É sobre jornalismo, influências, ganhos e perdas. O que está por por trás de um notícia que faz a primeira página de um jornal? Esta é a história de uma das grandes revelações da imprensa: os Pentagon Papers. E quem a conta são três nomes igualmente grandes: Steven Spielberg, Meryl Streep e Tom Hanks
O timing é essencial no jornalismo. Seja pela rapidez de reação e publicação ou pelo contexto social que se atravessa. Publicar a notícia no momento certo pode fazer toda a diferença no impacto. Muitas vezes, o tempo é pouco mas é preciso reagir quase de imediato. Foi isso que aconteceu em “The Post”. Em pouco mais de 11 meses, Steven Spielberg passou de um rascunho de “uma história que tinha de ser contada de imediato” para um filme de 116 minutos com dois nomes grandes do cinema. “The Post” foi feito com urgência - e isso nota-se.
“Quando li o primeiro guião, sabia que não era algo que podia esperar dois ou três anos, era uma história que tinha de contar imediatamente”. Spielberg teve o rascunho nas mãos algures em fevereiro de 2017, em maio começou a filmar, em novembro terminou e nos primeiros dias de dezembro o filme chegou aos cinemas. “O nível de urgência deveu-se ao atual clima desta administração, que bombardeia a imprensa e, quando lhe dá jeito, rotula a verdade como falsa. Lamento a hashtag ‘alternative facts’, porque sou um crente numa única verdade, que é a verdade objetiva.” “The Post” é sobre o jogo de poder entre política e os órgãos de comunicação e, embora seja passado no começo de 1970, talvez não seja uma realidade assim tão distante.
“The Post” é sobre jornalismo e uma das grandes fugas de informação, os Pentagon Papers. Mas é também sobre as influências. De como um escândalo chega às mãos do editor e corre até rebentar na primeira página do jornal. O que acontece de um momento até ao outro?
Em 1971, um analista do governo norte-americano, Daniel Ellsberg, conseguiu copiar milhares de páginas de um estudo encomendado pelo então secretário da Defesa, Robert McNamara, sobre as implicações dos Estados Unidos da América na Guerra do Vietname e não só. Primeiro, cópias daquele documento ultra-secreto chegaram ao “The New York Times”, que foi legalmente impedido de continuar a publicá-las. Dias depois, os mesmo documentos chegaram às mãos do “The Washington Post”, que internamente atravessava um período algo conturbado.
O resto já conhecemos: em tribunal, as duas publicações vencem a Casa Branca, os Pentagon Papers foram divulgados e o “The Washington Post” deixou de ser apenas um “jornal de família”. O que não sabíamos, e que agora ficamos a saber, foi tudo o que aconteceu nos bastidores. “The Post” mostra-nos a paixão do editor Ben Bradlee (quão deliciosa é a cena em que manda o estagiário à sede do “The New York Times” para saber o que a concorrência está a planear?) e a falta de experiência da administradora Katharine Graham (Kay) em momento de crise. Sobretudo para ela há muito em jogo com a publicação dos documentos. Além da pressão da Casa Branca, há o lado pessoal, ou não fosse amiga próxima de McNamara, que não sai nada bem com a divulgação dos documentos.
Katharine Graham com McNamara
FOTO Universal Pictures International
Como alguém dizia há dias, esta não é a história dos operários, entenda-se dos jornalistas, é de quem tem o poder, de quem realmente toma as decisões: editores, chefias, administradores.
“Quem controla a imprensa? [O filme] Mostra também como a imprensa é apenas um conjunto de indivíduos. Cada um deles negoceia com aquilo que lhes vai custar ao dizerem a verdade e ir à luta por uma posição difícil. Ben, e certamente Katharine, tem tanto a perder. E é aí que a coragem é encontrada”, disse Meryl Streep em entrevista ao “The Guardian”.
