Tal como em tantos outros momentos decisivos, também aqui a vida aconteceu nos intervalos. No caso, literais. Já ninguém se lembra do filme nem das sessões. Só do cinema — o Roma, um dos novíssimos das Avenidas Novas, em Lisboa — e dos ursos. Num cenário ártico, uns quantos ursos brancos e um único ursinho pardo protagonizam uma ingénua saga sobre diferença, disfarçada de reclame publicitário — ou vice-versa. “Veio o anúncio do intervalo, passaram um ou dois filmes, o público começou a sair e, quando viu aparecer os ursos, cheirou-lhe a desenho animado”, lembraria à revista “Filme” um dos produtores, Salvador de Almeida Fernandes. “Quando viu aparecer o Sonasol, sinal de que o filme era português, [o público] soltou um ‘Aaah!’, que encheu o Roma de alto a baixo e a nós de justificada alegria.” O sucesso retumbante determinaria não só a fundação do primeiro estúdio de animação profissional do país mas também o arranque definitivo da carreira do mais bem-sucedido animador português da década e um dos melhores de que há memória, para sempre um outsider, o antigo enfermeiro da Marinha Mercante Mário Neves.
“A Aventura do Ursinho Pardo” passa no Roma em 1959, entre outros reclames e desenhos animados característicos dos programas cinematográficos da época. Mário Neves e Almeida Fernandes põem no jornal um anúncio a divulgar a estreia. À noite, na sala, tremem de expectativa. Não é para menos. Os três minutos são um trabalho de amor. Ou, de novo nas palavras de Almeida Fernandes, o produto “de um grupo admirável de boas vontades”, incluindo as de duas decalcadoras, Maria Helena Certã e Maria de Lourdes Oliveira, e do ilustrador Rosa Duarte, amigo de infância do animador, conhecido na época pelas capas dos policiais da Escaravelho d’Ouro e que aqui cria os cenários. Ao todo, somam-se mais de 3500 desenhos. Neves, de 35 anos, baixinho, chapado de Charles Aznavour, trabalha em casa, noite dentro, do outro lado da Avenida de Roma, sem outra companhia que o Português Suave sem filtro. “Trabalhava na mesa da sala de jantar, que transformava em miniestúdio”, lembra por telefone o filho, Mário Jorge Neves, também animador, hoje com 73 anos. “Eu só desajudava. Depois de a coisa ter sido filmada, espalhei um rolo de filme pela sala”, conta no livro “Lx 60 — A Vida em Lisboa Nunca Mais foi a Mesma” (D. Quixote). “O meu pai deu-me uma estalada, e com razão. Foi a única vez.”
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