“Un saludo a todos los lectores de Expresso”: um desenho oferecido por Quino (1932-2020) e outras histórias do criador da Mafalda
Mafalda para o Expresso. Em 1984, Clara Ferreira Alves entrevistou Quino neste jornal. O cartoonista tinha vindo para ser jurado num festival de cinema e ofereceu um desenho dedicado aos leitores do Expresso. Explicou então que a Mafalda foi pensada para adultos mas que as crianças, a partir dos 9 ou dez anos, também a leem.
Chamava-se Joaquin Salvador Lavado, nós todos chamamos-lhe Quino. Criou Mafalda, uma personagem de BD que se tornou companhia de gerações. O Expresso entrevistou-o em outubro de 2014, precisamente por ocasião do cinquentenário de Mafalda, uma contestatária que nunca passou dos cinco anos. Quino morreu esta quarta-feira e estas são algumas das suas lições que aqui republicamos tal como saiu originalmente naquele 2014: “A nossa obrigação é acreditar que o mundo vai ser melhor, embora no fundo saibamos que tudo continuará como até agora”
Na passada segunda-feira, Mafalda fez 50 anos. Se fosse uma pessoa de carne e osso, haveria com certeza histórias deprimentes. Sendo uma personagem de cartoon, apenas podemos fantasiar. A fantasia mais qualificada será a do seu criador.
Perguntámos a Quino como conceberia Mafalda hoje em dia. "Não tenho ideia", respondeu. "Há quem proponha que a faça casada, com filhos de mentalidade medíocre atados ao consumo e que Mafalda tivesse de sobreviver a isso. Outros sugerem que tenha sido guerrilheira e conte como sobreviveu à repressão." Ele lembra a importância do contexto. "A historieta (tira cómica) é uma forma de comentar a atualidade, e Mafalda comentava uma atualidade de há 50 anos. Embora me agrade que a continuem a ler, também é triste pensar que os temas de que falava Mafalda continuam a existir, por vezes com outros nomes, mas são os mesmos.
Lamentavelmente, muitas coisas não mudaram. O mundo que existia em 1973, quando deixei de fazer a tira, está igual ou pior do que então. Também eu tenho mais 40 anos, e claro que a minha visão do que me rodeia não é a mesma." Não soa nada otimista, e explica a relutância em pôr filhos de carne e osso no mundo - uma decisão que Quino e a sua esposa tomaram cedo - ou em prolongar a vida de crias ficcionais. Quino desistiu de Mafalda quando ela era muito nova; tinha dez anos de tempo de existência, e apenas cinco de idade como personagem. De 1973 até hoje, nem mais uma tira.
Excetuando uma ou outra participação em campanhas de beneficência - da UNESCO, instituições de saúde, etc. -, Mafalda não teve novas interações.
"Estava esgotada", explica o desenhador. "Foi uma decisão que me custou muito, mas não queria que Mafalda fosse como essas historietas que as pessoas leem por hábito, mas que já não têm sentido.
Aliás, fazer uma historieta não é o mesmo que fazer uma página de humor. É um trabalho muito rotineiro, e portanto uma pessoa sente-se mais limitada. A historieta obriga a desenhar sempre os mesmos personagens da mesma ma neira. É como se um carpinteiro tivesse que fazer sempre a mesma mesa, e eu também queria fazer portas, cadeiras, banquinhos." Qualquer breve excursão na internet revela centenas de exemplos das outras vertentes do trabalho de Quino: gags compostos por uma única imagem ou por uma série de quadradinhos, explorando grande variedade de temas sociais, políticos e familiares, muitas vezes com um investimento em criatividade visual que dificilmente se imagina nos confins de uma tira regular sempre com os mesmos personagens e no mesmo registo.
Se o artista já trabalhava com essa liberdade há muito tempo, compreende-se que sentisse Mafalda como um constrangimento.
"Ela foi só um parênteses de dez anos em 60 de profissão", diz ao Expresso. "Quando a comecei, já publicava humor há 11 anos, e enquanto a mantive jamais deixei de fazer esse tipo de páginas em que falava de monetarismo e de indiferença face a dramas sociais.
