Cultura

Simone de Oliveira:“Tenho a obrigação de ser uma mulher feliz!”

Capa com gola de pelo Hotel Particulier, camisa Michael Kors, lenço Pochet e calças Stella McCartney, na Loja das Meias; anel Eugénio Campos e sapatos de veludo Massimo Dutti
Capa com gola de pelo Hotel Particulier, camisa Michael Kors, lenço Pochet e calças Stella McCartney, na Loja das Meias; anel Eugénio Campos e sapatos de veludo Massimo Dutti
joão lima

Chegou a perder a voz, mas nunca as palavras. Não fosse ela a mulher que chocou o país cantando “quem faz um filho fá-lo por gosto”. Protagonista de um musical que celebra 80 anos de vida e 60 de palcos, Simone continua a desafiar-nos

A voz, imponente, retumba do outro lado da porta do auditório como o motor de um Boeing 747 pronto a descolar. Quase sentimos as paredes estremecer, mas, ao invés de fugirmos, seguimos aquele canto magnético que nos arrasta em direção ao palco. O avião parece estacionado ali mesmo, no centro, e o motor ouve-se agora com mais intensidade. Soa assim: “No teu poema/ Existe um verso em branco e sem medida/ Um corpo que respira, um céu aberto/ Janela debruçada para a vida.” Depois, a voz sobe de tom, o ritmo acelera, as palavras parecem arrancadas do peito e cuspidas cá para fora, como um vulcão de lava. “No teu poema existe a dor calada lá no fundo/ O passo da coragem em casa escura/ E, aberta, uma varanda para o mundo.” É uma voz feita de cicatrizes e carregada de dramatismo, onde “as palavras reencontram a vibração e o volume o contorno e a sombra, o desgarrar ou a frescura”, como escreveu um dia David Mourão-Ferreira. É a voz de Simone de Macedo e Oliveira, um avião que desafia as leis da Física. Como é possível que, quase a chegar aos 80 anos, descole e voe tão alto, se já não consegue acelerar pela pista como nos tempos da juventude?

joão lima

“A vida tem planos para nós que superam os nossos sonhos.” É uma frase sua. O balanço é esse?
É. Jamais me passou pela cabeça fazer este caminho. Não lhe chamo profissão, porque isso é outra coisa. Chamemos-lhe paixão, destino. As coisas foram acontecendo porque tinham de acontecer. Também não sei explicar porque aconteceram desta maneira. Digo sempre: “Eu não escolhi esta vida. Foi esta vida que me escolheu.” Aos 19 anos, tudo isto era impensável.

Porquê?
Porque, em 1956, as meninas estudavam e casavam. Ser artista era ser uma mulher da má vida. Nunca me passou pela cabeça cantar ou representar, ainda menos fazer 60 anos de percurso. Jamais, em tempo algum! O que aconteceu foi que eu casei e ao fim de dois meses fugi.

Foi vítima de violência doméstica mal casou?
Fui. Não gosto muito de falar disso. É uma coisa que está lá atrás, não foi apagada. Tudo o que aconteceu na minha vida, daí em diante, foi motivado por essa fuga. Não houve mais nenhum motivo. Fujo porque sei o que não quero. Fi-lo mais vezes na minha vida. Também não fui viver para uma tenda no mato, em África, com duas crianças...

Com o pai dos seus filhos?
Sim, com o qual não cheguei a casar. Não é uma má pessoa. Esqueceu-se é que tinha filhos. É um problema da cabeça dele. Imaginava o mundo à maneira dele, era como ele queria ou não era. Ora, eu tinha 23 anos, um filho com 6 meses, o Pedro, e uma filha com 2 anos, a Maria Eduarda. Ir com eles para a Beira, em Moçambique, era como ir viver para a Lua. Eu pensava: agora deixo o meu país, os meus pais, e vou para o mato? O que é o mato? O que é uma tenda? Possivelmente, outra mulher teria ido. Eu não fui. Estou arrependida? Não. Voltava a fazer a mesma coisa? Voltava. Quando não quero, salto. O que está do outro lado? Não sei.

De onde vem essa força?
Não sei. Não sei mesmo! É uma pergunta que faço a mim própria. Gostava que alguém me explicasse. Tenho uma grande apetência de viver e uma cabeça tão no sítio. Espero que se mantenha! Perder a lucidez é uma daquelas coisas que não quero imaginar. Vejo mulheres da minha idade que parecem minhas mães ou mesmo avós, pela forma de vestir, de falar... Algumas até mais novas. Penso: o que é que aconteceu dentro de mim para que eu não fosse aquilo? O normal era ser aquilo. Sei que não o sou. Não sei explicar porquê. Há qualquer coisa que me ultrapassa.

