Cultura

Escavar o passado para iluminar o presente. Dois filmes fabulosos nos primeiros dias do Festival de Cinema de Berlim

"First Cow", de Kelly Reichardt
"First Cow", de Kelly Reichardt
Allyson Riggs

Um par de filmes pede o Urso de Ouro aos primeiros dias do festival: “First Cow”, de Kelly Reichardt e “Undine”, de Christian Petzold

“First Cow” arranca com uma epígrafe de William Blake e passa-se em 1820, vinte e cinco anos antes desse western tão 'sem género' chamado “O Atalho” (“Meek's Cutoff”, 2010) que Kelly Reichardt também realizou. Ou seja: estamos longe da segunda metade do século XIX em que a esmagadora maioria dos westerns do cinema clássico decorre. E “First Cow”, é um western? Boa pergunta, para começar.

Talvez seja prudente não arriscar dizer que o é. Até porque o filme começa no verdejante e montanhoso Oregon dos nossos dias, nesse estado americano em que quase todos os filmes de Kelly Reichardt se passam, com a descoberta simbólica de dois esqueletos que são o trampolim para um salto do tempo.

Em 1820, a América não era o país que imaginamos e não tinha nada que ver com aquela bonita imagem construída com o Monument Valley em pano de fundo que Hollywood fixou em ecrãs panorâmicos (“First Cow”, pelo contrário, foi filmado em 4:3). Era um território muito mais selvagem e, no caso de Oregon, quase virgem. “First Cow” passa-se nestes ambientes e o background histórico é importante: imagine-se que, em 1820, o Oregon ainda nem tinha vacas. O filme adapta uma secção específica da novela “The Half-Life”, de Jonathan Raymond, colaborador regular de Kelly e argumentista de quase todos os seus filmes desde “Old Joy”. Fala-nos de um país de imigrantes, europeus e também asiáticos, atraídos por uma quimera do ouro que já começara. No entanto, nos territórios em que “First Cow” se passa, poucos se aventuravam.

Mas foi lá que Raymond plantou o cozinheiro Otis ‘Cookie’ Figowitz (John Magaro) e o misterioso chinês King Lu (Orion Lee), que o primeiro até julga tratar-se de um índio quando eles se conhecem. Eles dão-se bem, não têm um tostão, resolvem fazer equipa, sonham com a fortuna. E a fortuna está de facto numa vaca que chega de jangada – é a primeira a ser avistada naquelas bandas – para ser exibida como troféu pelo arrogante feitor inglês (Toby Jones) que a mandou vir de São Francisco. Figowitz sabe de pastelaria e Lu sugere-lhe que eles podem tentar a sorte a fritar biscoitos se todas as noites conseguirem em segredo ordenhar a vaca que não é deles. Tiro e queda: o negócio torna-se chorudo.

Mas o que cativa em “First Cow” - que é desde já um dos maiores filmes de 2020 - não é o entusiasmo efémero da riqueza daqueles dois homens tão diferentes, à medida que as moedas lhes vão entrando nos bolsos. O que cativa é a relação humana que cresce com eles e o modo como essa amizade é posta à prova pela ganância e pela lógica de um sistema económico que, mais do que a origem de um capitalismo sem escrúpulos, é a origem do próprio american dream. Não sabemos se o cozinheiro e o chinês, eles que partilham a mesma barraca naquele Oregon sem mulheres, são apenas amigos ou mais do que isso. Kelly Reichardt deixa a sugestão aberta. Mas sabemos que eles não se atraiçoam.

“First Cow” é um filme impecavelmente escrito. John Magaro e Orion Lee têm interpretações notáveis que a inventiva e o humor do texto favorecem. Kelly filma a vaca (que se chama Evie, diz o genérico) como uma personagem por inteiro. A reconstituição histórica de 1820, com aqueles mercados enlameados em que Figowitz e Lu vendem os biscoitos, é minuciosa como é também minucioso aquilo que as personagens vestem, os seus utensílios, o modo como falam, como se deslocam. A ideia do western é desmistificada de raiz, “First Cow” não tem pólvora nem espingardas, quer dar-nos a real thing. Só por isso, este já seria um extraordinário filme e um momento de lucidez raro no cinema contemporâneo.

Acontece que todos os filmes de Kelly têm também um cunho político que se revela ser muito mais forte do que parece, e a real thing aqui tem outra consequência. “First Cow” vem recordar-nos que, duzentos anos atrás, era desta massa que a América era feita: de ingleses e de irlandeses de todas as classes, dos nativos que já lá estavam quando aqueles chegaram, de chineses, de negros... Vem recordar-nos que sempre houve quem fosse dono da vaca, sempre houve quem a ordenhasse às escondidas e que o país só se desenvolveu pela fortuna e pela força de trabalho de uns e de outros. Face à conjuntura política da América atual, há filme mais oportuno e incómodo do que este?

“UNDINE”, DE CHRISTIAN PETZOLD: O FANTASMA A TENTAR SER HUMANO

A relação do novo trabalho de Christian Petzold com o passado é complexa, misteriosa e o papel de Berlim - embora pareça subterrâneo – neste filme tem uma importância que nenhuma outra cidade jamais teve na obra do realizador alemão. Há aqui um combate entre o humano e o monstruoso em que nem sempre é líquido identificar quem é o quê. Nada de espantar: o cinema de Petzold foi desde sempre permeável a fantasmas, sobretudo aos da História, com amores magoados, quando eles não são impossíveis. “Barbara”, “Phoenix” e “Transit”, os três últimos filmes de Petzold, são provas disso.

