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Cultura

“Não percebo muito bem a minha poesia, porque é que ela existe”

“Não percebo muito bem a minha poesia, porque é que ela existe”
Raquel Marinho

Jaime Rocha nasceu em 1949. Viveu na Nazaré até se mudar para Lisboa para estudar na Faculdade de Letras. Na juventude, recolhia registos de áudio da vida do mar e dos que o trabalham, circunstância que acabaria por influenciar a sua vontade de escrever teatro e também poesia. Poeta, dramaturgo, escritor, foi também jornalista, razão pela qual decidiu adoptar o pseudónimo pelo qual o conhecemos. Chama-se Rui Ferreira de Sousa mas desde cedo quis separar a escrita jornalística da outra, também no nome com que assina. Conversámos com ele num café de um centro comercial. Em cima da mesa, e ao longo de toda a conversa, esteve também um bloco de notas que foi usando para explicar uma trilogia de criação que o define enquanto autor

“Não percebo muito bem a minha poesia, porque é que ela existe”

Raquel Marinho

A nuvem anuncia a secura das casas.
Um homem desloca-se devagar,
atravessa uma plantação de café em
silêncio, como as aves da noite. A sua fome
é igual à dos pássaros que reflectem no espelho
uma máscara de dor. Quando o homem desperta
dessa travessia apenas encontra um rolo de tabaco
velho e um machado quebrado em cima de uma
mesa. E não volta nunca mais a esse lugar.

Loading...

Vamos começar a nossa conversa por tentar perceber por que razão estamos a falar com o Jaime Rocha e não com o cidadão que está por trás do Jaime Rocha.
Como fui jornalista durante muitos anos, e uma vez que são dois registos diferentes que eu queria manter assim, precisava do nome para escrever as minhas invenções, a minha imaginação, para poder fugir aos factos.

Não quis escrever poesia com o mesmo nome que usava no jornalismo.
Não quis confundir um que trata os factos e que conta a verdade e outro que inventa factos e conta a mentira.

Conta a mentira?
Conta a mentira, exactamente. Porque o que nós escrevemos é a ausência de verdade, ou, aliás, é o que está do outro lado da verdade. Talvez mentira não seja o termo, é mais a invenção a partir da imaginação.

E essa invenção não tem nada de verdade?
O que tem de verdade é o primeiro olhar. O que tem de verdade é o que nós vemos, mas não é isso que me interessa escrever. O que me interessa escrever é o que está dentro dessa imagem, o que está do outro lado dessa imagem. E o que está dentro e do outro lado dessa imagem, isso é que é a verdade. Porque o que nós estamos a ver é uma espécie de mentira, é uma ficção. Se olharmos para uma árvore, aquela árvore está ali, mas eu não sei porque é que está ali, não é? E enquanto jornalista eu escreveria: "Está ali uma árvore, na alameda tal, no número 22." E como poeta escreveria que aquilo não é uma árvore, aquilo é um objecto que foi colocado ali para que eu pudesse escrever um poema sobre o que estou a ver. Portanto, são dois registos diferentes, e eu para isso precisava de dois nomes diferentes.

E a mentira situa-se onde?
Eu jogo com a mentira, porque acho que o papel do criador é reinventar a realidade. E como jornalista não reinvento nada, não posso sequer reinventar. E então o facto de ter dois nomes seria como se fosse duas pessoas.

E sentia-se assim?
Sim, completamente.

Sim?
A pessoa que trabalha e a pessoa que vive. A pessoa que trabalha vive para fora e a que escreve vive para dentro. São duas pessoas.

E elas encontravam-se, imagino, muitas vezes, porque o Jaime publicou pela primeira vez em 1970. Já era jornalista.
Sim, estava a estudar e já colaborava nos jornais. Comecei a fazer crítica de cinema no República.

Portanto, já tinha esse olhar jornalístico, digamos assim, e já escrevia poesia.
Nessa altura tinha o meu nome ao contrário, ainda não existia o Jaime Rocha. Tinha o nome inverso. Rui Fernando Ferreira e Sousa é o meu nome, e comecei a escrever e assinava Rui Sousa Fernando. Ou então, na poesia Sousa Fernando.

