Um dia alguém me disse que não é possível amar uma mulher que não saiba cair
Aldous Harding é nome de homem. Ela diz que é a versão feminina de “Alice”, um nome que lhe lembra a necessidade de explorar. “Party” é o segundo disco da neozelandesa de 26 anos, que vai estar em Lisboa este sábado, e é uma aula de cirurgia vascular: as pausas e o espaço são instrumentos, tudo é lá colocado com pinças e é a voz prodigiosa de Harding, moldável como plasticina nas mãos de crianças, que dá às canções a sensação de vertigem. Um dia alguém me disse que não é possível amar uma mulher que não saiba cair
“Eu não tenho respostas”, gritou ela, dissonante. Depois calou-se e deixou o espaço notar-se. Aldous Harding é isto: o espaço vazio é tão importante como aquele onde a voz dela existe. O espaço é um elemento das músicas de Harding que se mostra tanto como as guitarras, os xilofones ou os coros histriónicos que gritam “hey!” e “yes!” a meio de frases como “toda a minha vida tive de lutar para conseguir permanecer”.
Aquele ficar é um quedar-se, que vem de queda como toda a gente sabe, e do facto de ela nunca ter conseguido fazer isso. Pode ser por que é da Nova Zelândia, lá longe de tudo, e de saber que há um mundo todo aqui para este lado, mas também pode ter que ver com o titubear próprio dos adictos. O alcoolismo é um tema, disse a própria ao “New York Times”, mas Harding não gosta de falar dos significados por trás das músicas e não adianta muito mais. Quer que nós retiremos das suas músicas, etéreas, fofinhas, eróticas, fantasmagóricas, irresolutas, oscilantes, ambíguas, o que nós quisermos.
O nome no bilhete de identidade é Hannah. Sobre a família não sabemos muito, os pais são ambos músicos e até podiam ser Cohen e Suzanne Vega. Aldous é um nome artístico, escolhido por lhe parecer uma versão masculina de “Alice”. E com “Party”, o disco que sucede ao seu homónimo de 2014, chega ao estrelato do indie folk. É editado pela 4D, a chancela dos The National, Bon Iver, Beirut, Daughter, Future Islands e por aí fora, por esse rio de cousas tristes. Quem o produz é John Parish, que tem a PJ na carteira de clientes, e isso nota-se.
Aos 26 anos, com 13 de carreira, não sabemos para que parties é que Harding anda a ser convidada, mas aquela de que fala no disco está algures entre o baby shower de uma amiga que não se divertiu assim tanto na juventude mas ao menos está a construir família (“you were right, love takes time, hey hey”), uma festa de finalistas do 12º ano quando o nosso amor do liceu arranja coragem para se declarar e pensamos que a vida nunca será melhor que aquilo (“I was as happy as I would ever be”) e a cena final de O Perfume (“Let me fill you up with the fingers of love”).
Foto Cat Stevens
Em Bleed, a primeira canção, ela é Alice, a voz bonitinha, aguda mas perfeita, como aquela luzinha bruxuleante. Mas Harding usa isso como arma de dissuasão porque o que ela está a dizer não leva cobertura de açúcar e lança logo sobre o incauto ouvinte o tule negro que acompanha todo o álbum. “Hey man, I really need you back again”, é só a primeira frase do disco. Só.
E daqui para a frente é só mais sinceridade. E a sinceridade deve ser mobilizada com extrema parcimónia. Não que Harding esteja preocupada com os nossos corações, e ela vem a Lisboa já este sábado, ao Mexefest, mas adiante. Fica o aviso.
Em Imagining my man, que é uma das melhores músicas do disco, Harding é Aldous, a voz grave, pesada, como que se estivesse a preparar para falar num funeral. Por trás apenas uma guitarra dedilhada, uma bateria de jazz com vassouras em vez de baquetas e Mike Hadreas (aka Perfume Genius). “Eu não tenho a resposta, mas também não quero voltar atrás” diz Harding, como se dissesse que há portas que não quer abrir porque nem sempre ela é uma Alice e a curiosidade sobre o outro leva-nos a descobrir muito mais sobre nós mesmos do que desejamos.
Foto Cat Stevens
Com Living the Classics chega a prova, para quem ainda precisasse, de que este álbum é de 2017. Os acordes muito parecidos e sempre corridos, como um Kurt Vile ou um Cass McCombs, duas vozes dela, uma ligeiramente mais grave que a outra, Harding vai deixando os pequenos sons existirem sem estar sempre presente. A guitarra é quase sempre um pouco mais alta do que é normal entre as meninas do indie folk e só quando a voz de Harding explode é que as cordas se recolhem um pouco. Há gritos esporádicos e um linha de sintetizadores absolutamente divinal. Como tudo aqui, tão isso quanto minimal.