A sua família não é convencional.
Sim, a minha família tem uma mistura de raças maravilhosa... Quando digo que a minha bisavó era negra, respondem-me: “Oh, Simone!” A minha bisavó Trindade era negra e, com o meu bisavô, teve vários filhos mulatos. Mulatos com olhos azuis. Louros com olhos escuros. É uma grande mistura, da qual devo ter trazido qualquer coisa. O meu professor de voz, Luís Madureira, diz que tenho um posicionamento da caixa vocal do tipo africana. Esta queixada [levanta o queixo]... Ninguém consegue ter esta abertura. Tive-a sempre. Perdi os agudos todos quando perdi a voz, mas gosto muito mais desta voz do que da outra.

Simone reconhece o óbvio: “Não é normal uma mulher desta idade ter este vozeirão.” Está sentada numa cadeira alta, de calças cinzentas e de ténis azuis, a fazer o ensaio de som horas antes da estreia na Figueira da Foz do espetáculo autobiográfico “Simone, o Musical”. A cantora e atriz nunca dispensa “abrir a voz” antes de a cortina subir. A canção que ela agora canta, ‘No Teu Poema’, foi interpretada pela primeira vez por Carlos do Carmo no Festival da Canção de 1976. “Quando a ouvi, estava em Nova Iorque e pensei logo em pedir ao Carlos para usá-la. Agarrei nela e acabei por torná-la minha.” Ninguém a canta como ela. Talvez por a letra parecer, às vezes, ter sido escrita para Simone e para esta fase da sua vida. Por exemplo, quando entoa: “Existe a noite/ O riso e a voz refeita à luz do dia/ A festa da Senhora da Agonia/ E o cansaço/ Do corpo que adormece em cama fria.

Camisa by Malene Birger e colete em pele e pelo Hotel Particulier, na Castilho 71; calças Stella McCartney, carteira Michael Kors e chapéu Seeberger, na Loja das Meias; brincos e anel Eugénio Campos
joão lima

Ter duas vozes é como ter tido duas vidas?
Não tive só duas vidas. Tive várias. Tive o primeiro cancro aos 50 anos e cerca de 10 anos depois o segundo... Já nem sei bem. Não me lembro.

Nunca pensou que ia morrer?
Não, nem pensar! Era o que faltava! “Não está nada a apetecer-me!” é a minha grande frase. Desde que não seja pesada para ninguém, claro. Desde que esteja lúcida, seja capaz. Continuo a calçar as meias, a vestir as calças, a conduzir e a tomar banho sozinha. Estou aqui, nesta casa [um pequeno apartamento no Príncipe Real, em Lisboa], sozinha, há 21 anos [desde a morte do marido, Varela Silva].

Tem uma grande tolerância à dor?
Alguma. Dá-me a sensação de que a apago. Não é que a queira apagar, mas apago. Às vezes, as pessoas dizem-me: “Lembras-te?” Lembro-me. Realmente, lembro-me. Chorei que me desunhei. Lembro-me muito bem de quando tive a notícia. O Varela aqui sentado, a dizer-me: “Estás doida.” E eu dizia: “Não, estão aqui os exames... Estás a ver?” E ele dizia: “Tu não estás boa da cabeça.” Claro que chorei, claro que sim. Mas digo sempre ao meu filho: “Já volto!”

Nunca entrou em pânico?
Não, nunca entrei em pânico. Na altura, tive uma pontada no peito. Cheguei ao Porto e fiquei a pensar na picada. Estava numa casa de fados às três da manhã, com o meu querido Jorge Barradas, e perguntei-lhe: “Olha lá, conheces alguma ginecologista?” E ele: “Não. Não me digas que estás grávida!” Rimo-nos tanto às três da manhã, enquanto se cantava o fado... Ele perguntou-me porque é que eu queria uma ginecologista. “Porque EU quero.” Fui a uma clínica na Avenida dos Aliados. Tinha ido ao médico, em Lisboa, 15 dias antes, e ele tinha-me dito que estava tudo bem.

Desconfiou do primeiro diagnóstico?
Não foi desconfiar. Não sei o que foi...

Pressentimento?
Por aí, sim...

