Cultura

Quando souberes, diz-me

Quando souberes, diz-me
Créditos: conta no Facebook de Tirzah

Ouvir o primeiro longa-duração de Tirzah é como ter nas mão alguma coisa que se pode escapar por entre os dedos a qualquer momento. Escorrega entre dezenas de possíveis géneros musicais na sua categorização e ficamos a imaginar o trabalhão e as discussões que os homens e mulheres das lojas de discos por esse mundo fora hão de ter tido para encaixar esta londrina de 30 anos naquelas divisõezinhas dos CD

Quando souberes, diz-me

Ana França

Jornalista da secção Internacional

É um álbum difícil de explicar a um amigo que nos pergunte o que andamos a ouvir, não vai dar para fingir que sabemos do que falamos e nisso é como uma daquelas noites inexplicavelmente memoráveis: só quem lá estava é que vai entender as piadas, aqueles olhares estranhos, aquele ataque de autocomiseração, os quase-escândalos, as confissões bizarras e/ou hilariantes encharcadas de álcool. Ao outro dia voltamos a ela, vamos ao telemóvel e descobrimos que afinal entendemos os sinais todos mal e também há muito que se passou que nos passou ao lado. “Devotion”, editado pela Domino, é esse dia a seguir: é entrar num café e sentarmo-nos ao lado da conversa que Tirzah está a ter com a melhor amiga sobre a sua conduta errática na noite anterior. Será que é suposto ouvir?

É um disco que também é um notável exercício de bricolage aparentemente feito numa garagem com poucos recursos e no qual se ouvem pedaços da mais clássica eletrónica millennial, alguns apontamentos de dream pop e muito do inescapável ‘grime’, um produto do subsolo da capital britânica, casa de Tirzah Mastin. Mas a categoria onde mais vezes aparece listado é em ‘pós-R&B’, que aparece no dicionário descrito desta forma:

estilo musical perigoso, feito de vozes sensuais e francas, letras que não raramente se debruçam sobre inevitabilidades biológico-químicas entre seres humanos em cenários não-livres de estupefacientes, batidas graves, por vezes eletrónicas, de ritmo quase constante por cima das quais dava para uma pessoa rappar se a isso nos víssemos, por alguma razão de vida ou morte, obrigados. Mas a ideia é manter essa batida e não rappar por cima, antes cantar.

O som de Tirzah, que faz música desde os 13 anos e quase sempre com a sua melhor amiga, a produtora e membro dos Micachu & the Shapes Mica Levi, está cheio de arranjos eletrónicos que emolduram a sua voz ternurenta mas imperfeita - e é a imperfeição, o quase descuido com a afinação e a colocação vocal que verdadeiramente distinguem este disco. Por vezes esses arranjos são violentos, furam pela candura do disco, como se nos despertassem a meio daquela rotineira viagem de metro; outras são leves como fumo de um cigarro ao fim da noite e só se vão conhecendo à medida que este “Devotion” se vai desdobrando em pequenas descobertas-tesouro.

Começa com o belo, quebradiço mesmo, “Fine Again” e ficamos logo a saber que haverá poucas complicações para entender o que esta mulher quer sem o exigir. “Don't wait for me / I'll be here / This is so pure this is rare / I just want you to know that I’m here for you”, entrega ela muito, mas muito lentamente, e quase com a sua voz trémula suspensa no silêncio que Mica cria para a voz de Tirzah existir. Ouve-se apenas uma ligeira reverberação, como se um instrumento tivesse sido deixado ligado ao amplificador toda a noite, sem querer. “I’ll make you fine again”, diz ela. Nada como uma moça com certezas, mesmo daquelas impossíveis de concretizar. Toda a gente sabe que se colarmos um jarro que se partiu as fissuras continuam a notar-se. E de quanto mais alto o deixarmos cair mais difícil será fingir que nunca se partiu.

CRÉDITOS: CONTA NO FACEBOOK DE TIRZAH

“Do You Know”, que chega logo a seguir, é uma das músicas obrigatórias para entender este trabalho: as repetições, os loops com todos os sonzinhos agudos que conhecemos do ‘house’ e da eletrónica a cair por todo o lado, a cair em cima da voz dela, como papelinhos brilhantes no fim de uma noite de passagem de ano. O tom da entrega da letra é, como noutras músicas, totalmente confessional. A voz dela está tão perto, tão perto que parece que estamos a ouvi-la a falar atrás de uma porta com alguém que a desiludiu. Voltamos a pensar que se calhar não temos o direito de estar aqui.

A letra oferece dezenas de interpretações. Há uma parte em que ela diz “Best thing we can do is really talk about it / I was never tryin’ be cold / but I’m sure you knew I could be without you” e passa a ser toda a gente no mundo que usa a desculpa do “temos de falar” porque “não acabámos bem” quando não, ninguém tem de falar depois de acabar, bem ou mal, só queremos mais dez minutos com aquele moço - ou moça. O fabrico e a exportação de frieza é todo um sector na economia dos sentimentos. Um sector, por sinal, afetado de sobremaneira pela contrafação.

