Não estavam juntos há mais de uma década, estão numa fase em que é “mais económico” contabilizar nesta medida de tempo, quis a vontade de ambos, e de uns quantos cúmplices, que se encontrassem no dia em que Fernando Pessoa nasceu. Pelas 11 horas, desse dia 13 de Junho do ano da graça de 2019, Fernando Lemos e Eduardo Lourenço encontraram-se para uma boa conversa. O tempo, esse, deu tréguas ao cansaço e à distância: durante cerca de uma hora e meia, falaram-se, ouviram, riram, verteram-se umas lágrimas, esquecendo quem mais estava na sala com um sol que timidamente espreitava pelas cortinas. A que reinava na sala, a deles, era uma luz forte, da alegria do encontro, do respeito e da amizade que une estes nomes maiores da nossa cultura contemporânea. À chegada, Fernando Lemos, que se refere a si mesmo como alguém que não está com cara de poucos amigos, e sim com “cara de um amigo só”, cumprimenta Eduardo Lourenço perguntando-lhe como está, ao que este, do alto dos seus 96 anos tão vividos, lhe diz “em trânsito”, resposta que serve de título a este testemunho, e foi disso mesmo que se tratou, de “uma conversa em trânsito”.
Ambos saíram de Portugal para geografias distintas, com destinos diferentes, das quais resultaram outras vidas e vivências. Buscavam outro lugar, onde a ditadura de Salazar não limitasse o seu sentido de liberdade, o seu pensamento e a sua criatividade. Terão encontrado, como bem o prova o imenso legado de ambos na nossa cultura, mas “somos do lugar onde nascemos”, diz a certa altura Fernando Lemos. “Para sempre?”, fica a dúvida de Eduardo Lourenço. Onde não parece terem dúvidas é que a idade os tornou mais transparentes, alguns chamam-lhe memória, Lemos reclama que é a vida. E a sua vida, feita no Brasil, tem tatuada as vindas a Portugal, como aquela que fez logo a seguir ao 25 de Abril e andou com José Cardoso Pires a ver as pessoas chorarem na rua, ou esta que fez agora para “vir pôr o Amor em dia”. Tem combinado com Mário Cesariny ir vender surrealismo para o Cemitério dos Prazeres porque continua a acreditar no desconhecido e no sonho, esse que é o “único território onde nada se esconde, tudo se revela, tudo é verdade”. Lembra-se de ler às velhinhas do bairro as notícias no jornal que embrulhava o peixe, e desde muito cedo soube que “as letras nos ensinam porque mostram que existem”. Parece perguntar a Eduardo Lourenço, “já aprendemos as palavras novas, agora é hora de procurar as palavras, ir atrás do que já existe”.
Em dado momento, Fernando Lemos conta que foi através da arte, essa que, tal como a beleza, é um diálogo, que conseguiu mostrar que era capaz, pese embora a doença que o tolhou cedo. Sempre com um sorriso nos lábios e o humor pronto, ou não fosse este a (sua) salvação, vaticina “Eduardo, a vida é uma curva. Nós somos o movimento da curva, uma curva do olhar, do pensamento”. E da curva, qual surrealista em plena criação, chega à ostra, à pérola que é criada na escuridão, à ideia súmula de que a “sombra é outra pele, é a luz que vem de dentro”. Porque na escuridão também passa um fio de energia. É nesse momento que Eduardo Lourenço, porventura recuando aos seus tempos em terras de França, lhe diz: “Só assim percebemos que aqueles que saíram do domínio pátrio, tiveram que inventar uma vida nova”. “Somos sobreviventes” feitos “não só da presença, mas sobretudo dos buracos que nos faltam”. Vem à conversa outro dos grandes, Fernando Pessoa, a grande paixão de Eduardo Lourenço. “Imagino que ele lá onde está, fala com todos”, qual homem do leme.
Despedem-se a falar de Jorge de Sena e de José Saramago. Despedem-se sem conseguirem “encontrar a última palavra”. Afinal, estão, estamos, em trânsito. “Para sempre?”, questionaria novamente Eduardo Lourenço. “Somos uma certa dúvida, ou uma dúvida certa”, diz a certa altura Fernando Lemos, como se de uma resposta se tratasse. Apertam as mãos, sorriem, a luz desvanece-se aos poucos. Eduardo diz que pensa mesmo sem querer, Fernando diz “Amei” como quem come um pastel de nata. Nós amámos e os amaremos sempre, e sobre isso não há dúvidas.
Ao Eduardo Lourenço e ao Fernando Lemos, um abraço que agarra a vida, para depois a voltar a soltar, ainda com mais força.
Ana Matos escreve de acordo com a antiga ortografia