Porque é que não usa a palavra ‘pressentimento’? Não acredita?
Claro que acredito. Sou profundamente esotérica, e se tivesse de ser alguma coisa era espírita. Acredito muito nisso.

Tem uma relação difícil com Deus?
Não! Tenho uma relação difícil com a Igreja Católica. Gosto deste Papa, porque meteu a mão num saco de moribundos e só não morreu por acaso. Não calhou. Ele está a desmistificar uma série de coisas. Onde é que está o papel que Nosso Senhor escreveu a dizer que os padres não podem casar-se? Se se casassem, naturalmente, não havia tantos pedófilos. Sabemos lá se Cristo se casou ou não... Depois, há outra coisa: se o Vaticano quisesse, podia fazer hospitais no Corno de África. Tem dinheiro que nunca mais acaba. Mas não fazem. Estão a brincar comigo, não estão? Andei de papel na mão a pedir aos padres para batizarem os meus filhos. Não aceitaram fazê-lo porque eu era amancebada. É uma das palavras que mais odeio. Que culpa é que tinham os meus filhos de terem nascido de pais que não eram casados? Admite-se a figura de mãe solteira? Foi preciso um Papa vir dizer que não há mães solteiras, há mães. Mas tivemos de esperar 50 anos! Onde é que está a bondade, a compreensão, aquilo que Cristo, se existiu, terá ensinado? Os divorciados não podem voltar a casar pela Igreja, os não casados não podem batizar as crianças... Não tenho 
paciência!

Mas acredita que a vida é só isto?
Não. Acredito que há qualquer coisa para lá [da morte]. Somos todos energia, e haverá do outro lado uma energia qualquer. Tenho razões para acreditar nisso porque vivi com uma pessoa, uma tia, que fazia as coisas andar de um lado para outro sem ninguém lhes mexer. No dia em que eu casei, ela chegou a casa e disse: “Que desgraça, que fatalidade! Vai acontecer isto e isto à Simone...” Os filhos dela disseram-lhe: “Já sabemos que a mãe gosta mais da Simone do que de nós!” A verdade é que acertou em tudo. Foi assim até ao fim da vida. Tudo o que ela previu concretizou-se. Era uma mulher inteligentíssima.

Acredita que herdou esse sexto sentido?
Um bocadinho. Não vejo nem oiço coisas. Mas a história do peito é um bom exemplo. O primeiro médico dizia: “Não tem nada, não tem nada.”

Blusa em malha e colar Massimo Dutti e calças Stella McCartney, na Loja das Meias; brincos em ouro com cristais Swarovski
joão lima

Depois de seis semanas no Teatro Tivoli BBVA, em Lisboa, e de três sessões lotadas no Coliseu do Porto, o Centro de Artes e Espetáculos da Figueira da Foz é a terceira paragem do musical que propõe uma viagem pela vida e pela carreira de Simone (e que tem novas datas a partir de janeiro). É o regresso a uma cidade que lhe diz muito: foi no casino, ali bem perto, que viveu alguns dos momentos mais marcantes da sua carreira — como a vitória no Festival da Canção da Figueira da Foz em 1962 — e foi também lá que, em 1973, cantou pela primeira vez três anos depois de ter “perdido o pio”. Tinha aceitado o convite para ser locutora de continuidade durante o mês de agosto e, certa noite, a meio de um concerto de Carlos do Carmo, o fadista chamou-a ao palco para cantar com ele ‘The Shadow of Your Smile’. A voz de Simone tinha mudado, tornara-se mais grave, mais profunda, uma voz de mulher adulta, mas o talento dela continuava intacto. “É que nunca foi a voz”, lembra-lhe Varela (interpretado por José Raposo) numa das cenas do musical. “Sempre foste tu. Tu dentro 
da tua voz.”

Percebeu porque é que perdeu a voz?
Não. Tive laringites, faringites e continuei sempre a cantar. Talvez tenha sido a voz mal colocada e o excesso de trabalho. As cordas vocais são como os elásticos. Aquilo estava tão bambo... tão bambo que o pio acabou. Estive sem cantar quase três anos. Sem falar foi pouco tempo.

