Cultura

Dos “Tripíadas” a Vasco da Guna: o portuense que reescreveu os clássicos

"Clássicos da Literatura à Moda do Porto", de João Carlos Brito, reescreve com o linguajar "tripeiro" obras literárias incontornáveis da história portuguesa
"Clássicos da Literatura à Moda do Porto", de João Carlos Brito, reescreve com o linguajar "tripeiro" obras literárias incontornáveis da história portuguesa
d.r.

E se “Os Maias”, “Os Lusíadas”, “Frei Luís de Sousa”, o “Auto da Barca do Inferno” e o “Sermão de Padre António Vieira aos Peixes” fossem reescritos à moda do Porto, com o linguajar regional e as narrativas centradas em lugares da Invicta? Esta foi a epopeia a que João Carlos Brito se propôs com o livro “Clássicos da Literatura à Moda do Porto”

O relógio marca as 11h30 de uma manhã ensolarada na baixa portuense e, na Praça dos Leões, há uma miscelânea de idiomas entrecruzados. Um autocarro panorâmico passa repleto de turistas “na boa-vai-ela”, enquanto os tuk-tuk aguardam pelos “camones”, absortos a perscrutar os mapas, a pedir indicações quando “não entendem um chavelho” ou compenetrados na indispensável tarefa de fotografar todos os recantos. Um guia “dá ao badalo” (explica), em inglês, sobre as curiosidades e pormenores históricos relativos à construção da Igreja do Carmo, edificada entre 1756 e 1768. É este o cenário de uma cidade, cada vez mais na moda, onde o classicismo convive com a contemporaneidade cosmopolita atracada no Porto.

É no meio desta azáfama que “balhamedeus” e de um “cagaçal” (barulho) do “carago” que o Expresso “dá corda aos bitorinos” (apressa-se) ao encontro da essência da “Inbicta”, “filado” (interessado) em “dar ao sarrote” (falar) e “emborcar” (beber) um “cimbalino, no emblemático Café Piolho, com o autor João Carlos Brito, um autêntico arqueólogo da cultura e do linguajar tripeiros. É uma conversa, “numa naice”, sobre palavras. Aquelas do dia-a-dia, onde a gíria, o calão, os vocalismos e os idiomatismos ainda se conjugam num modo bem presente. Se Fernando Pessoa afirmava ter como pátria a língua portuguesa, já a “naçom” de João Carlos é, sem dúvida, o “portoguês”.

Todos os termos utilizados nos parágrafos anteriores — passíveis de causar perplexidade ou, recorrendo a mais uma expressão regional, capazes de deixar o leitor “paneleiro dos olhos” — podem ser encontrados no livro “Clássicos da Literatura à Moda do Porto”, de João Carlos Brito, lançado esta terça-feira, com a chancela da Lugar da Palavra. Este é já o sétimo título do escritor dedicado à linguagem marginal portuense, depois de, em 2016, ter publicado o “Dicionário de Calão do Porto”, atualmente na 12.ª edição.

Agora, num registo sempre bem-humorado, mordaz e lúdico, reescreve “timtim por timtim” e sem “salamaleques” (finuras) cinco obras fundamentais da história literária nacional. “Os Maias”, de Eça de Queirós, “Frei Luís de Sousa”, de Almeida Garrett, o “Sermão de Padre António Vieira aos Peixes”, o vicentino “Auto da Barca do Inferno” e “Os Lusíadas” são transpostos e adaptados, carregados de crítica e sátira, para o imaginário coletivo do Grande Porto, “mandando para os quintos” a sacralização normativa do idioma.

Nesta revisitação contemporânea dos clássicos, “Os Maias” passam a ser chamados de “Os Andrades”, uma família que habitava o “barraco mais top da ilha dos Guindais”. A história de um amor impossível mantém-se, quando Carlos de Andrade se apaixona pela irmã Eduarda e, juntos, se “deixavam fotografar para a imprensa da socialite e até o JN fez reportagem com muita letra sobre os dois”. O futuro parecia resplandecente e “pasta” não faltava. Carlos comprou um apartamento “à maneira” no centro. “Bibó o luxo!”, disse ela, "que até revirou os olhos com tanto mimo”.