Quando é que surgiu o Jaime?
O Jaime surgiu já no primeiro livro, porque o nome ao contrário não me dizia nada. E então fui recuperar o Rocha que é o nome da minha mãe, que ela perdeu quando se casou. O Rocha era uma homenagem a ela e uma homenagem ao meu lado de pé descalço, que é dos pescadores, a linha dos pescadores - a minha mãe era filha de pescadores, o meu pai filho de pequenos comerciantes. E faltava-me um nome que se juntasse ao Rocha, e não funcionava bem Rui Rocha, era muito "rrrr". E um dia lembrei-me... Já tinha conhecido a Hélia (Correia) e não conheci o pai dela - morreu quando ela tinha 14 anos e nós conhecemo-nos com 20 anos de idade, na faculdade -, e ela falava muito do pai, que era operário correeiro em Mafra, e chamava-se Jaime, Jaime Correia. E eu quando ia a Mafra ela era a filha do mestre Jaime. Mestre Jaime, mestre Jaime, sempre ouvi falar do Jaime Correia, grande figura de esquerda, da ditadura. E um belo dia, ia editar um livro, e perguntei à Hélia o que é que ela achava, se podia juntar o nome de Jaime ao Rocha. E ela achou muito bem. (risos)

É uma bela homenagem.
É. É uma homenagem ao pai dela e a ela.

Uma homenagem que nasce da necessidade de separar dois mundos.
Sempre tive esta necessidade de separar, dividir o concreto do imaginário, para me afastar mesmo fundo e criar sem auto-censura.

Alguma vez o Rui jornalista e o Jaime poeta trataram o mesmo assunto e, portanto, daí resultou uma linguagem diferente para o mesmo assunto?
Talvez as reportagens que eu fiz tivessem já uma componente que se aproxima do literário, mas também eram reportagens na revista Grande Reportagem, o que permitia...

Um outro tempo, uma outra abordagem.
Exactamente.

Mas nunca uma coisa que tivesse visto em reportagem enquanto Rui deu origem a um poema enquanto Jaime?
Isso sim, porque eu funciono muito assim.

Assim como?
Tudo o que eu vejo. Neste momento, por exemplo... O que estou a ver neste momento pode dar uma peça de teatro.

Então? Estamos a falar de um grupo de quatro pessoas que estão ali na mesa ao lado?
Estão na mesa, mas não têm nada em cima da mesa. Não têm cafés, não têm copos. E há outro grupo que chegou agora que começou a lanchar. Portanto, posso criar uma narrativa ou uma peça de teatro em que estão quatro pessoas a falar das suas viagens. Um foi à Turquia, outro foi... até podem inventar essas viagens, e depois descrevo que por trás é só chocolate.

E é.
E é. Pronto, isto é a imagem que estou a ver, posso fazer um sketch de teatro sobre o que estou a ver. Isto para jornalismo não interessa absolutamente nada. E posso escrever uma narrativa em que inventava que eles estão numa paisagem, dentro de uma fábrica de chocolates, e estão completamente eufóricos, não é? Posso criar. Funciono muito assim: imagine que estou a fazer uma reportagem sobre este café e depois levo para casa (pega no bloco de notas e começa a escrever): "mesa com 4 pessoas"

São as suas notas, é isso?
"Chocolates". Depois escrevo assim: "teatro". Já sei que vou fazer um teatro sobre isto. Já captei as imagens suficientes. E entro na narrativa: "é um café que foi fundado no ano tal, que tem colunas, é uma rede, existe também no oriente e tal." É uma reportagem. "Disse-me o senhor tal: ah, este café não sei quê..." E entretanto ponho assim: "reportagem" mas ponho também ao lado: "poema. Caixas, mesa, cor, vermelho, luzes." Depois criava um poema a partir daqui. E a minha cabeça funciona muito em triângulo.

Para essas três possibilidades.
Neste momento da minha vida, o teatro, a narrativa literária e o poema. Mas muitas reportagens que fazia ficavam cheias de notas para contos, ou pequenas narrativas, ou prosa poética. E neste momento, como o jornalismo já não existe para mim, este triângulo funciona muito bem.

Quando é que se apercebeu que tinha esse triângulo, que funcionava assim?
Foi ao logo dos anos de jornalismo, curiosamente. Escrevi muito sobre teatro, reportagens e entrevistas sobre teatro. Nas reportagens de rua ou no estrangeiro ficava com muita matéria para escrever poesia, ou prosa, ou também teatro de coisas que eu via.