Deve ter sido uma bofetada enorme?
[Longo suspiro] A Maria Eduarda tinha 10 anos e o Pedro tinha 8. Foi a seguir à ‘Desfolhada’, e eu só pensava: “O que é que faço à minha vida?” Nunca fiz outra coisa, já cantava há 12 anos. Na altura, vivia em Benfica, numa casa que tinha uma lareira que nunca acendi. E não sei porquê, nesse mesmo dia, estava na cama a chorar quando recebi um telefonema do Mário Silva [da revista “R&T”]. Era o homem anterior ao Mário Castrim e que, quando escrevia, me matava, dia sim dia não, nas suas crónicas. Só pensei: “O que é que eu fiz agora?” E ele perguntou-me: “Ó Simone, você quer vir escrever?” Eu: “Como?” Tive uma página chamada “Sombras da Ribalta”, onde escrevinhava umas coisas. Comecei por assinar com o nome da minha filha.

Porque é que não usou o seu nome?
Porque parecia parvo ser a Simone de Oliveira a assinar. Não queria que as pessoas dissessem: “Agora, a mulher não canta e deu-lhe para escrever!” Se há alguém que sabe muito bem o que as pessoas dizem sobre mim sou eu. De mim disseram tudo! Tudo! A revista “Flama” não queria pôr a minha fotografia na capa porque era uma revista católica e eu era divorciada e tinha filhos de pais incógnitos. Um dia ganhei um prémio e tiveram de pôr. Fui sempre lutando contra essas coisas todas. Não se metam comigo. Porque posso morrer, mas vou lá! Vou lá de cabeça levantada!

Simone é uma mulher múltipla, para quem a vida não tem meio termo. O musical tenta desvendar-lhe todas essas identidades, que encaixam como ‘matrioskas’: a Simone das cantigas, da ‘Desfolhada’ ao ‘Sol de Inverno’, dos grandes palcos às casas de alterne; a atriz, de revistas e de novelas; a jornalista (“escrevinhadora”, diz ela), locutora de continuidade, apresentadora de concursos e de programas de televisão e de rádio quando a voz a abandonou; a revolucionária, que casou com 19 anos e decidiu separar-se dois meses depois; a mãe de dois filhos, registados como sendo de pais incógnitos, porque não era casada com o progenitor deles; a alma livre, temperamental, que nunca se cala; a “sobrevivente de muitas coisas”, incluindo dois cancros da mama; a esponja emocional, que tanto ri até às lágrimas como se fecha na casa de banho quando precisa de chorar até secar por dentro; a amante da vida, que adora a noite e não dispensa um bom copo; a que faz de diva como poucas mas que se comove com as homenagens do público... No último dia no Coliseu do Porto, “as pessoas ficaram a bater palmas oito minutos”, conta Paulo Dias, diretor-geral da UAU, que produz o espetáculo. “Houve uma senhora que se ajoelhou à frente 
do palco.”

Camisa Michael Kors, lenço Pochet e calças Stella McCartney, na Loja das Meias; anel Eugénio Campos
joãi lima

O que é mais importante na vida?
Os meus filhos, claro.

Nos valores morais, qual é o mais importante?
A independência e a liberdade. Não sou comprável, graças a Deus! Se consegui alguma coisa, foi com o meu esforço e trabalho. Com muitas lágrimas. Muitos socos na minha alma. Socos no ar. Não fiz uma carreira internacional e tive tudo, por três vezes, de mão beijada para o fazer. Hoje, seria milionária. E depois? Depois não teria estes filhos, teria outros. Ou tinha estes, sendo outras pessoas.

Os seus filhos viveram sempre com os seus pais?
Sempre, desde que nasceram. Mas quando vivi com o Henrique [Mendes] e com o Varela [Silva], os meus filhos passavam as férias connosco. Não podia ser de outra forma. Eu tinha de ganhar dinheiro. O pai deles nunca deu um chavo, um livro, um par de sapatos... Até hoje. E está vivo. Não é mau rapaz. Esqueceu-se! Os meus pais foram extraordinários, maravilhosos, deslumbrantes. Aceitaram-me com os defeitos todos, com as fugas e contrafugas. Naquela altura, quando alguém se casava pela Igreja, era para sempre...

O seu marido foi violento logo na noite de núpcias?
Não sei o que é uma noite de núpcias. Deve ser uma coisa para as pessoas serem felizes... Depois desse casamento nunca mais fui a mesma. Desapareceu a menina que fui até aos 19 anos: pachorrenta, gordinha, com caracóis... Alguém para quem tudo era bom, bonito... Depois disto, foi muito difícil respeitar as pessoas. Levei anos. Respeitava absolutamente o meu pai. Considero-o pela verticalidade, pelo carácter, pela honestidade... Chamavam-lhe “o bolchevista”, para não lhe chamarem “o comunista”. Ele era diretor de uma fábrica de moagem nos Olivais, cujo dono era o Castanheira de Moura. Sempre foi um homem de espinha dorsal. Tive uma infância e uma adolescência felicíssimas.

