia, Stª Águeda, Stª Madalena -, do outro os homens - Stº André, S. Brás e o Papa Gregório Magno.
Já a abóbada está coberta de elementos decorativos que se juntam aos motivos ornamentais, geométricos e vegetalistas. As cores são as da paisagem que espreitamos lá fora.
Não é de estranhar, explica a nossa historiadora de arte. As pinturas murais vão buscar as tonalidades aos pigmentos naturais, quer de plantas tintureiras quer de variantes de terra.
É executada sobre um revestimento ainda fresco, cujos componentes são a cal e normalmente a areia peneirada, ou o pó de mármore, de tijolo ou pozolana. O processo artístico está limitado no tempo de acordo com a secagem do revestimento. Depois, no ato de pintar é a carbonatação da cal com o anidrido carbónico do ar que vai fixar os pigmentos.
No Alentejo, a opção pela pintura a fresco traduz, como conta Catarina Vallença, uma gestão perfeita dos recursos económicos. É mais barata que qualquer outra expressão artística ("hoje já assim não seria", acresce mestre Cutileiro), e dura "uma eternidade", uma vez que se começar a deteriorar-se pode ser conservada se coberta pela cal e mais tarde novamente restaurada. A água é o seu grande inimigo.
"Ainda continua a ser comida a mais no prato, mas é uma comida mais rústica, mais simples, consigo prová-la com mais facilidade.
Por outro lado, a própria naïveté da expressão aqui utilizada ajuda-me a ver melhor.
É outra música. Havemos de lá chegar!", comenta o escultor.
Desta vez, à chegada às ruínas romanas de S. Cucufate, perto de Vila de Frades, é de água que precisamos. O calor aperta e o caminho faz-se a pé pelo meio do campo até à entrada da capela, um antigo celeiro. A ocupação romana data do século I, mas a cristã inicia-se no três séculos depois. Crê-se que a devoção ao santo degolado esteja associada à mesma protagonizada em Barcelona, de onde S. Cucufate seria natural, para ali trazida pelos monges vindos de S. Vicente de Fora, em Lisboa.
Há ainda vestígios de uma "Anunciação" e de uma "Visitação", numa clara alusão ao culto mariano. Mas extraordinário é o sol, com características marcadamente sul-americanas.
Notável é a profusão de figuras de santos. Estão lá S. Francisco, S. Bento, Santo António e S. Diogo, e S. Pedro e S. Paulo símbolos do Batismo de Cristo.
"A refeição ainda é pesada, mas os ingredientes são menos requintados, sabe-me muito melhor", diz João Cutileiro. O apetite, de resto, surge logo a seguir e a mesa posta na Encruzilhada, enche-se de gaspacho com peixe frito, açorda com bacalhau, porco, borrego e vaca grelhados, presunto, azeitonas retalhadas e melão. "A gastronomia é a primeira arte.
E, de facto, pode misturar-se tudo. Pica-se um bocadinho de cada coisa e é como se estivéssemos na tal boda!", continua. "Só falta abrirmos caminho para as pinturas imorais!" Antes que elas surjam, porém, à nossa espera está a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Assunção do Alvito. Lá dentro encontra-se uma obra-prima nacional encomendada pelos barões de Alvito para ornamentar as suas capelas tumulárias entre 1481 e 1489. É uma pintura retabular a representar Santo André, Santiago e S. Sebastião , estando as personagens demarcadas entre elas através dos nichos onde estão inseridas. A composição apresenta umfundo em perspetiva onde se destaca a paisagem campestre e possivelmente num outro plano a representação de uma cidade. "É amelhor sobremesa que poderia ter comido. Simples, saborosa, sem nada à sua volta que me distraia e não me deixe saboreá-la como deve ser". João Cutileiro está rendido.
E é com esse espírito que olha os frescos da Ermida de S. Sebastião. O ano é o de 1553, ano de maleita grave como o nome do santo indica, o padroeiro defensor da peste.
Mas são os anjos músicos, uma temática recorrente nos frescos alentejanos, que decora todo o interior da capela. Anjos com calos nos pés, deformados também. Tocam harpa, órgão, trompete, clarinete, "uma música de fundo", como esclarece logo o escultor em plena admiração do púlpito que se apresenta ameio da ermida. Reina a simplicidade. A de Cutileiro e a alentejana.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: acarita@expresso.impresa.pt