Veio conversar connosco com um caderno que tem imensas notas. Ou seja, esse triângulo de que fala começa aí. Esse exercício que estava a fazer há pouco de escrever notas do que estava a ver é o que faz no dia-a-dia?
Sim. Vou vendo. Se me aparece uma frase para um poema escrevo a frase, e já sei que essa frase abre uma torneira e vai por aí fora. Por exemplo, aqui, num centro comercial, nós vamos ao supermercado e usamos os carinhos, não ligamos. E depois vamos para a rua e vê-se uma pessoa a atravessar uma avenida com um carrinho destes, fora do contexto, e o nosso olhar pára, e pensa-se: isto é tudo muito cinematográfico.

Gosta das imagens fortes do quotidiano. Ou melhor, essas imagens fortes têm um impacto em si.
É, porque estou sempre confrontado com a ideia de perceber porque é que paramos a olhar para uma imagem. E perguntamo-nos: estou a olhar para esta árvore ou ela é que está a olhar para mim? E quando nos questionamos sobre isso assumimos que a árvore está ali por alguma razão. A árvore está ali à espera que eu escreva sobre ela, senão eu não tinha parado a olhar. Ela tem qualquer coisa que me fez parar. Pode ser uma série de folhas mortas que estão penduradas ou que já caíram, ou então a cor, ou um tronco que está torto. Há qualquer coisa que me obrigou a parar.

E é aleatório, pode ou não acontecer?
Pode não acontecer. Porque eu não sou um funcionário da escrita, não me sento a escrever de manhã à mesma hora. Isso faço na reescrita. O que eu preciso e que sei que acontece é o momento em que a palavra chega, é isso que me interessa. "Ah! Chegou!" Às vezes roubo frases ao quotidiano. Por exemplo, estou num café e um senhor diz: "não sei o que hei-de fazer, tenho oito filhos, vivem todos no estrangeiro, o que é que vou fazer da minha vida?" Imagine que ouço isto. Escrevo: "Tenho oito filhos, vivem todos no estrangeiro." Só quero isto, não preciso de mais nada. Roubei uma frase ao quotidiano. E a partir daí crio um ambiente com um senhor, ou uma senhora sozinha, ou um velho, que está a dizer: "de facto, anda uma pessoa a criar tantos filhos e agora estou sozinho."

Como é que sabe que essa frase do senhor do café que acaba de inventar vai dar um poema ou uma narrativa literária ou uma peça de teatro?
Eu trabalho sobre sobras daquilo que escrevo. E as sobras ficam de lado, depois pego nelas para escrever noutro registo. O momento do quotidiano dá-me um registo, escrevo sobre esse registo, e quando estou a escrever vão surgindo coisas que não funcionam no teatro, porque são demasiado poéticas, e então ficam para a poesia. E ao contrário. E vou jogando esse material.

É muito interessante esse seu método.
Depois quem lê não se apercebe que partiu da mesma imagem.

Quando é que escreveu o primeiro poema, lembra-se? Uma vez que estudou na Faculdade de Letras e que escolheu uma profissão que não tem nada a ver com a poesia, é uma coisa objectiva e rigorosa.
Na altura não havia curso de jornalismo. Quem queria ser jornalista ia pura e simplesmente para um jornal. A Faculdade de Letras dava para professor ou para tradutor, mas eu já escrevia poemas. Quando fui para a Faculdade de Letras já escrevia poemas que mandava para o Juvenil, com 18, 19 anos.

Lembra-se dos primeiros que escreveu?
No final dos anos 60 escrevia-se muito sobre o sangue, a foice, a paisagem, um bocadinho... não eram poemas políticos nem revolucionários, mas eram poemas neorrealistas, e eu não funcionava bem nesse registo. Escrevia coisas meio surrealistas. Mandei alguns e não saíram, até que saiu um. Era o Mário Castrim a a Alice Vassalo Pereira, hoje Alice Vieira, que coordenavam e publicavam.

E como é que foi quando saiu?
Quando saiu foi um gozo porque era um poema completamente fora do vulgar, muito existencialista, surrealista.

Quantos anos tinha?
Devia ter 19 anos. Depois aos 20 vim para a faculdade. Mas já tinha colaboração no Diário de Lisboa e no suplemento Juvenil.