Os dois grandes
“Talvez se possa mandar outra pessoa”, sugere Kat. “Nop, não. Não vou mandar outro jornalista”, interrompe Ben de imediato em tom ligeiro. “Não é uma notícia difícil, é apenas um casamento”, continua a publisher, pouco assertiva e numa tentativa de resolver aquilo que no futuro pode ser um problema. “Não é apenas um casamento. É o casamento da filha do Presidente dos Estados Unidos da América. Não podemos deixar a Administração ditar como fazemos a cobertura do evento apenas porque não gostam daquilo que publicamos sobre eles”, argumenta Ben.
O assunto (quase) morre por ali. Não é de todo uma das cenas decisivas em “The Post”, mas é das que melhor revela o caráter do editor Ben Bradlee, mais tarde essencial nas decisões sobre os Pentagon Papers. Ele é, provavelmente, um dos grandes trunfos do filme. Qualquer jornalista, novo ou sénior, daria tudo por um editor destes (felizmente, há alguns assim). Apesar de Tom Hanks não estar nomeado pela interpretação, entusiasma. Não aquilo a que se chama um papelão, porque não o é. Mas é bom, porque Tom Hanks nunca é mau - às vezes é só um bocadinho menos incrível.
Ben Bradlee e Katharine Graham
FOTO Universal Pictures International
Foi a primeira vez que se juntou a Meryl Streep (“não cantava bem o suficiente para entrar no Mama Mia!”, disse o ator). A dinâmica entre os dois é bonita mas não surpreendente. Nenhum deles é brilhante, Streep, tal como Hanks, nunca está mal. Com mais de 20 nomeações e três Óscares ganhos (“A Dama de Ferro”, “A Escolha de Sofia” e “Kramer contra Kramer”), volta a repetir a proeza. A sentida e vulnerável Katharine Graham vale-lhe mais uma nomeação ao Óscar de melhor atriz – a única nomeação de “The Post”, além da indicação para melhor filme.
Liberdade de imprensa e sexismo… onde já ouvimos isto?
São várias as vezes que conseguimos trazer o que aconteceu naqueles tempos para a atualidade. A questão da liberdade de imprensa está, logicamente, sempre presente. Mas há outro tema que hoje se discute com o mesmo ou até maior afinco: a igualdade de género. Aliás, nas recentes cerimónias de entregas de prémios, os atores e atrizes têm-se juntado ao movimento Time’s Up – que não é apenas de apoio às vítimas de assédio sexual -, que quer promover uma indústria mais equilibrada.
Katharine Graham era uma mulher no meio de homens. O jornal passou do seu pai para o marido e quando enviuvou é que a direção lhe foi entregue. Quem a rodeia sabe que foi apenas por isso que assumiu o cargo. “O pai deu o jornal ao marido dela. A única razão pela qual está aqui é porque o marido morreu”, ouve-se a cochichar um dos membros da Administração logo no começo do filme. E isso afeta-a e fá-la duvidar de si.
Foto Universal Pictures International
Já mesmo no final, à saída do Supremo Tribunal, há uma cena - meio estranha e até forçada - que deixa bem claro o objetivo de destacar o papel daquela mulher enquanto líder. Depois de autorizada a publicação dos Pentagon Paper, Kat desce as escadas, enquanto um raio de luz a ilumina e ela é observada de perto por uma multidão de mulheres. Sai vitoriosa e como um exemplo.
Spielberg mantém um tom otimista ao longo de todo o filme, que os bons vencem os maus, que as influências e pressões exteriores são derrotadas. Talvez seja uma mensagem de esperança de que melhores dias estão para vir. Ou então um alerta. Quando há tantos e tão bons filmes sobre jornalismo, jornalistas e notícias – basta recordar o recente “Caso Spotlight” (2015) ou o já mais antigo “Os Homens do Presidente” (1976) - “The Post” acaba por saber a pouco. Mas tem valor - e muito - pela mensagem. “É relevante para toda a gente. Mas obviamente, às vezes as coisas más repetem-se e, sem dúvida, a história está a repetir-se”.