Mas desta vez (como em “Phoenix”) há um mito no título. No início, uma mulher ouve o namorado dizer-lhe à mesa de um café que a vai abandonar porque ele encontrou outra, ao que a primeira lhe responde: “Se me deixares, terei de matar-te.” Nestes dias puritanos em que vivemos, não é coisa que se diga... Manifestação de um romantismo exacerbado que sempre se escondeu atrás da frieza e do rigor implacável dos planos de Petzold? Sem dúvida, a obsessão faz há muito parte deste universo.

Mas a obsessão também é evocação da “Undine” (ou Ondina) do título (papel extraordinário de Paula Beer), espírito feminino e aquático, a quem foi concedida a possibilidade de casamento com um humano, porém sob uma condição: se o marido por ela escolhido a trair, ela terá que assassiná-lo e regressar à água. A fábula inspirou Hans Christian Anderson em “A Pequena Sereia”, é o lado negro do conto infantil. Está na base de “The Fisherman and His Soul”, de Oscar Wilde. Petzold falou em entrevista de um livro de Ingeborg Bachmann, “Undile Leaves”, que conta a mesms história pela perspetiva dela e não da que o mundo faz dela. E também Neil Jordan fez um “Ondine” britânico sobre o assunto que agora Petzold traz para a atualidade.

Paula Beer em "Undine", de Cristian Petzold

Mas voltemos ao filme e aos seus acidentes, invariavelmente ligados à água: há aquários, turbinas aquáticas, piscinas... E enigmas em torno de todos eles. No mesmo café em que Undine ouve a nega maldita, ela conhece outro homem, Christoph (Franz Rogowski reedita com Paula Beer a dupla de atores de “Transit”). Salva-o quando um aquário desaba sobre a cabeça dele, deixando ambos prostrados, numa cena sublime que é a mais forte desta Berlinale até à data e que também é uma cena de amor à primeira vista. Mais tarde é Christoph, escafandrista que desce com frequência às águas de uma barragem local, quem salva Undine de outra ameaça de morte.

É preciso apontar igualmente que Undine é historiadora e guia turística numa instituição estatal de planeamento e desenvolvimento urbano, isto é, sabe como entrar e sair de Berlim, conhece a história da cidade e também a dos seus escombros. Conhece a arquitetura moderna do pós II-Guerra da cidade, distinguindo com clareza a que tende para imitar e reconstruir o que antes foi arrasado. Ela sabe que Berlim é chamada a Veneza do norte pelos seus múltiplos canais. A cidade está construida sobre um lençol hídrico muito rico e pantanoso.

Todos estes signos começam então a reverberar numa abundante efervescência porque “Undine” é um filme de edificações e de desmoronamentos, de passados demolidos que deram origem a coisas reconstruídas – são um espelho da paisagem emocional que a personagem central está a viver: traída pelo homem da sua vida, ela sabe que terá de matá-lo e regressar às águas, maldição que ela não deseja que se cumpra já que, entretanto, apaixonou-se por um novo amor inocente.

“Undine” é um filme de sortilégios e de simulacros, com estranhos chamamentos e inexplicáveis tentações

“Undine” é um filme de sortilégios e de simulacros, com estranhos chamamentos e inexplicáveis tentações. E uma das obras mais arriscadas, mais radicais de Petzold desde sempre, e sem querer dizer mais, há muitos twists e bruscas mudanças de ponto de vista a testarem a nossa perceção. Mas pense-se antes nisto: o filme tem o nome de uma personagem central que seguimos fervorosamente e que pode muito bem nem existir sequer. Também há partes que tomamos por momentos da realidade das personagens e que são sonhos. E partes que julgamos ser sonhos e afinal não o são.

“Vou-lhe responder a essa como um espectador”, contou-nos Petzold. “Quando estávamos a filmar 'Transit' em Marselha, criámos um pequeno cinema no último piso do nosso hotel. Víamos filmes juntos e eu era o 'curador'. O primeiro que programei foi 'Mulholland Drive', de David Lynch. A Paula [Beer] e o Franz [Rogowski] ficaram muito perturbados. E a história de 'Mulholland Drive' até é muito simples. Lynch usa o cinema como o sonho dos que se sentem culpados e a realidade sempre acaba por encontrar uma maneira de entrar nesse sonho.”

“Undine” foi processado da mesma forma. É um filme condenado a oscilar entre a realidade e aquilo que não é real. Mas isso não somos nós que o dizemos. Nem é “Undine”, nem Petzold. Quem o disse foi Freud, há 120 anos. Em “A Interpretação dos Sonhos”.

Ainda sobre “Undine”, este filme romântico, sublime – é para o Urso de Ouro - e que tem na banda sonora Bach e Bee Gees, deixo-vos mais esta. Fala Petzold: “O capitalismo está a roubar a magia do nosso mundo. Está a transformar os nossos sonhos, as nossas emoções, os nossos sentimentos em mercadorias comercializáveis que acabarão por dar à costa numa qualquer praia da Tailândia como um lixo de plástico qualquer. Então quis injetar um pouco de magia no nosso mundo. Para que tenha algum efeito no que nos resta. Eu sou de Düsseldorf, como os Kraftwerk. É uma banda que me marcou muito. Eles fizeram música eletrónica sobre cruzamentos, semáforos ou cidades fraturadas. E conseguiram ser românticos. Nunca retro. Sempre contemporâneos.”

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate