Nasceu em Lisboa, em 1926, em Campo de Ourique. E depressa conquistou um lugar na reduzida cena artística nacional. Aos 18 anos já conversava com António Dacosta, Marcelino Vespeira, António Pedro ou Fernando Azevedo. Escolheu os surrealistas por afeto e convicção. Procurou, então, dar voz aos camaradas “proibidos” e quando se decidiu pela fotografia retratou nomes como Casais Monteiro, Jorge de Sena, Alexandre O’Neill, José Cardoso Pires, Vieira da Silva ou Sophia de Mello Breyner Andresen. A oposição ao regime de Salazar fez dele um ativo político também, mas por pouco tempo. A sua paixão pela vida e a curiosidade de jovem, fizeram com que embarcasse para o Brasil num cargueiro e de lá nunca mais voltasse. Em visita a Portugal, por ocasião da inauguração do Centro Português do Surrealismo, na Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, conversámos com ele sobre a vida, passado, presente e futuro.O sonho guiou-o pelo mundo do surrealismo, ao qual ficará ligado para sempre e tornou-o um mito
Nasceu na Rua do Sol ao Rato. Quais são as primeiras imagens que recorda?
De nascença, de infância, as primeiras imagens são a própria mãe. A mãe é a nossa primeira imagem de vivência. O resto é o mundo que vai aparecer. Mas ficamos sempre a guardar uma primeira imagem cada vez que abrimos os olhos e acordamos. Acho que a imagem tem um nome: futuro.
Porquê futuro?
Porque quando temos um passado esse passado é aquilo que fica e que nos dá a liberdade de criar o futuro. A única vantagem do passado é a de nos tornar livres. Depois temos o presente. O presente não é mais do que o arquivo, o museu, a lembrança, o acervo disponível e o futuro é exatamente aquilo que nós somos, todos os dias. Quando a gente se levanta, a gente é o futuro. Então essa é a grande lembrança do que é que significa a memória, a nossa infância. Estamos sempre a nascer, porque o futuro está à espera. Nós não vamos atrás dele. Então as minhas primeiras imagens são exatamente essas: a consciência do futuro.
A sua primeira fotografia foi tirada da janela da sua casa. Porquê?
A minha primeira fotografia que está marcada no meu catálogo foi tirada no dia seguinte à compra da máquina fotográfica. Foi quando resolvi entrar na fotografia. Voltei das Berlengas onde tinha pensado nisso. Então quando cheguei a casa fui comprar uma câmara e de manhã cedo, na única janela que tinha com paisagem - eu morava no último andar de um prédio, uma mansarda -, fiz a minha primeira fotografia, que é exatamente na Rua do Sol ao Rato onde nasci.
Qual era o seu propósito?
A minha ideia foi a de guardar essa primeira imagem já como uma despedida. Sou um lisboeta. Mais do que português, sou um lisboeta. Acho que Lisboa é o lugar de onde se saiu e o Porto é o lugar onde se ficou, por várias razões de ordem industrial, cultural, mas principalmente porque aqui [no Porto] se fixou uma coisa importante que é viver e morar. Em Lisboa não se mora. Lisboa é um lugar de partida. E, com o tempo, ficou a ser um lugar só de escritórios, quase sem residência. Lisboa estendeu-se em volta. E a gente vê que o Porto é o lugar onde, por excelência, se mora. A construção, a sua forma física, independentemente do traço da arquitetura, é o lugar que dá a nobreza à residência, o amor de morar, que resolve toda a poética da vida. A casa é o nosso palco, é o lugar onde a gente dramatiza e representa a nossa vida. Lisboa não tem muito isso, porque toda a gente partiu, toda a gente foi. Esse mito de ir às descobertas e às conquistas é uma forma meio ilusória, porque o que o português fez foi ir à procura do outro, farto de uma vivência triste, sem futuro, com muita carência, muita falta. Ele saiu para ir à procura do outro.
Foi o que fez quando foi para o Brasil?
Sim. Quando cheguei encontrei o outro e verifiquei que não éramos diferentes, nem irmãos, nem iguais, nem amigos. Éramos unicamente parecidos. E a parecença é uma forma quase democrática de contribuir para a unidade do universo, a unidade humana, sem divergências. Esse foi um tempo que tinha começado com a nossa disputa pelas nossas diferenças. Hoje o mundo está a querer mudar-se para as semelhanças. A dificuldade das pessoas de hoje é terem de se confrontar com as semelhanças.
Como assim?
É uma coisa que acontece aos velhos. E acontece a todas as pessoas que não tiveram muita capacidade de enfrentar as diferenças e lutas. E estão a voltar a uma coisa parecida com o asilo onde se colocam as pessoas todas na porta, contando a sua vida e que depois se despedem e vão todas para o mesmo asilo. A contribuição para as mudanças é perigosa porque dá abertura a coisas conservadoras, às existências das ditaduras. O fascismo hoje tem muitos adeptos mas tem muita gente que guardou a saudade do autoritarismo e esse continua e é muito pior do que o fascista mesmo.
Em Portugal ou no Brasil?
No Brasil tudo o que está a acontecer é o resultado da colonização. Toda a colonização é uma forma de ditadura. A ditadura impõe humilhação às pessoas, tira-lhes o poder de subir a qualquer poder. Há o complexo de inferioridade, que ainda hoje se mantém na sociedade. E é difícil, porque sempre foi alimentado como uma grande vantagem da ditadura. Tornar você tão inferior que só pode acreditar que a civilização existe, mas que está longe, num lugar onde você não chega.
Lutou muito contra a ditadura?
Sim. O medo é outra forma humilhante de colocar você perante a ditadura. Porque a ditadura dá-te o próprio medo como se fosse a tua qualidade. Só você usa esse medo porque ele é teu. Ainda o medo é uma maneira demagógica de fingir que é medo de quê? Ele tem medo do medo, não medo dele. É muito raro o medo ajudar-nos a levar uma vontade para a frente.
Perdeu esse medo?
É aí que você avança. Você acaba tendo coragem porque teve medo. O segundo medo é quando você já está nessa posse, mas está com medo de errar. Então você arrisca e depois se não dá certo você não tem regresso. O medo é uma forma progressista de você ir para a frente. No fundo, o que é uma guerra? É a saída do medo. É quando todas as inteligências bélicas, todos os grandes desejos e todos os poderes e todos os fracassos juntos fazem um soldado. No fundo, é um produto do medo.
Como é que o surrealismo se encaixa nessa visão do medo?
Bom, o surrealismo não é uma responsabilidade, é uma forma até de respirar. O surrealismo veio depois da I Guerra Mundial, numa tentativa de tirar da guerra só o lado trágico e medroso e sofrido e trazer um pouco de riso e otimismo. Não para esquecer, mas para sempre encontrar um lugar para isso ser lembrado. Você não precisa de ficar a vida toda a dizer que o seu pai foi sacrificado e a sua mãe foi enforcada. Tem é de criar instituições que cuidem disso. Isso não pode continuar em você como uma cultura, como uma obrigação. Essa é uma lembrança histórica que tem de ser tratada culturalmente e ensinada nas escolas. O Brasil ensinou as crianças que o país foi descoberto, mas nenhum país foi descoberto. Isso deu ao brasileiro um certo complexo. "Eu fui descoberto, então não preciso de ir à procura de coisa nenhuma. Já fui descoberto." Devia ser retirado do ensino essa ilusão de que o Brasil foi descoberto. O Brasil foi montado, não foi nem inaugurado, foi montado e com peças vindas de fora como se fosse um automóvel. E foi-se desenvolvendo à custa de convencer as pessoas de que não havia inauguração, então tínhamos de inventar sempre uma inauguração. Uma ideia que vinga até na política. A inauguração dá contratos, dá dinheiro, dá uma sustentação para a população, uma ilusão de vida. Era mais uma forma de ditadura. É você viver confinado em desejos que não lhe pertencem, foram-lhe emprestados para ter uma ilusão.
O surrealismo não é também uma ilusão, um sonho?
O surrealismo tem a função de se ocupar principalmente do sonho. Porque o sonho é o único território onde nada está escondido. Tudo se revela, tudo se torna verdade. E também uma das grandes dificuldades da Humanidade e das sociedades tal como foram constituídas é a ocultação. Ocultar as coisas. Os surrealistas começaram a fazer daquela experiência de pegar num pedaço de uma reprodução de qualquer jornal ou revista e com um cotonete ou um pincel começaram a fazer uma margem, a ir escurecendo até deixarem ficar uma coisa aberta, um buraco. Esse buraco tem a função do palimpsesto, que é quando se abre uma pedra querer descobrir qual é o nome do que está lá dentro, se não tem nome a gente tem de lhe dar um como se dá a uma estrela quando a descobrimos. O surrealismo ocupou-se exatamente em ir ao sonho com a experiência a que chamávamos ocultação, "ocultagens". Todos os surrealistas do mundo fizeram isso. Foi o primeiro sintoma de ir à procura da ocultação. Eu cheguei à fotografia por esse veículo. A fotografia já é uma ocultação, é ir à procura do que não foi visto e que não é descoberto, mas está oculto. É por isso que tudo o que a gente descobre e é novo dá medo. Com o cinema, aquela primeira imagem do comboio deu medo, toda a gente pensava que ia ser esmagada. Esse contacto com o medo existe porque também faz parte da nossa satisfação de nos encontrarmos com uma coisa nova, é um prazer, é uma núpcia, é um amor que já vem anunciado. O surrealismo cultivou isso na poesia, principalmente com a escrita automática, que é a forma de ir soltando o sem compromisso, o sem problema o sem nada, até que essa escrita automática cria um destino que te orienta e resulta em alguma coisa, constrói-se. Esse é o princípio do surrealismo. Esse é o princípio do sonho, em que a gente navega à procura do que não sabe, mas que está à nossa espera. É uma ilusão pensarmos que estamos à espera da morte, é a morte que está sempre à nossa espera.
É ambíguo.
Não é ambíguo, é bipolar. O surrealismo tem duas personalidades. Porque todos nós temos essa bipolaridade, a gente é que não a cultiva porque ela é perigosa, dá prejuízo, dá despesa. Quem tem uma bipolaridade já é suspeito por mais carinho que a gente lhe conceda. O surrealismo ficou dono dessa forma de resistência, que não está no poder divino, não está em lugar nenhum. Está em nós, naquela ideia de futuro de que já falei, a nossa garantia de sobrevivência.
Porque é que escolheu a fotografia?
A fotografia teve várias origens. Uma delas foi que eu queria ir atrás do que se descobria ou ficava perto da nossa cara, qual era a cara do português. Nós, os portugueses, temos caras para tudo. Sempre que viajei me perguntavam se era francês, russo... Eu podia ser tudo. Ninguém pergunta se somos portugueses porque temos caras para tudo. E eu fui um pouco aproveitando todas as caras de pessoas de quem eu gostava e que estavam na oposição, que estavam condenados, eram gente proibida, então essa cara de proibido interessava-me mais ainda. Por isso lá estão todos os escritores, pintores... que não podiam dar aulas, que não podiam viajar, nem tinham passaportes, porque era proibido. Tudo gente com futuro, que deu provas disso, mas que naquela altura eram apenas uma promessa proibida.
Como é que os conheceu?
Eram pessoas com quem eu convivia, com quem tinha afinidades ideológicas e profissionais. Estão já no capítulo da inteligência, do poder da inteligência, que é a primeira grande força com que a gente nasce. A gente nasce com essa primeira autoridade que é a inteligência e é com ela que vamos formar o nosso carácter. Com essa inteligência fui à procura desse tipo de gente, onde já havia uma certa segurança, não havia dúvida de que aquela pessoa ia vingar, era já uma semente manifestada. A própria oposição ao regime, ao Estado Novo, à União Nacional, todas essas fantasias, a própria oposição a isso já era quase um diploma de plano de saúde, digamos assim, pago a prestações, mas com uma certa garantia. "Eu não sou burro e este gajo aqui também não é burro", a inteligência é uma forma de lealdade para com o outro, para com o coletivo. A inteligência é uma coisa coletiva.
Cumplicidade?
Sim. Você vê que no tempo da ditadura o artista fica proibido de produzir. O que acontece é que quando isso um dia acaba ou não acaba, mas há uma abertura, ele fica numa situação difícil de não poder continuar a trabalhar porque tudo o que ele era proibido de fazer já não existe. Então tem de começar de novo. Pode dizer-se porque é que ele não fez e guardava escondido. Não, porque você quando faz uma coisa já está a fazê-la para o coletivo. Ninguém é livre se estiver a fazer uma coisa só para ele. Você se é artista está a fazer uma coisa que é para todos. É para o outro. Se o outro também não está livre para receber, você não está livre para fazer. A liberdade não é um crachá. A liberdade é uma coisa que nos prende, que nos põe a respirar e se torna obrigatória, é coletiva. A minha liberdade é a tua, é a dele. Não existe separada, a liberdade não é isso, não é um circo. O problema fica exatamente nesse ponto: ou começa de novo ou fica quieto.
A exposição na Casa Jalgo, em Lisboa em 1952, foi um ato de liberdade?
Foi e foi tratada com tal violência porque era livre. Era uma bandeira de várias manifestações de liberdade geral que só podia ser atingida, agredida. Não há ninguém no mundo que de repente se sinta mal na frente de alguma coisa, que não reaja com ódio. O ódio é uma maneira quase sublime de você se sentir inteligente. "Ah! Eu tenho raiva!" Agora já estamos vivendo uma época em que não existe mais nem raiva nem ódio. Depois da indignação, nós estamos no fastio do não aguento mais, do insuportável. E o importante é essa defesa permanente que temos de ter e que já nem é ideológica, é natural, instintiva, é de talento. A nossa defesa tem de ser talentosa também. A nossa necessidade de criação. Ninguém cria se não tiver necessidade de criar. E isso só se faz com independência total. E total quer dizer coletiva. Hoje, quando se pensa na ocultação, pensa-se como é que a sociedade se desenvolveu ocultando. Nós temos um Estado dentro de um Estado. Um partido dentro de um partido. Uma Igreja dentro da Igreja. E não sabemos como resolver isso.
Com a mudança?
Mudança é uma forma escapista de demagogia. Você dizendo que muda não está a fazer nada, porque mudou o número do telefone, mudou o nome do banco, tem gente até que muda de sexo. Se se quiser mudar, muda-se tudo. O que era preciso era uma rutura. E isso era perigoso dizer. Acho que o que está a acontecer hoje é mesmo uma rutura. No Brasil não está a escapar ninguém, ninguém. Afinal descobriu--se uma coisa que eu, sem maldade, ainda inocente, em certa altura, disse numa entrevista. Perguntaram-me se quando cheguei ao Brasil nos anos 50 já havia corrupção. E eu respondi, sim, acho que havia, só que ainda não era obrigatória.
Isso é verdade hoje?
Sim, verificamos que é verdade. A corrupção tornou-se obrigatória porque chegámos ao ponto em que todos nós fomos corruptos. Não há ninguém no Brasil que não pague a um guarda de trânsito gorjeta para não pagar a multa. Não adianta. O maior pavor é quando alguém bate à porta a dizer que é para pagar o imposto da prefeitura. A corrupção está aí.
Porque é que decidiu ir para o Brasil?
Primeiro porque tinha uma grande curiosidade. Desde que me conheço, o Brasil era para mim uma mistura até de coisas idiotas. Era o país do futuro, era um paraíso. Muita gente achava que era um lugar para ganhar dinheiro, e era verdade. Eu fui muito cedo e travei conhecimento com muita gente, com vários artistas, com o presidente do 4º Centenário de São Paulo, que foi para a Europa convidar tudo o que eram artistas para participar nesse acontecimento. Quando eu vi esse folheto, eu que já tinha estado numa experiência uns anos antes em Espanha a lavar pratos, num hotel na Corunha, disse para mim: 'Vou lavar pratos outra vez mas vou para lá, isso nunca vou ver na minha vida'. A maior parte das coisas não aconteceu, isso também é verdade. Mas fui, fui-me embora. Havia um amigo meu, um médico que era colecionador, médico da Companhia Nacional de Navegação, que me arranjou uma passagem. Tratei de tudo e fui-me embora de vez. Sem nada. Trouxe cartas de Jorge de Sena, Casais Monteiro... para o Carlos Drummond de Andrade, para toda uma porção de gente, mas que ficaram comigo até agora, que as doei para a coleção da minha correspondência que está na Fundação Cupertino de Miranda.
Não entregou nenhuma?