Mas qual é o momento em que decide que quer escrever poesia? Em que pensa: eu vou fazer isto, quero fazer isto.
A poesia veio quase ao mesmo tempo que o teatro, lá na Nazaré. Na altura eu já tinha lido os escritores neorrealistas que iam à Nazaré, que eram o Alves Redol, o Bernardo Santareno, o Miguel Torga. Aliás, comecei a fazer gravações com aqueles gravadores ainda antigos.

Registos de áudio?
Registos de áudio. Que era para passar aquele grande sofrimento dos pescadores, e dos naufrágios, e do luto, e da morte.

Mas fazia essas gravações para quem, para si?
Para mim. Andava no colégio e a professora de português achava muita graça ao facto de eu fazer gravações às peixeiras, aos pescadores, aos gritos na rua. Depois apeteceu-me escrever teatro, pequenos diálogos, e depois apareceu a poesia. Uma coisa é olhar o mar com os barcos, os naufrágios, o luto... outra coisa é olhar o mar sem os barcos, com os barcos atracados, só o mar, a água. E aí a poesia. Portanto, havia um bichinho de captar que no fundo era para ser jornalista. Depois, o contemplar o mar já é um lado mais fundo, que será poesia. Portanto, estes dois registos começaram a surgir ao mesmo tempo. E depois comecei a escrever estas pequenas peças de teatro e mandava os poemas para o jornal. Só aos 19 anos é que comecei a mandar os poemas. Porque às terças-feiras era o Juvenil, só poemas e poetas, e eu pensei: "também vou mandar." Acabou por sair. Depois quando vim estudar para Lisboa, já foi mais fácil na Universidade conhecer poetas e conhecer a Hélia (Correia), que escrevia muito bem.

Porque já os lia há algum tempo.
Alguns estavam na cantina universitária, uns de Direito, outros de Letras, e depois já havia um pequeno círculo aqui em Lisboa.

Que era quem?
A Hélia, a menina central, e depois o João Dionísio, o José de Sainz-Trueva, nomes que escreviam poesia, curiosamente madeirenses, e o que ficou mais conhecido foi o José Agostinho Baptista, poeta na Assírio & Alvim. Este núcleo escrevia no Juvenil. Tínhamos também um crítico literário, Leopoldo Gonçalves, que foi jornalista n´O Primeiro de Janeiro e assinava Gilberto Sancho. A figura principal era a Hélia Correia.

Foi à procura dela também? Já a lia?
Exactamente.

E depois?
E depois conheci-a. (risos) Fui à procura, porque ela escrevia muito bem e na altura uma mulher a escrever com tanto destaque... eu pensei: "bom, aqui há qualquer coisa! Tenho de conhecer esta rapariga, dê por onde der." E então fui à Associação da Faculdade de Letras e lá a descobri. Depois marcámos um encontro e conheci o núcleo de poetas onde ela se inseria. Eu era um outsider, cheguei já com outras vivências, e com leituras dos franceses. Ficámos todos amigos, todos de esquerda, todos contestatários. Eu era um hippie a falar dos surrealistas, do Bauledaire e do Apollinaire.

Estranharam-no?
"Quem é este tipo que vem para aí armado em não sei quê?" Pronto, depois lá estava a Hélia no meio, e de facto era uma figura de destaque, era o centro do grupo.

Troca impressões sobre o que escreve com a Hélia e ela consigo ou, apesar de estarem juntos, não o fazem?
Não, não, lemos tudo. Há muitos anos que lemos tudo um do outro e somos críticos, muito exigentes. Eu, ao princípio, muito mais à defesa, a Hélia já escrevia muito melhor, é muito mais sábia do que eu. Sempre foi mais informada e mais sábia. E mais concreta nas coisas, mais ligada ao texto. E então fomos confrontando muito, como primeiros leitores e muito exigentes. Em relação à Hélia, ela escreve e está pronto, está perfeito. Em relação a mim, era muita loucura, muita coisa.

O Jaime trabalha muito o texto depois de o escrever a primeira vez?
Trabalho. Leio alto e tenho que ouvir tanto os diálogos como os sons.

Há uma preocupação fonética?
Sim. Leio e emendo, emendo, emendo. No poema emendo e nos diálogos, no teatro, também não podem ser nem muito intelectuais nem muito popularuchos. Tem de ser um diálogo muito colado à maneira como falamos.