Com luxos?
Não! O meu pai tinha uma casa dentro da quinta. Eram as couves, as frutas... A minha mãe era empregada dos Correios. Vinha todos os dias para Lisboa, que era uma coisa que ela odiava. O dia mais feliz da vida dela foi quando se reformou. Odiava ser empregada! Odiava fazer-me as tranças de manhã! Chorava eu e ela.

A sua vida mudou depois de os seus pais morrerem?
Mudou. Foi um horror quando a minha mãe morreu. Eu tinha 33 anos. O meu pai morreu depois, tinha o meu filho 15 anos. Eu já vivia com o Varela. Faz em dezembro 22 anos que ele morreu.

Antes teve uma relação com o Henrique Mendes...
Sim, sete ou oito anos. Foi uma paixão assolapada de ambos os lados.

Porque é que ele nunca mais lhe falou?
Gostávamos todos de perceber.

Porque lhe disse: “Já chega!”?
Isso disse! Tantas meninas? Não! Acho que o Henrique nunca resolveu interiormente ‘o diferendo Simone’. Eu demorei três anos a resolver.

A vossa relação acaba com a ‘Desfolhada’, onde aliás se nota a sua raiva a cantar.
Sim. Então, ele estava na plateia com uma menina... Como é que eu não havia de estar chateada? Naquela altura, ainda vivia comigo. Nesse dia não jantei, porque ele se esqueceu de ir buscar-me. Fiquei sozinha no Teatro São Luiz.

Antes desse dia não teve ciúmes?
Não! Eu sabia quando é que ele começava e acabava [um caso]. No início, dizia sempre uma destas três frases: “O telejornal hoje acaba mais tarde”, “Gasta-se muito dinheiro nesta casa”, “Estou muito cansado”... Nunca mudou. Um dia, chegava a casa e dizia: “Olá, meu olhinho de alface.” Depois, bebíamos dois copos de vinho tinto.

As traições não a magoavam?
No dia em que magoaram disse-lhe: “Vais para a mesma cama de onde saíste.” Sou muito cabra quando quero. Andei anos a chorar baba e ranho. Foi muito importante? Foi. Um dia passou. Quando ele se casou com a Glória de Matos pedi-lhe, através do irmão, que me devolvesse as cartas que lhe enviei. Ele respondeu que as cartas eram dele.

Ficou com a ideia de que os homens são mais infiéis?
Atualmente, não sei quem é que é mais infiel. Talvez as mulheres fossem, naquela altura, mais infiéis às escondidas.

A Simone foi infiel?
[Risos] Fui.

Diz isso com um brilho nos olhos.
Porque acho graça. Não penso que seja assim tão grave. Não é: “Meu Deus, matei alguém! Roubei.” Não! Acontece a qualquer um. Quem disser que não, mente. Agora, ponho as mãos no lume pela minha santa mãe. Aliás, ela disse-me que só tinha tido e amado o meu pai. Ela chamava-se Maria do Carmo. Toda a vida o meu pai a tratou por Maria, e ela sempre lhe respondeu durante 45 anos: “Não sou Maria, sou Maria do Carmo.”

Acha que ela foi feliz?
A felicidade é um conceito tão difícil de definir. Mas acho que foi um casal que, à sua maneira, se amou e se entendeu. Tivemos uma vida sem grandes luxos, mas os Natais com as minhas avós eram ótimos. Os meus primos, as minhas tias, a Olga e a Maria Helena... Tudo se foi esvaindo. Mas mantemos os Natais. Ficou uma raiz da minha mãe e do meu pai. Vivemos todos longe uns dos outros. Um no Luxemburgo, outra na Alemanha... Mas há qualquer coisa cá em baixo que nos agarra.

Conseguem estar juntos no Natal?
Sim, conseguimos. Muitas vezes.

Fica deprimida com o Natal?
Não, nada. Sou uma pessoa de Natal. Nunca fico deprimida durante mais de três dias. Fico muito cansada de estar deprimida. Acordo e digo assim: “Ai que chatice! Não me apetece nada estar assim!” Como é que dou a volta? Não me pergunte. Também não sei.