A única que entreguei foi a que se dirigia a Manuel Bandeira. Leu e disse-me que teria de expor. E expus no Museu de Arte Moderna com um texto dele no catálogo. Foi o meu primeiro grande amigo. Era ele que me chamava para ajudar a fazer o café ao fim da tarde para os outros amigos com quem passei a contactar. Depois passei um ano no Rio de Janeiro, onde me dei com mais gente da música, fiz parte do grupo que criou a primeira revista de música popular e depois fui para São Paulo para o 4º Centenário, convidado pelo Jaime Cortesão. O que me deu uma oportunidade enorme de entrar em contacto com uma porção de gente, a quem fiquei ligado. Gente que de outra maneira seria difícil conhecer. Já morreram todos. Essa é uma das grandes virtudes do velho. É ver todos os seus amigos morrer primeiro. Hoje tenho essa glória, todos os meus melhores amigos, todos importantes, já lá estão à minha espera. Foi no momento em que acontece a 1ª Bienal de São Paulo, quando se pensa no projeto Brasília e entro em contacto com o Niemeyer e passo a trabalhar com ele no Memorial da América Latina... Sérgio Buarque de Holanda, depois tive a sorte de ter o filho Chico como aluno meu.
Ficou a conhecer toda a gente?
Fiquei ligado ao movimento concreto que estava em plena atividade, a arte abstrata, que estava a aparecer por lá. Foi um momento genial porque me deu uma abertura que me trouxe uma segurança afetiva de sentir que estava a entrar naquilo que eu tinha perdido cá, que era o meu território, o meu espaço. Tive essa conquista de tudo o que na minha juventude me foi roubado aqui. De facto, não era mais recuperável, mas eu podia criar outra, inventá-la. E acho que a gente até a desgraça inventa para se salvar. A criatividade é uma grande cura, uma farmácia. Quando recebia convites e os aceitava, sabia que se não desse certo me ia embora mesmo sem saber o que poderia acontecer. Estava a tornar-me uma pessoa, uma pessoa séria. E foi todo o Brasil que ajudou a fazer a minha cabeça. Ela ainda não estava pronta, eu tinha 20 anos.
Arrependeu-se de alguma coisa?
Não, não me arrependi. Têm-me perguntado se vou voltar. Compreendo a pergunta, mas eu não volto. Tudo mudou e eu mudei. E mais do que isso, não vou largar o Brasil de modo nenhum. O Brasil deu-me tudo o que me foi roubado e não me devolveram. Além disso, estou a receber mensagens que me mostram que cumpri a minha função entre Portugal e o Brasil, uma função importante sob o ponto de vista cultural e da língua. Há uma brasileira que está a trabalhar na América que fez um ensaio sobre o híbrido, que, em termos linguísticos, é exatamente a capacidade de uma coisa trabalhar dentro da outra. Um trabalho que nos mostra que Portugal e o Brasil não são uma língua igual. São duas linguagens. Em termos de cultura, a língua não é o mais importante. O importante são as linguagens. Quem trouxe isso foram os concretistas, os surrealistas. A atividade cultural moderna trouxe para os dois países uma ligação híbrida. Estamos outra vez parecidos, o que é uma coisa saudável. É por isso que a gente se entende mesmo não se entendendo.
No Brasil passou a pintar, a desenhar, etc...
É verdade. Aqui fui obrigado, por razões de vida, de finanças, de economia, a trabalhar para gráficas, fazer capas de livros... Fui, como primeira profissão, litógrafo. Então com isso ganhava o leite das crianças. E fui protegendo aquilo que queria como artista, como mensagem, como uma coisa minha... Aos poucos fui depois participando, mas vivendo. A fotografia fui preservando também. Quando vim de Portugal trouxe na minha bagagem as imagens dos anos 40, fui passando a expor e hoje tenho um espaço dentro de todo o Brasil. Meti-me também no cinema, em tudo eu me meti. Hoje já não tenho a necessidade de recorrer ao grafismo. Só pego nalgumas coisas de comunicação visual que foi sempre um princípio meu de trabalho. Hoje tenho coleções de fotografia em vários museus do mundo, tenho uma galeria que vende coisas minhas, tenho agora o projeto de uma exposição nos Estados Unidos. Até expus na Rússia representando Portugal. Fui duas vezes ao Japão, até com uma bolsa da Gulbenkian, e outra vez a convite de Mário Soares.
Ainda tem necessidade de fotografar?
Tenho mais necessidade de escrever e de ler sobre fotografia do que de fazer fotografia. A fotografia para mim hoje tornou-se um fenómeno quase fantasma. Olho para certas coisas e vejo que ela é tão, tão fotografia que já não posso fotografá-la. O processo de beleza e de arte estão em diálogo. Quando você olha para uma flor e diz que é linda, você pode estar certa que ela também está achando você bonita. No diálogo as duas coisas não se desprezam, não se esquecem, atraem-se. O diálogo existe mesmo. Como existem várias coisas que me preocupam ligadas à arte e à própria fotografia. A questão da escuta é uma tese que ando a desenvolver.