Com a agravante de que em temas de humanidade, como disse antes, a situação não muda."
INTEMPORAL AOS 50 ANOS
Durante a sua década original de existência, Mafalda não cresceu.
Espantoso é que também pouco tenha envelhecido ao longo das quatro décadas seguintes.
Quando se comemora o cinquentenário do seu nascimento e Quino tem exposições pelo mundo fora e recebe uma infinidade de honras - incluindo o prestigiadíssimo prémio Príncipe das Astúrias, atribuído em maio -, percebemos que muitas das questões abordadas pela menina de 5 anos permanecem atuais.
Por exemplo, a nível geopolítico, o reacender de conflitos armados, incluindo no Médio Oriente e na Ásia, e até o regresso da Guerra Fria. A nível social, o crescimento das desigualdades e o terror de uma classe média que contempla a perspetiva de passar a um nível socioeconómico inferior.
As tiras da Mafalda referem frequentemente esse terror. Aí, as afinidades entre a Argentina e países como os do Sul da Europa são notórias. Quando se vive numa perpétua dissonância entre um ideal de vida situado a norte (EUA, no caso da Argentina; países de França para cima, no nosso caso) e a realidade de economias nacionais estagnadas, bem como sociedades cuja tradição democrática é recente, permitindo a sobrevivência de fatores viciantes nas relações a todos os níveis, desde o político ao laboral, ao pessoal, a desilusão é inevitável. Quanto aos objetos de consumo mais procurados, às vezes são diferentes hoje - dantes não havia computadores -, mas na maioria dos casos nem por isso. Mafalda queria uma televisão, hoje em dia quer-se uma televisão com um gigantesco ecrã de plasma.
Férias, viagens e automóveis continuam no top dos desejos, e para aliviar a tensão há quem defenda estilos de vida alternativos.
Os paralelos podem ajudar a explicar que muitos de nós não apenas nos lembremos da Mafalda, mas recordemos bem tiras concretas. Ela foi importante nas nossas vidas. Quando a mãe da Mafalda chega a casa carregada de compras e a mandar vir com os preços, a filha diz-lhe com um sorriso: "Vejo que a crise te inspira, mãe. Como te ocorrem frases tão originais?", e leva com as compras na cabeça. Cinismo e timing são perfeitos. O mesmo acontece naquela tira em que pais e filha estão deitados - só se veem os olhos dos personagens e um relógio - e a menina pergunta ao pai se os chineses querem mesmo dominar o mundo. Quando ele responde que sim, ela pergunta se é verdade que enquanto aqui é noite lá na China é de dia. O último quadradinho mostra os olhos alarmados de um pai que horas depois ainda não adormeceu.
Alguns temas não só se mantêm operantes como ganharam atualidade acrescida. Por exemplo, há uma série de tiras sobre os licenciados que emigram por não conseguirem encontrar emprego ao nível das suas qualificações. Pelos vistos, foi algo que a Argentina sofreu décadas antes de Portugal, onde a questão não se colocava nos anos 60 e 70. Numa das tiras, vemos Mafalda no seu característico estilo sentencioso, de punho erguido, a proclamar que assim o país vai para... Nesse momento percebe que a mãe está atrás de si e conclui: ...para o estrangeiro.
QUINO E A POLÍTICA
Joaquin Salvador Lavado, a quem a família sempre chamou Quino para o distinguir de um tio que também era Joaquin e trabalhava como desenhador, nasceu a 17 de julho de 1932 em Mendonza, província do Oeste argentino, numa família que ele próprio descreve como de classe média.
Os seus pais eram republicanos espanhóis que se instalaram na Argentina. Saíram de Espanha a tempo, pois em 1936 rebentou a guerra civil extremamente sangrenta em que o general Franco sairia triunfador, e que seria o prelúdio da II Guerra Mundial.