“Glady”, a primeira canção a ser apresentada deste disco, é também uma das melhores. Tirzah já disse que este é obviamente um disco sobre amor mas é de um tipo que não explode muitas vezes, que ou é ou não é. Um aparte: quem é adepto de longos períodos de contemplação poética sobre a complexidade inextricável do amor é capaz de ficar irritado com ela na medida em que escreve coisas assim: “All I know / I got to be / With you / No reason not to be / Next to you / You next to me”. A voz enrola-se numa cadência de graves muito marcados pelo bombo da bateria, suavizados pelo piano em loop e, já no fim, por um coro de sons metálicos como se a chuva lenta de que ela falará a seguir fosse feita de invólucros de balas a cair num chão de vidro. “Feels like it’s raining super slow”, canta Tirzah e repete e repete e repete, sempre com o tempo marcado pelo bombo seco da bateria e a frescura do piano. A escrita é simples, como toda aquela que de facto revela alguma coisa. Os adornos são todos instrumentais, nenhum é de linguagem. Como dizia o crítico que escreveu sobre “Devotion” na FADER: “Quem me dera que ‘Glady’ já tivesse saído por altura do meu casamento”.

Em “Holding On” parece que ela e Mica voltam aos tempos em que gravaram o desarmante “I’m not dancing”, um hino do dance pop de 2013. É tudo muito, muito mais rápido mas é uma espécie de balada acelerada e triste, como tantas vezes são as melhores músicas de pista. “I’ll be thinking about you even when your gone”, canta Tirzah soterrada em estática e órgãos eletrónicos. “Affection” abre com um piano descoordenado que se passeia do auscultador esquerdo para o auscultador direito em perfeito efeito ‘surround’. Há sempre humildade e há sempre esperança: “You know you’re gonna make this right / Don’t be scared / Don’t look back”. “Basic Need” é a canção em que a voz de Tirzah mais lembra o registo clássico do R&B. Ela é aqui as divas todas, de Beyoncé a Lil Kim passando por Amerie e até por aquelas que já cá não estão, como Alliyah.

Na música que dá nome ao disco, “Devotion”, tudo muda outra vez, com distorção pesada a abrir a música, passando rapidamente para um piano sempre a repetir as mesmas três ou quatro notas quentes, tal como os pratos da bateria que entram só já depois dos 40 segundos de som mas que se mantêm até ao fim como fio condutor. Mas até aí é só o piano, quase opressivo, agravado, e a voz de Coby Sey, DJ, produtor e música da “crew” do sul de Londres.

É do meio dessas notas sempre iguais e apenas com elas como fundo que sai Tirzah com mais linhas desafetadas: “I just want your attention / I don’t want a solution / I just want to explain things / I’m not looking for reactions”, canta Tirzah. Para logo depois precisar o que é que quer dizer com isso da devoção num refrão que já fica para lá do terreno confortável. A sensualidade é óbvia e o volume da voz de Tirzah quase pede que seja explorada: “Yeah I want your arms / Your kisses, your devotion”.

Muitas destas músicas fazem lembrar a intimidade de “Blonde”, de Frank Ocean, o último de Solage, “A Seat at the Table”. É o incrível “We’re New Here”, do falecido Gil Scott-Heron, esculpido a meias com Jamie xx, e até é aquele registo esquisito de Kanye West, “808s and the Heartbreak”, em que o rapper tenta cantar e falha muito. Mas este disco também é “Swan Negro” dos Blood Orange e é Dizzie Rascal e Post Malone. Tirzah, de certa forma, também falha; falha se gostarmos de vozes puras, sem alteração em estúdio, que soam mesmo como se de uma coisa profissional se tratasse. Não há isso aqui. Os quilos de autotune de músicas como “Guilty” são um pouco exagerados na mesma medida em que aquele risco no lábio a definir o perímetro onde depois se irá colocar batom é exagerado. E no entanto haverá circunstâncias em que a completa camuflagem fará sentido. É como aqui. Tirzah consegue adulterar totalmente a sua voz, soando, em certas alturas, como se alguém tivesse programado um robot com voz de mulher e esse robot tivesse aprendido a gritar. A música abre com uns maravilhoso riffs de guitarra que podiam estar em qualquer disco prog e isso é mais uma prova da permanente tentativa da dupla em fazer-nos sair daquilo que achamos que, naturalmente, se devia seguir a seguir.

“Say When” é a última das inesquecíveis deste disco, excecionalmente atmosférico e efémero. É uma correria em direção à calma, uma urgência em deixar de sentir todas estas coisas contraditórias e sentir só uma, dentro de uma bolha de sabão com aquelas cores todas que às vezes também se veem na gasolina, espessa, derramada no chão. “You say you don’t know if you see this as forever / why did I let it go on so long?”, diz ela antes de implorar: “Say when you know”. É talvez a música onde há menos instrumentos à volta da sua voz. Ouve-se a primeira inspiração antes da primeira frase, ouvem-se os lábios de Tirzah a separarem-se para conseguir cantar. A música é quase toda piano, mas ligeiramente alterado para parecer que o estamos a ouvir debaixo de água. Fora isso são só ecos longínquos das próprias palavras que Tirzah canta.

Afinal, qual é a pior coisa que pode acontecer quando dizes a alguém o que queres? Nada. Discos como este.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: afranca@impresa.pt

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