Não pode ser demasiado erudito?
É, nem erudito nem muito banal. Com o teatro divirto-me muito, rio sozinho e tal, até porque estou a ver as cenas. Na poesia é mais concentrado. Leio e tenho de criar uma música, um som, e depois limpar. Limpar muito. Quando escrevo sei que estou a escrever coisas que vou tirar. E isso já me dá uma grande liberdade de trabalhar sobre um texto. O problema é aproveitar o momento em que a coisa surge, aparece.

Consegue aproveitar sempre?
Aproveito sempre. Aparece uma imagem, um som, uma frase, assento logo.

Ou seja, tem sempre de ter um bloco de notas consigo.
Tenho este grande (aponta para a mesa) e depois tenho um pequeno no bolso. E quando não tenho uso os talões dos cafés.

Também escreve nos talões?
Sim, notas. Tenho um diário factual. "Café tal. Li o livro tal, tomei um café, estava a chover." Só assim, uma coisa infantil, diário sem pensamento. O pensamento é o que eu vivi naquele momento. E tenho centenas de registos desses. Está o dia, está o local, "Lisboa, esplanada tal."

E depois mete essas notas avulsas onde?
Nos livros. Encontro um livro, meto lá dentro. Estão em imensos livros.

Porque é que quer anotar esse dia-a-dia?
Porque é como se aquele dia ficasse registado. Marca o meu dia e marca o momento.

Disse há pouco que um dos hábitos que tem é de ler os seus poemas em voz alta, e dá-se a coincidência de nós nos encontrarmos num dia em que, precisamente, os seus poemas vão ser lidos em voz alta, em público, aqui num bar em Lisboa que tem sessões de poesia semanais. Gosta de escutar os seus poemas lidos em voz alta?
Dantes não gostava de me ouvir. Uma vez gravaram-me a ler os meus poemas e a voz parecia falsa. Ou seja, a voz do poema não era a minha voz física, tinha essa sensação, a de que as palavras que estavam ali no poema eram uma voz interior e eu estava a estragar o poema em voz alta. Tive sempre essa sensação, e depois a pouco e pouco foi sendo mais fácil ler poemas, mas não muitos. Já me aconteceu estar a ler, eu sozinho, e de repente, comovi-me. Já aconteceu duas vezes. E então não gostei.

Comoveu-se a ler poesia sua?
Exactamente. Começo a ler e depois parece que há uma entrada para a memória, e então, de repente, a cabeça começa a pensar no momento da escrita que aparentemente era um momento emotivo, mas não era um momento de estar comovido. E depois, começo a pensar: "eh pá, estou a emocionar-me." Porque é uma poesia muito... que circula muito para o interior, do pensamento e da memória. Era o que estava a dizer: estou a escrever uma poesia sobre o que está oculto naquilo que estou a ver. É uma coisa muito íntima que escavamos cá de dentro, é uma escavação. E essa escavação foi escrita, mas quando está a ser lida alto, perante uma assistência, aquilo vai muito lá ao fundo e vai descobrir emoções que nós não estávamos à espera. Porque as palavras depois indicam um mundo interior muito lá dentro, e esse mundo muito lá dentro, cria uma respiração, uma comoção que o teatro não me dá. Porque no teatro há riso, há corte, há sarcasmo, há crítica, há momentos cómicos, e na poesia não. A minha poesia cria de facto um ambiente de ruínas, de explosão, de negro, de apocalíptico, mas não tem, do ponto de vista das palavras, as palavras do teatro.

Porque é que a sua poesia tem esse ambiente negro, de explosão, apocalíptico?
Pois. Posso perguntar isso também. (risos) Porque é o lado mais fundo do humano, penso eu.

O lado negro.
O lado negro, sim. É o lado que temos e passamos a vida a lutar para que ele não apareça. O que aparece é o lado humano da convivência, de estar com os outros, de pertencer a um grupo, a uma comunidade. Ajudar a comunidade, partilhar com a comunidade. Agora, o nosso lado mais animalesco, o nosso lado mais negro... passamos uma vida inteira, 60, 70, 80, 50 anos a controlar esse lado negro. E esse lado só vem numa guerra, num conflito grave em que somos capazes de matar, e eu vou metendo este lado na minha poesia. Escrevo como se fosse um cenário, uma paisagem, um cinema, uma tela, tanto no teatro como na poesia. Se for no teatro ponho uma mesa no palco. Se for na poesia posso pôr uma cadeira em cima do telhado, e estou a inventar uma paisagem. Mas não estou a inventar objectos. É colocar os objectos em situações de estranheza que me dão uma desorganização. Há um lado caótico, desorganizado, que eu procuro enquadrar dentro da minha poesia para criar uma lógica interna, uma cenografia, uma dramaturgia interna, mas com estranheza.