E significa o quê?
Significa a escuta como uma memória, é uma ajuda. É que a memória é traiçoeira. Então penso no gesto. O que é o gesto? O gesto na arte, o teu gesto para fazer uma gravura é diferente do gesto de fazer uma pintura. O teu gesto significa o tempo para fazer uma escultura ou um desenho. O gesto é uma coisa real e precisa como um eletrocardiograma. Você pega uma pintura e põe e tira, depois põe e tira, até ao momento em que ela se fecha mas você não tem tempo para ficar. A escultura também você tira tanto, tanto, que chega a uma certa altura e pensa: o que é que foi importante? O que tirei ou o que ficou? Veja a experiência do cinema. Toda a gente sabe que um filme só é bom e está pronto quando é cortado no fim, a montagem é que é a definição do filme. É onde fica essa relação do que ficou e do que foi tirado. Se eu fosse cineasta ia aproveitar isso para fazer um filme sobre a saudade.
Teve saudades?
Saudades do que ficou. A saudade é tão importante que no campo da arte ela é não só saudade do que você já fez, como também saudade do futuro, do que tem de fazer.
E saudades dos amigos que deixou?
Bom, isso tenho, porque nós fizemos e tivemos um papel não de coragem e de coisas gloriosas, mas sim um papel muito consciente que assumimos até ao fim sem nenhuma dúvida, sem nenhum remorso, e sem nenhum trauma de dizer que fomos vítimas. Ficámos com um certo orgulho de ter escapado de alguma coisa maior. Criámos um pouco a ideia de que toda a vez que tivermos uma dor, a gente se lembrar que antes de nos queixarmos nos lembremos de que há gente em situações muito piores. Isso serve para qualquer doença. Para mim que sofro de poliomielite desde criança, de nascença, sei muito bem quais são os limites e não ter com isso uma dificuldade maior, quer dizer, já percebi o que a própria doença me ajudou a ser artista. Tinha a necessidade de procurar fazer alguma coisa que os outros faziam não para ser melhor do que eles, mas para mostrar que era capaz de fazer. Como tive desde criança uma ocupação, comecei muito cedo a desenhar e percebi que era o caminho, por aqui eu vou... E salvei-me.
Como foi a Escola António Arroio?
Foi a escola superior, de nível de faculdade, com desenho industrial, litografia... Depois ainda fiz um curso de aguarelas na Sociedade de Belas Artes, do qual não gostei, mas que nos últimos anos me tem sido útil. Naquela altura não fui capaz de fazer, mas nesses últimos anos sim. A aguarela é o lado mais difícil de lidar com a tinta, porque é onde você tem de usar mais água do que tinta. Então, se não sabe acaba vomitando tudo como uma salada. Essas últimas experiências que tenho feito chamei de "Mais depressa com a água, mais devagar com a tinta".
Tem alguma coisa que ver com a sobreposição da imagem na fotografia?
A sobreposição é óbvio que tem que ver com a própria naturalidade da mudança fisiológica. Todos nós numa fração de segundo mudamos de cara, de olhar. Mas ninguém faz isso quando tira um retrato, nessa altura fica parado. Quis introduzir esse movimento que se repete na mesma chapa, calculando e isolando uma da outra e acrescentando um movimento ao movimento seguinte para dar ao corpo uma fisionomia que é parecida com o retrato da pessoa viva, não está morta. Pode ser o último sorriso, o último bafo.
Essa forma de fotografar foi uma experiência?
Sim. Deu para criar condições para que os retratos e os objetos se transformassem no abstrato. No fundo, é uma transposição de todas as nossas capacidades óticas. É por isso que a memória foi atrás da fotografia, porque precisava de imagem. A fotografia é uma forma científica de nos procurar e nós fomos à procura dela. Imagine o que é o eco. O que é o eco? É uma reprodução repetitiva de um som que se perde no espaço e que se repete até à eternidade. É igual à fotografia. Quer dizer que o eco é a fotografia desse som. A fotografia já nasce com o seu próprio registo. Não precisa de nomear-se. Eu sou a fotografia. Uma escultura pode dizer "me fotografa", até um livro pode dizer "me filma", mas a fotografia não precisa dizer nada. Já é eterna.
Entrevista publicada na Revista E de 1 de setembro de 2018