E eis-nos chegados ao tema que dá nome ao disco: Party. É uma festa com duas pessoas, parece-nos. Uma festa onde ela é embalada como um bebé, polegar na boca incluído. À radio pública norte-americana NPR, Harding explica que Party é “sobre pedir a alguém que tenha paciência”. Mas alguma coisa corre mal porque a exasperação que Harding, na mesma entrevista, admite é notória no esforço que faz para levar a voz a agudos katebushianos naquela parte em que ela pede que, se houver uma festa, ele que espere por ela.
I’m so sorry é a música preferida da própria Harding e “uma das melhores que já escrevi”, diz à NPR. Aqui, finalmente, aflora a questão do seu problema com os copos - ela diz booze, aligeira.
E depois vem Horizon, a grande canção. Há um piano lúgubre à entrada. “Deixa-me pôr água na taça para as tuas feridas, querido”, começa Harding. Arrebatada, sofrida, quase podemos imaginar as veias do pescoço de Harding como cabos elétricos carregados de voltagem quando ela gravou isto. No fim de cada frase “babe”, “darling”. Por vezes temos a certeza que é irónico, que não há ninguém querido nesta história. Outras vezes parece um ajoelhar genuíno. É esta a música que ela usa para lembrar a alguém que o seu corpo está ali: “A minha boca está húmida, querido, não te esqueças”.
Foto Cat Stevens
“Party” começa com Aldous e a Alice vai despontando por entre as trevas. É meio Likky Li, meio Bjork. É o último disco, tão límpido, de Lisa Hannigan e é Parliament of Owls e Angel Olsen. Algumas das músicas deste disco, onde Harding é quase uma chanteuse do jazz, parecem prólogos para as músicas que Olsen canta em Half Way Home, um disco lançado em 2012. “Aqui está a tua princesa e ali está o horizonte”, canta. Concorrente e não justaposto. Agora lida. Escolhe. A vida é feita de escolhas. Nas palavras dela, para a NPR: “Estou a mostrar àquela pessoa duas coisas: a vida dela e a vida dela sem mim. Uma dessas coisas eu vou levar. E a coisa que eu eu vou levar sou eu mesma”.
A seguir a música mais deprimente do álbum: What If Birds Aren’t Singing, They’re Screaming. E se for esse caso? E se os pássaros estiverem… em sofrimento? É um pouco o culminar do que ela faz logo no início do álbum, com vozinha de algodão desembainha aquela aura gótica que era a sua imagem de marca no primeiro álbum. Ela diz que era “randynewsmanesco”, uma referência a Randy Newman, bom na arte colocar letras tristes dentro de melodias felizes. Mas esta não PARECE a música mais deprimente do álbum: ela é MESMO a mais deprimente, segundo a própria Harding, que diz que a escreveu numa altura em que “não olhava para o céu com medo de ver fissuras” e que “toda a luz parecia que pertencia a outras pessoas e que “não tocava em nada porque tinha medo que encontrar pedaços de vidro no caminho”.
A melodia é só piano, a voz é quase só um cameo. Numa entrevista ao “New York Times” por altura do lançamento de “Party”, Harding podia ser Hemingway a falar do seu trabalho: “Eu retiro coisas em vez de as adicionar. Estou sempre a tirar coisas das músicas e acho que o que ganhei com isso foi uma clareza na minha voz que, assim, tem espaço para se ouvir”. Para o final fica The World is Looking for You e é tão calma que podia ser tocada durante uma missa. É apenas ela e a suas 30 vozes que entram e saem dela como os vestidos entram e saem das modelos na passerelle. Passa-se naquele limiar que por agora já conhecemos entre o estar completamente possuída por uma força que ninguém sabe de onde vem e desesperadamente frágil. É sempre assim o amor, não é?
Em todas as entrevistas, Harding fala da sua voz como um instrumento e de como este álbum é o produto de uma vontade de escrever afastada da atmosfera de “completo esgotamento nervoso” em que se costumava colocar a si mesma para compor canções. “Coloquei montes de limites à minha voz no início, com toda aquela linguagem arcaica, e claro que esses temas são produto do meu estado na altura, a cabeça cheia de obsessões com a religião, a finalidade da vida, histórias medievais. Agora estou mais livre, por muito cliché que isso possa soar”, diz na mesma entrevista ao “New York Times”.
Esse universo, como uma elipse, está em Swell Does the Skull. É o regresso de Harding ao seu lado mais negro. É aquela música em que ela agarra e larga as cordas, em vez de as acariciar e dá ares de Vashti Bunyan. É um regresso ao passado, é um fim confessional, ainda que inescrutável como todos os temas, onde a emoção nunca é óbvia, sempre intelectualizada. “Não quero ser uma pecadora, não, não quero ser uma pecadora, não, mas há bourbon, há sempre bourbon.” Depois ela troca bourbon por “veludo” nas outras quadras e eu só peço que seja vermelho.
Harding sabe que só começamos depois de recomeçarmos.
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