Numa autobiografia sumária posta ao lado de um autorretrato desenhado, Quino explicou que em sua casa "todos os espanhóis eram pessoas estupendas", mas por acaso havia uns que eram maus, os quais andavam a matar os bons e eram apoiados pelos padres e pelas freiras, bem como pelos alemães e pelos italianos, eles próprios maus. Os catalães, esses, ajudavam os espanhóis bons, mas em 1938 "salva-se quem puder! Ganharam os maus". Logo a seguir, na escola, Quino aprendeu que os verdadeiros bons eram os argentinos, e também os ingleses, antes maus ("porque tinham roubado as Malvinas e Gibraltar") mas tornados bons "porque combatiam os alemães, os italianos e os japoneses".
Como explicou ao Expresso: "Cresci numa família muito politizada.
Isso deu-me um sentido político da vida que me agrada reproduzir em cada um dos meus desenhos." O desenho foi justamente a forma que descobriu logo na infância para encontrar luz na confusão - "em silêncio", pois se abrisse a boca corria o risco de dizer asneiras.
As perceções iniciais nunca o abandonaram. "Penso que as relações de poder se verificam em todos os âmbitos", diz. "Um indivíduo perante um funcionário público, que é sempre o poderoso, ou perante um porteiro, ou perante um médico.
Interessam-me os papéis em que um está sempre subordinado ao que o outro opine." Inspirado pelo tio, Quino resolveu ser desenhador e foi para Belas Artes, mas depressa se cansou dos exercícios e abandonou a escola. Uma primeira tentativa falhada de se instalar como independente em Buenos Aires foi seguida pelo serviço militar, e depois por novas tentativas que acabaram por dar fruto.
Concretizou o sonho de se tornar desenhador humorístico.
E já estava relativamente estabelecido quando, em 1962, lhe pediram que criasse uma tira cómica para utilizar em anúncios de uma marca de eletrodomésticos - algo na linha dos Peanuts, com uma família cativante. Ele concebeu Mafalda e os seus pais, gente de classe média típica que aspirava a bens de consumo e vivia com dificuldades.
A mãe tinha frequentado a universidade, mas só o pai trabalhava, como era normal na altura.
A ideia acabou por não ser aceite e Quino meteu-a na gaveta. Mas dois anos depois um jornal de Buenos Aires chamado "Primera Plana" pediu-lhe que criasse uma tira regular, já não com fins publicitários, e ele foi buscar o que tinha guardado. Deste modo, Mafalda, na origem concebida para vender frigoríficos e máquinas de lavar, foi recuperada para ser publicada autonomamente.
O "Primera Plana" era um jornal sério, e Mafalda começou desde logo a comentar assuntos sérios: política internacional, questões sociais... Não por acaso, também eram os temas que interessavam ao seu criador.
As perguntas assertivas de Mafalda sobre questões essenciais, aliadas às suas idiossincrasias - por exemplo, o ódio à sopa -, garantiram-lhe sucesso imediato junto dos leitores. Talvez mais que na graça do traço, a atração da tira estava nos personagens e nas situações, bem como nos textos, onde não era raro encontrar aforismos exemplares. Exemplos: "Quase toda a gente gosta de cães, embora ninguém saiba o que quer dizer Ão!"; "A vida é linda. O problema é que muitos confundem lindo com fácil"; "A sopa é para a infância o que o comunismo é para a democracia"; e o célebre "Parem o mundo! Quero sair."
MAFALDA LEU CHE
Mafalda foi evoluindo. Ganhou um irmão mais novo e vários amigos, entre os quais o tímido Filipe, o burgesso Manolito, a conservadora Susana e a diminuta Liberdade. Por vezes, as frases memoráveis surgem na boca desses personagens. Mafalda diz a Filipe que é melhor morrer de pé do que viver de joelhos, e ele responde: "Será muito desonroso subsistir sentado?" Miguelito declara: "Não quero brinquedos que me ensinem a matar. Quero ser autodidata." E Filipe reconhece: "Até as minhas fraquezas são mais fortes do que eu." Ao fim de algum tempo, as tiras foram recolhidas em livro e a Itália publicou a primeira edição estrangeira, abençoada com um prefácio de Umberto Eco, que a considerou emblemática do seu tempo. Vale a pena citar: "A Mafalda não é só um personagem de quadradinhos; talvez seja o personagem dos anos 70 na sociedade argentina. Se, para a definir, se usou o adjetivo 'contestatária', não foi por uma questão de uniformização em relação à moda do anticonformismo a qualquer preço. Mafalda é realmente uma heroína que rejeita o mundo assim como ele é." Eco sugere comparar Mafalda com a criança norte-americana que a inspirou. "Charlie Brown é norte-americano, Mafalda é sul--americana. Charlie Brown pertence a um país próspero, a uma sociedade opulenta, na qual tenta desesperadamente integrar-se mendigando solidariedade e felicidade.