Nunca esteve deprimida mais de três dias?
Estive, estive. Mas nunca dei azo a que isso se prolongasse. Sabe o que é viver aqui sozinha há 21 anos?

joão lima

Em cada palavra, Simone põe o peso que carrega consigo. Mulher saudade. Mulher solidão. Chegou à idade em que os mortos pesam. As feridas pela perda do marido, Varela da Silva, desaparecido a 15 de dezembro de 1995, nunca cicatrizaram. “Faz-me falta o Varela. Como gostava que ele estivesse aqui”, suspira, com uma tristeza imensa nos olhos verdes.

Sente a solidão?
Sinto. Não é fácil gerir. Nada fácil.

Mas também não é fácil viver acompanhada...
Não. Deus me livre! Que canseira. Ainda mais agora no fim da minha vida. Não é fácil gerir a saudade que tenho da minha filha, dos meus netos que estão fora.

Vai estar com eles neste Natal?
Vou. Neste Natal, não vem a minha filha. Passamo-lo na casa de Alvalade, onde viveram os meus pais. Subi aquela escada pela primeira vez quando tinha 12 anos. Vou fazer 80... Veja lá as vezes que subi aquela escada. Sempre a mesma escada. Sempre os mesmos degraus. Primeiro ouvia cá de baixo: “Mãe!”, quando vinha do teatro às duas da manhã. Agora oiço: “Avó!”

É uma casa a que está muito agarrada?
Credo! Não sou só eu. O meu filho também está. O meu neto mais novo até queria comprar o prédio todo. É uma casa de memórias. Parece que não há outro sítio para estar além da cozinha. Mas já antes era assim. Os hábitos ficaram do meu pai e da minha mãe.

O Natal não é para si uma festa religiosa?
Não. É uma coisa de amor, de família. Uma forma de tentar estar com as pessoas e de dizer, no meio das alterações que a minha vida teve, das doenças por que passei: “Eu estou aqui.” Com as mãos por baixo.

Para aguentar?
Para apoiar. E para não ser intrometida. Entro em casa do meu filho ou da minha filha e peço licença. É o espaço deles, não é meu.

Nunca se sentiu culpada por não ter tido mais tempo para estar com as pessoas que ama?
Culpada não. Procurei estar sempre no dia de aniversário dos meus filhos. Este ano, a minha filha veio a Lisboa e passámos o dia de aniversário dela juntas. Foi ótimo. Naquela altura, tinha de trabalhar. Quem lhe pagava os estudos? O jantar? A roupa? Não tenho décimo terceiro mês, férias, baixas... Vivia nesta casa com o Varela, mas a casa de Alvalade esteve sempre lá...

Não ficou zangada com o Varela quando ele lhe disse: “Você não tem ontem de atriz” para fazer “A Tragédia da Rua das Flores”?
Fiquei estupefacta.

Ele cortava-lhe as pernas?
Cortava, se pudesse. Porque o medo que ele tinha era que eu fizesse tudo muito mal. Achava que eu não tinha “ontem de atriz” para fazer aquilo. Talvez ele tivesse alguma razão. A verdade é que eu sabia tanto de teatro como de checoslovaco. Fui bem dirigida pelo Armando Cortez e fui aprendendo com a vida, com as tábuas. Fiz muita revista. Toda a gente se esquece de que fiz anos e anos de revista. Só não trabalhei com o António Silva e o Vasco Santana. De resto, trabalhei com toda a gente. Se não aprendesse alguma coisa...

Acha que falhou uma carreira no cinema?
O cinema é que nunca se lembrou de mim. Ainda estou a ver o Nicolau [Breyner], na última telenovela que fizemos, atrás de mim. Ele disse-me: “Não sabes a atriz que és! Chegas-me tarde ao cinema!” Eu nunca fui de ter grupos, grupinhos, capelas... Sou uma outsider. Não vou a jantares, não tenho paciência! Vou lá fazer o quê? Para me conhecerem? Não me consta que este país não me conheça.

Tem noção da sua notoriedade?
Sim, o que é uma chatice. A notoriedade é um peso. Eu não posso falhar, não posso errar. Não posso ter ar de tontinha. Não posso dar dois gritos na rua. Tenho de estar sempre bem. Somos todos humanos. Erramos e dizemos disparates. Este país foi-me pondo em cima por razões que desconheço. Não acredito que tenha sido só pelas cantigas. Acho que se deve muito mais a determinadas atitudes sociais e políticas que eu tomei.

Como, por exemplo, quando foi a favor da despenalização do aborto e falou da luta contra o cancro...
No caso do cancro, peço, por favor, que arranjem outro porta-voz, porque eu cansei-me.

É uma responsabilidade muito grande?
As pessoas acham que é uma coisa que não levanta a pele e não magoa? Vão à procura de outra pessoa. Infelizmente, quem me dera que não fosse assim. Há várias colegas minhas que podem falar. Mas só fazem as fotografias para as revistas, que se aproveitam das doenças das pessoas para vender. Por favor, acabem com isso! Ninguém soube quando aconteceu comigo. Foi o Herman que me apanhou, em direto [na televisão], já tinham passado seis anos do meu primeiro cancro. Olhei para o Varela e para o meu filho e achei que tinha chegado o momento. Pode-se ajudar as pessoas sem dizer que o cabelo caiu. Fico muito enervada com isso. É de uma indignidade total.

Ao falar sobre a violência doméstica, ao ser uma referência LGBT, ao contar a história do cancro da mama e ao defender a despenalização do aborto, acha que ajudou a mudar comportamentos?
Aquilo que me chegou de muitas mulheres de várias idades foi isso: ajudei a mudar comportamentos. Não tive essas atitudes a pensar nisso. Tive-as porque as quis tomar. Porque é o que penso e o que sinto. Fico muito feliz se isso ajudou alguém de alguma forma.

Demorou muito tempo a contar a sua história de violência doméstica. Porquê?
Porque não queria envolver os meus filhos. Felizmente, eles não são filhos desse senhor. Era uma história complicada. Não foi para esconder. Um dia achei que tinha de dizer porque é que comecei a cantar. Foi por receita médica. O médico disse ao meu pai: “Vamos tirar a miúda da cama, porque ela vai dar em maluca.” Ainda hoje oiço os passos do médico em Alvalade. Batiam à porta e eu gritava: “Vem aí o homem mau!” Veja bem a minha infantilidade! Na altura, havia um programa na rádio [Emissora Nacional] com um pianista onde se ia cantar. Era uma espécie de escolinha [Centro de Preparação de Artistas]. Foi a minha irmã que disse ao meu pai que, para me tirar da cama, me fazia bem ir experimentar. Lá em casa ninguém era artista. O meu pai foi à rádio explicar por que razão queria que eu fosse para lá, apesar de não querer que eu me tornasse artista. A última grande tareia que levei foi nessa escola.

O seu ex-marido foi à rádio para lhe bater?
Sim. Na Emissora ninguém sabia que eu era casada. Estava sentada junto ao piano e, quando me viro, vejo-o. Abençoada tareia! Foi por causa dela que consegui a separação judicial de pessoas e bens. Tive testemunhas. Demorei muitos anos a recuperar, a confiar nas pessoas...

Nunca fez psicanálise?
Deus me livre! O médico costumava dizer-me: “Eu só queria que 10 por cento dos doentes fossem como a Simone.” Eu chegava ao médico e dizia: “Aconteceu-me isto e isto, sinto isto e isto, e como não estou a conseguir resolver dê-me um comprimido.”

Sempre teve uma consciência clara do que se está a passar consigo?
Sim. Sei muito bem porque é que existem as minhas solidões.

À medida que a hora de início do espetáculo se aproxima, Simone deixa-se tomar pela angústia. Os nervos acumulam-se. Há 60 anos que os palcos são a sua segunda casa e todas as noites é a mesma coisa. “Cada vez tenho mais medo”, confessa. O que achará o público dela? Pensarão que já não sabe cantar? Que está velha? Depois, acaba a discutir com o seu alter ego, Mariazinha, a amiga imaginária. “Isto tem de passar! Mariazinha, bora lá! Estou mesmo sem paciência para si.” Apetecia-lhe um calmante, mas é um Homeovox que toma, para as cordas vocais. Cantar talvez seja a sua forma de desabafar.

Porque é que inventou a Mariazinha?
Não sei. A Mariazinha é aquela gaja muito chata que está dentro de mim. Eu sou parva e, às vezes, tenho de ser acordada pela Mariazinha.

Sempre existiu?
Não. Acho que apareceu depois da morte do Varela.

Tem mais amigos homens do que mulheres?
É metade-metade. Mas tenho mais facilidade em dar-me com homens. As mulheres são chatas, são burras. Quando percebem que começam a ter rugas e veem o marido a olhar para o lado ficam quase insuportáveis, e depois eles vão arranjar uma mais nova. Aliás, a mulher portuguesa, quando tem dois ou três filhos, passa a ser mais mãe do que mulher. Isso não ajuda.

As mulheres com quem se dá têm de ser especiais?
Não me podem chatear. Estou numa fase da minha vida em que não deixo que ninguém me chateie. Estou-me nas tintas!

Sempre esteve.
Sim, é verdade. A quantidade de amantes que me arranjaram... Uma vez, numa entrevista, até disse: “Está a faltar uma coisa à sua lista, os toureiros a pé e a cavalo.” Já eram as equipas todas de futebol, mais os colegas... Se eu tivesse tido todos os amantes que me arranjaram, só tinha tido tempo para fazer três coisas: despir-me, vestir-me e tomar banho.

Sentiu muitas vezes que as mulheres não se aproximavam de si por preconceito?
Sim. Aconteceu o mesmo em relação à minha filha no tempo do liceu e da faculdade. Não tenho nada a dizer dos meus filhos. Foi tudo muito bom. Não saem nem ao pai nem à mãe. Saem a eles próprios.

Três horas antes do espetáculo, Simone relê o guião, incluindo as seis canções que irá cantar. Apesar de ter feito quase três dezenas de sessões em Lisboa e no Porto nos últimos dois meses, não facilita um milímetro. “Tenho uma memória de elefante, mas perdê-la é uma das coisas que me apoquenta. Se um dia isso acontecer, paro. Tenho pânico do ridículo.” Rendeu-se à inevitabilidade do envelhecimento. Caminha com dificuldade desde que colocou uma prótese na anca, os joelhos “estão um bocado avariados”. Assumiu as rugas — nunca quis fazer plásticas —, mas, por mais de uma vez, olha para o espelho e aponta para a testa. “Parece que passou aqui uma charrua.”

Pensa muito sobre o passado?
Tenho uma saudade lavada.

O que é uma saudade lavada?
É estar a falar consigo disto tudo sem ter vontade de chorar.

Durante esta conversa já lhe passaram pelo menos quatro vezes as lágrimas pelos olhos...
Pois já. Às vezes, não é fácil. É complicado olhar para o passado. No dia em que a minha mãe morreu tinha uma comédia à noite. E fui fazer revista quando o meu pai morreu. Era o Rogério Paulo a perguntar-me: “Estás bem? Estás bem?” Eu só dizia: “Não me digam nada.”

Isso é transformar o medo em coragem ou aguentar?
Primeiro transformar o medo em coragem e depois aguentar. É as duas coisas.

Está quase na hora. Simone pega no maço que está em cima da mesa do camarim e olha para os detetores de fumo no teto. “Será que possa fumar aqui?” Acende um cigarro. Já não tem idade para deixar de fumar, admite. A atriz Maria João Abreu, uma das três Simones do musical (há ainda a atriz Sissi Martins, que interpreta a cantora dos 20 aos 33 anos), entra no camarim a tempo de se cumprir outro ritual. É Adelaide Figueiredo, a agente da cantora e amiga de longa data, quem pega numa garrafa de whisky JB que comprou horas antes num supermercado e nuns copos de café em plástico. “Só um dedinho”, avisa Simone. “Não é preciso mais.”

E o futuro?
A idade é uma chatice. É muito bom, porque posso dizer o que me apetece, agora com outro peso. As pessoas arranjaram-me um estatuto, eu não arranjei nada. Mas foi muito bom ter os meus filhos, chorar, conhecer pessoas lindas... Tenho obrigação de ser uma mulher feliz! E à minha maneira, que naturalmente não é a dos outros, é a minha, eu sou uma mulher feliz. Quando partir vou ter muitas saudades de todos. Não me apetece nada.

São nove e meia da noite, a sala está cheia. Adelaide conduz Simone pelo braço até à boca de cena, onde ela se senta num banco. O pano sobe. O elenco está todo no palco, à exceção dela. Simone espreita, atenta. Quando a música se aproxima do fim, levanta-se, sacode as pernas, liga o motor. “Está cheia de genica hoje”, comenta Salvador Nery, assistente de encenação, que também participa no espetáculo. “Força, Simone!”, sopra-lhe quando ela se encaminha para o palco. Está na hora. O avião está pronto a descolar. Ouve-se um trovão. Simone entra em cena. “O meu nome é Simone e canto cantigas.”

Ficha Técnica
Produção: Gabriela Pinheiro Styling 
por Ana Catarina Rocha
Maquilhagem e Cabelos: Elodie Fiuza

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