Quer precisamente essa estranheza da poesia?
Sim, mas ela surge-me. Está ali e agarro-a logo, por esse lado mais estranho.

Sente-se mais poeta, autor de teatro, autor de ficção, romance?
Neste triângulo, nesta trilogia de escrita, os três. E depois pergunto: "se te apontassem uma pistola à cabeça o que é que tu escolhias?" E eu dizia poeta.

E porquê?
É isso.(risos)

Ora aí está uma boa resposta.
Se calhar é por causa daquilo que disse há pouco. São as coisas que estão mais fundas e é aquilo que nós menos entendemos. Entendo o meu teatro, entendo a minha prosa, e não percebo muito bem a minha poesia, porque é que ela existe. E deve ser por isso que é a coisa mais... mais no sangue.

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- A poesia serve para quê?
A poesia serve para ser escrita, lida, dita e ouvida, simplesmente, apenas como prazer interior de cada um de nós. Pode também servir para nada ou então para dançar ou sair à rua e marcar acontecimentos tão importantes como uma revolução. Servirá também para que os poetas sobrevivam ao mal do mundo, juntando palavras que ajudem a reunir as pessoas num combate pela alegria e a liberdade. O que já é bastante.

- Deve saber vários poemas de cor. Qual o primeiro que lhe vem à cabeça?
Entrou na minha vida uma loucura branca, um verso de Herberto Helder, da recolha de poemas “A Imagem Expansiva”, incluída no livro “Retrato em Movimento”, editora Ulisseia, 1967. Estranho, enigmático, surrealista, deu título ao meu romance “A Loucura Branca”. Ou então este, também do Herberto, Há gente que dá cravos, e se assusta, de Artes e Ofícios ou este, Terrível é o amor. E súbito as minhas mãos mergulham para dentro. Li aos 18 anos, bateu-me forte, fiquei doente, só me consegui libertar uns anos mais tarde. É o meu poeta de sempre.

- Se não fosse poeta português (ou de outro país) seria de que nacionalidade?
Talvez grego, porque teria uma memória inacabável e sempre inatingível, teria uma ligação perfeita ao Drama Antigo, desde criança, e todo o meu pensamento estaria permanentemente rodeado de água, de ilhas, de caminhos instáveis. Estaria dentro da Odisseia e da Oresteia e certamente viveria em Delfos ou Micenas. Não sendo grego, ficaria pela França, Paris, para respirar a mesma loucura dos surrealistas, ou checo para beber com Kafka. Enfim, cidadão do mundo onde houvesse poetas e romancistas russos. E depois há a terra de Byron, a de Dante e a de Lorca. Hoje não me peçam para ser brasileiro.

- Um bom poema é…
Um bom poema é Herberto, Rilke, Verlaine, Rimbaud, Holderlin, Lorca ou Gamoneda. Um bom poema é Celan, Juarroz, Cocteau ou Mallarmé. Um bom poema é Swinburne, Llansol, António Maria Lisboa. Um bom poema é…Homero.

- O que o comove?
O mar, um pássaro, uma árvore, o Outono, uma fonte, um lago, uma pintura, uma música, uma pessoa a lavar os cabelos, um poema.

- Que poema enviaria ao primeiro-ministro português?
Não envio poemas a ministros, apenas facturas da electricidade, torneiras avariadas, tubos encardidos, recibos verdes e um papel com os preços da gasolina. E talvez “Os Lusíadas” para que ele me dividisse as orações.

- Por sua vontade, o que ficaria escrito no seu epitáfio?
Um manuscrito dentro de uma garrafa, perdida no oceano, que dissesse: Nasceu junto ao mar, morreu junto ao mar e escreveu muitos poemas durante esse tempo. O seu nome era Jaime.

Raquel Marinho

O Poema Ensina a Cair começou por ser, em 2015, uma rubrica semanal do Expresso Diário sobre poesia portuguesa. Pretendia divulgar autores contemporâneos, mas não só. A ideia original de Raquel Marinho volta agora ao Expresso, desta vez com uma comunidade grande de seguidores nas redes sociais. Pode acompanhá-la no Instagram e no Facebook.

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Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: raquelmarinho@sic.impresa.pt

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