Mafalda pertence a um país denso de contrastes sociais que, apesar de tudo, gostaria de a integrar e torná-la feliz, mas ela recusa e rejeita todas as ofertas.
Charlie Brown vive num universo infantil próprio, do qual estão rigorosamente excluídos os adultos (a não ser pelo facto de as crianças aspirarem a tornar-se adultos); Mafalda vive num contínuo diálogo com o mundo adulto, mundo que não estima, não respeita, humilha e rejeita reivindicando o seu direito de continuar sendo uma menina que não quer se responsabilizar por um universo adulterado pelos pais. Charlie Brown leu evidentemente os revisionistas freudianos e anda à procura de uma harmonia perdida; Mafalda, muito provavelmente, leu o Che." A ligação a um universo latino, diz Eco, "faz com que a Mafalda seja, para nós, muito mais compreensível do que muitos personagens de banda desenhada americanos". E conclui: "Como os nossos filhos se preparam para se tornarem - por escolha nossa - outras tantas Mafaldas, não parece imprudente tratar a Mafalda com o respeito que se deve a um personagem real."
ATÉ SEMPRE, MAFALDA!
Foi isso mesmo que outros intelectuais ilustres, como Júlio Cortazar e García Márquez, têm feito até hoje. Quanto aos colegas de profissão, basta citar Gary Larsson, Garry Trudeau e, obviamente, Charles Schulz, o criador dos Peanuts. Todos eles colocam Quino a par dos maiores. Com o advento da fama internacional, ele podia ter continuado a fazer Mafalda indefinidamente. Mas em 1973 terminou. À sua escala, foi um pouco como a decisão tomada pelos Beatles - ídolos absolutos de Mafalda - em 1970. Desistiu no auge da forma, por motivos que referiu acima e também por outros, entre eles a recusa de usar colaboradores e a dificuldade que implicava para ele desenhar os personagens sempre da mesma forma. (Em anos recentes, chegou a admitir que decalcava de tiras anteriores para garantir a semelhança física). Também há quem especule sobre a relação entre o fim da tira e a aproximação da ditadura militar argentina. Entre 1976 e 1983, dezenas de milhares de pessoas seriam assassinadas.
Durante esse período, Quino e a mulher viveram fora do país, em Itália e Espanha. A sua fama e a de Mafalda foram sempre crescendo, à medida que as traduções se multiplicavam.
Tiras frescas é que nunca mais houve. Ao Expresso ele referiu as circunstâncias em que aceitou, ou não, voltar a desenhar a personagem: "Para alguns amigos, para pedidos específicos de campanhas de saúde ou de bem público, porque me interessava o tema. Mas nunca aceitei nem aceito desenhá-la para campanhas de publicidade, nem tão-pouco aceito nenhuma adaptação, seja ao teatro, ao cinema, etc. A única concessão foram os desenhos animados, porque continuam a ser desenhos. Não tenho nenhuma espinha encravada nem me arrependo de nada." Por fim, perguntámos-lhes como um pessimista como ele via o mundo hoje em dia, e se achava que estamos numa época boa para o humor. Resposta: "É verdade, sou um famoso pessimista, e com a ilusão de que os meus trabalhos pudessem servir para melhorar alguma coisa." Sobre o mundo atual, diz que só quer paz. E termina com uma frase no espírito de Mafalda: "A nossa obrigação é acreditar que o mundo vai ser melhor, embora no fundo saibamos que tudo continuará como até agora."