Podemos saber muito sobre alguém pelo que come ao pequeno almoço
“A Linha Fantasma” é sobre comida, moda, anos 50, talento. Mas também é obsessão, paixão, intensidade, inspiração. É a relação do criador com a musa. E da musa com o criador
“A Linha Fantasma” é sobre comida, moda, anos 50, talento. Mas também é obsessão, paixão, intensidade, inspiração. É a relação do criador com a musa. E da musa com o criador
Coordenadora de Multimédia
Um ovo escalfado “não demasiado mole”, um welsh rarebit (molho à base de manteiga e queijo servido tradicionalmente numa fatia de pão torrado), bacon, scones, manteiga, geleia “mas não de morango”, salsichas e um bule de chá de LapSang SouChong. O pedido é longo, preciso, caprichoso. Um pequeno almoço robusto para aquele que mais tarde viremos a conhecer também como “homem esfomeado”. É num romântico hotel de campo que o designer Reynolds Woodcock se encontra pela primeira vez com Alma (assim mesmo, sem apelido), a empregada e a futura musa. Se por momentos achamos que dali vai nascer uma bonita história de amor, não podíamos estar mais enganados. E bastam alguns segundos para perceber isso mesmo: ele desafia-a, roubando-lhe o caderno. “Vai lembrar-se de tudo?”, pergunta-lhe, vibrando por a deixar nervosa, submissa, meio sem jeito.
Alma lembra-se de tudo. Não falha. Isso ainda o entusiasma mais. Woodcock convida-a para jantar (vai perceber que a comida e as refeições desempenham um papel importantíssimo na narrativa) e, logo ali, Alma mostra que não é assim tão submissa. Não responde logo, faz uma pausa. Deixa o silêncio respirar e só depois se ouve “sim”. O espanto e admiração por aquele homem mais velho não podiam ser mais genuínos, porque até gravarem a cena, o consagrado Daniel Day-Lewis — o único vencedor de três óscares — fez questão de não se cruzar com a pouco conhecida Vicky Krieps. Foi ali, tal como Reynolds e Alma, que os dois se falaram pela primeira vez.
“Pode-se dizer muito sobre alguém pelo que esta come ao pequeno-almoço.” Paul Thomas Anderson sabe bem que aquele pedido nos revela um pouco de Woodcock e mais tarde também percebemos que aquilo não era apenas um pequeno-almoço. O apetite daquele homem não é apenas pela comida.
“Linha Fantasma” passa-se algures na Londres dos anos 50. Reynolds Woodcock é um designer de renome entre a classe alta europeia. Vive rodeado por mulheres que o inspiram. Nunca casou e mantém quase uma fidelidade matrimonial com os seus vestidos. Aparentemente, deixa-se arrebatar facilmente pelo sexo oposto, ou melhor, pela inspiração que lhe proporciona. Com a mesma rapidez que se encanta, desencanta-se. Até que conhece Alma numa viagem ao campo, em que não é claro se tinha como objetivo definido encontrar uma nova musa.
Alma e Reynolds são intensos, demasiado intensos. Obcecados. E vão encontrar uma forma de se amarem – no mínimo, estranha. Há tensão sexual sem nunca ser explícito. Além da cena final, um dos momentos mais sensuais é logo no primeiro encontro, após o jantar. Quando o génio leva a musa até à sala de costura e pede-lhe que se dispa. Não quer fazer amor, quer tirar-lhe as medidas, conhecer cada centímetro daquele corpo. E depois quer vesti-lo com a mais delicadas das sedas. A forma como a câmara acompanha o movimento, quase como se fosse os olhos do costureiro é bonita, elegante. “Quer uma modelo e uma musa em vez de uma amante, mas não consegue bem fazer essa distinção”, sublinhava uma das críticas do jornal britânico “The Guardian”.
Há momentos de grande rapidez que são abruptamente travados com cenas calmas, lentas, de pormenor quase como uma forma de deixar o espectador repousar um pouco da intensidade dos dois amantes. E depois há planos pouco comuns, a maneira como Anderson apresenta as viagens no carro é deliciosa, sempre gravadas do lado de fora. O realizador está nomeado para o óscar e, no total, “Linha Fantasma” soma seis nomeações: melhor filme, melhor figurino, melhor banda sonora, melhor ator (Daniel Day-Lewis) e melhor atriz secundária (Lesley Manville, que interpreta a irmã de Woodcock).
O método de Daniel Day-Lewis já é conhecido: absorve ao máximo cada uma das personagens, numa completa submersão nas histórias, memórias e vivências. Não as interpreta, vive-as. E uma vez mais, voltou a fazê-lo. Aos 60 anos, aprendeu a coser, viu antigos desfiles de moda dos anos 40 e 50, leu as biografias de uma série de designers.
“Antes de fazer o filme, não sabia que ia parar. Sabia que eu e o Paul nos rimos bastante antes de fazermos o filme. E depois, parámos porque estávamos os dois assoberbados pela tristeza. Apanhou-nos de surpresa: não sabíamos aquilo que tínhamos criado. Foi difícil viver com isso. E ainda é.” É raro dar entrevistas, é seletivo e deixa grandes períodos entre filmes.“Ele odeia representar”, dizia em tempos um realizador que trabalhou com Day-Lewis. O desafio de ser uma nova pessoa, fazia-o regressar. Agora, não mais regressará (e que bem que termina).
A sequência inicial de “Linha Fantasma” tem tanto de Woodcock como de Day-Lewis. Enquanto o designer se prepara para mais um dia, escova impecavelmente o cabelo, apara a barba e engraxa os sapatos quase conseguimos ver ali apenas o ator britânico a entrar na personagem. E é ele que brilha mais. Mas ao lado tem duas mulheres absolutamente poderosas.
Além de Alma, a sua irmã Cyril (Lesley Manville). De postura austera, é talvez a única mulher em que Woodcock realmente confia, é ela que se encarrega de afastar as musas lá de casa quando deixam de ser inspiradoras. Está sempre presente embora tenha o dom de parecer que nunca está.
A revista norte-americana “New Yorker” chamou-lhe “o melhor filme de comida nos últimos tempos”. É à mesa que acontecem os grandes momentos do filme. Aliás, a moda quase que acaba por se tornar secundária quando comparada com a gastronomia. “Se o pequeno-almoço não corre bem, é muito difícil para ele recuperar ao longo do dia”, alerta Cyril a Alma. Woodcock fica completamente afetado pelos barulhos, pelo barrar da manteiga na torrada, o chá a cair na chávena. Se o pequeno-almoço os uniu, também vai ser o tabuleiro do jogo de poder entre os dois. A tensão aumenta e, novamente, a comida volta a ser completamente fulcral.
A partir do momento em que a ex-empregada de mesa compreende como pode manipular Woodcock tudo muda. Descobrem as fraquezas de cada um e usam-nas. A narrativa salta de uma ataque para o outro mas com amor. Precisam um do outro, embora nem sempre o saibam.
“Não o vejo como um duelo, mas como um dueto. Os níveis de poder da Alma e do Reynolds são diferentes. Muitas relações podem tornar-se difíceis e pode ser complicado recuar. A Alma encontra uma solução bastante perigosa. Às vezes, os casais mais velhos que estão juntos há anos, têm as mais estranhas formas de continuarem juntos — fazem jogos, muitas vezes sexuais”, dizia Vicky Krieps. De alguma forma Alma e Reynolds fazem com que resulte, encontram uma estranha forma de amar. E Anderson deixa-nos sem perceber muito bem o que aconteceu.
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