Mas tudo haveria de mudar drasticamente quando Carlos, informado pelo melhor amigo, foi confrontado com a sombria história familiar. “Bem à moda do Porto, na manhã do dia seguinte, toda a Baixa já sabia e comentava o escândalo. João não teve culpa. Só contou ao barbeiro. Mas pediu segredo. O barbeiro também não teve culpa, pois igualmente segredo pediu quando contou ao cliente seguinte. E por aí adiante”, pode ler-se na obra. “Eduarda pôs-se na alheta e nunca mais ninguém lhe voltou a botar a vistinha em cima. Afonso de Andrade não aguentou a vergonha. Deu-lhe o chilique e quinou. Carlos meteu-se no comboio e começou um longo interrail por essa Europa fora”, prossegue a narrativa.

O livro proporciona igualmente uma odisseia por vários lugares do Grande Porto, como a Ribeira, Miragaia, a Afurada, a feira de Custóias ou até mesmo Ermesinde (a “terra das gajas bouas”, define João Carlos Brito, recuperando o epíteto popularizado num “sketch” humorístico dos Gato Fedorento).

O Velho do Restelo é substituído pelo Cota de Miragaia, relutante e “mete-nojo” relativamente à viagem de um famoso navegador, protagonista de “Os Tripíadas”, uma paródia e crítica ao expansionismo português. “A grande epopeia consiste na aventura marítima, num barco rabelo, até à Ericeira. O patrocinador da expedição foi a Pichelaria Santos, dado o interesse em apropriar-se do negócio das pranchas de surf”, desvela João Carlos Brito. Mas quem é Vasco da Guna? “É um ilustre portuense que, aventurando-se por mares nunca antes navegados, consegue implantar uma delegação dos nortenhos na moirama”, elucida o autor.

“Estamos a ser induzidos para uma padronização do vocabulário e do sotaque”

O processo de investigação, levantamento e redação da obra “Clássicos da Literatura à Moda do Porto” estendeu-se durante os últimos dois anos, para que haja o “máximo de rigor possível e apresente conclusões fidedignas”. A estrutura das obras é, desse modo, preservada.

“Respeito a estrutura, a diegese, as personagens e os símbolos, mas há anacronismos. O tempo e os espaços são outros. O registo de linguagem utilizada é distinta, com termos conhecidos dos falantes”, refere João Carlos Brito, sobre uma obra na qual está incluída o “Dicionário Clássico Tripeiro”, um glossário com aproximadamente 1000 entradas de palavras e expressões regionais, de forma a ser entendida por um público transversal e facilitar a compreensão dos leitores menos acostumados ao linguajar portuense.

“É um livro que pode chegar a qualquer pessoa e espero sinceramente que possa ser uma ferramenta de motivação para os mais jovens lerem os clássicos”, manifesta o escritor de 51 anos. “As minhas obras são estudadas nas universidades de Bolonha, Cáceres ou Extremadura. Mas também vejo pessoas que não sabem ler ou escrever interessadas no meu trabalho, porque é algo que lhes diz muito”, assevera.

Professor bibliotecário de profissão, assume-se como um “colecionador de palavras e expressões”, um interesse surgido nos tempos de estudante universitário, quando em 1985 dividiu casa com outros jovens de regiões distintas. “A Universidade de Aveiro era quase uma babel da lusofonia, porque num curto espaço havia gente de todo o país. Eu vivi numa casa onde habitávamos 12 pessoas. Algumas do Porto, mas havia um açoriano, outros colegas de Coimbra e também de Lisboa. Comecei a constatar que muitas das coisas que eu dizia não eram compreendidas, palavras que para mim eram universais, como apanhador ou picheleiro”, recorda este pensador e apaixonado pela sociolinguística.

“A língua é um fenómeno mutante, que muda com uma rapidez impressionante” e “é uma matéria quase inesgotável”, frisa João Carlos Brito, acrescentando que “utilizamos um registo informal em aproximadamente 98% do nosso dia”, fenómeno que descreve “interclassista e transversal a várias faixas etárias”. O autor lamenta ainda a tentativa de uniformização da língua falada, alertando que “estamos a ser induzidos para uma padronização do vocabulário e do sotaque utilizados”, num processo em que os povos acabam por “renegar as suas origens”.

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