Cultura

Estamos vivos e somos mais do que carne e osso

A busca incessante de Saroo, um menino indiano que aos cinco anos se perde da família e aos 25 recorre ao Google Earth para tentar reencontrá-la, já fez o argumentista deste filme chorar 15 vezes, porque é um verdadeiro “testemunho sobre o espírito humano”, daqueles que nos fazem sentir que somos “mais do que carne e osso”. “Lion” está nomeado para seis óscares: melhor filme, melhor ator, melhor atriz secundária, melhor fotografia, melhor argumento adaptado e melhor banda sonora original. Ao longo desta semana, porque no domingo há óscares, vamos publicar dois textos por dia sobre os candidatos a melhor filme. Espere, não é bem assim: são dois textos por dia até quinta e só um na sexta, porque são nove os nomeados e não há 10 para a matemática bater certa. Mas estes serão os nove textos certos para se preparar devidamente para a madrugada de 26 para 27 de fevereiro. Começamos com “Lion” e no fim deste texto há canções e amor para tempos de cólera, que é o equivalente a “La La Land”

CRÉDITOS: CONTA NO FACEBOOK DO FILME “LION”

É impossível não sentir a angústia daquele menino pequeno que grita a plenos pulmões o nome do irmão mais velho, perdido numa espécie de comboio fantasma que o levará sabe-se lá para onde. Assim decorre o princípio de “Lion”, o filme que traz a estrela de “Quem quer ser Bilionário”, Dev Patel, de volta ao mundo dos óscares e que no início vem com aquele aviso que ainda nos consegue arrepiar: “Baseado em factos verídicos”.

O menino é Saroo Munski Khan, conta apenas cinco anos e está naquela estação de comboios para ajudar o seu irmão, Guddu, com os biscates que os dois fazem para ajudarem a família, uma família pobre de uma pequena aldeia da Índia, a sobreviver. Mas Saroo acaba por adormecer e perder o rasto ao irmão, acabando por acordar horas depois num comboio com destino desconhecido, de onde sai passado um par de dias, encontrando-se numa cidade que não conhece e onde ninguém fala a sua língua, ninguém o compreende e ninguém o pode ajudar a voltar para casa. O Saroo de cinco anos, interpretado pelo jovem ator Sunny Pawar, não sabe dizer corretamente (como percebe apenas anos depois) o nome da aldeia em que cresceu nem conhece o apelido da sua família e é obrigado a esquivar-se dos perigos que espreitam a cada esquina da cidade de Calcutá, do tráfico humano e de outros abusos, sobrevivendo sempre por um fio e acabando abandonado nas ruas confusas e coloridas da cidade.

Isto é e parece história de filme mas também é história real – o que vemos no grande ecrã é uma “adaptação extremamente fiel”, garante o próprio Saroo, hoje com 35 anos, ao “Wall Street Journal”. Os perigos que viveu naquele tempo, corria o ano de 1986, continuam a ter espaço na memória do hoje empresário e autor de um livro sobre a história da sua vida, “A Longa Estrada para Casa”, que serve de base ao filme: “Usei os meus instintos e conhecimentos das ruas para me guiar. Naquelas situações não tinha tempo para pensar, tinha de agir muito rapidamente e por impulso”, explica em entrevista à CBS.

É neste contexto que Saroo, incapaz de explicar quem é e de onde vem devido às dificuldades da língua e à tenra idade, se vê entregue a um orfanato com poucas condições e depois, finalmente, a uma família australiana de Hobart, na Tasmânia, que o quer acolher e adotar como filho. Sue e John são os nomes dos pais adotivos de Saroo; no grande ecrã, Sue é interpretada por Nicole Kidman, que antes de receber a nomeação para o óscar de melhor atriz secundária já recebia a aprovação da Sue de carne e osso: “[Ela disse-me]: ‘Eu queria que interpretasses a minha personagem porque sabia que sentirias o que eu senti’”.

getty

Kidman, que na realidade também é mãe adotiva, reflete ao “The Hollywood Reporter” sobre os laços que partilha com Sue, hoje sua amiga na vida real: “O amor incondicional que temos pelos nossos filhos é provavelmente o aspeto profundo em que me identifico com ela. E o sentimento de amar quem deu à luz a criança que adotámos – a ligação que existe entre a mãe adotiva e a mãe biológica – nós sentimos essa ligação. A profundidade desse amor é a coisa mais pura”.

“Condensar tanta coisa por que ela já passou num tempo limitado no ecrã e fazer-lhe justiça mesmo assim” foi o maior desafio que teve de ultrapassar em “Lion”, garante Kidman. “Quando és protagonista, tens tempo de desenvolver as coisas e deixá-las evoluir. Acho que é mais difícil fazer papéis secundários, porque apareces de forma intermitente e tentas colocar o peso de toda uma personagem num papel mais pequeno.”

A vida adulta e uma ferida por sarar

A referência que a atriz faz ao amor entre mãe biológica e mãe adotiva não é por acaso e verifica-se na realidade de Saroo. É que toda a segunda parte do filme, em que Dev Patel aparece para interpretar um jovem adulto Saroo, criado na Austrália e transformado num estudante de sucesso que orgulha os pais, é pautada por um objetivo específico – a luta para encontrar a mãe biológica, Kamla. Embora no filme esta luta só comece a ser referida a partir do momento em que Saroo se muda para Melbourne com o objetivo de estudar gestão hoteleira, na história real a Índia e a pequena aldeia de Ganesh Talai (que enquanto criança pronunciava como Ganashtalay) nunca terão deixado os pensamentos do verdadeiro Saroo.

“Tornámo-nos amigos próximos”, explica Dev Patel ao “The Guardian” sobre Saroo, que adotou o apelido da sua família australiana, Brierley. “Ele disse-me que quando chegou à Austrália, em criança, ia para a cama, o coração acelerava e sentia que saía do seu corpo, flutuava sobre a Índia. Sentia que se materializava nas ruas, encontrava a mãe e o irmão e dizia-lhes que estava bem. Fazia isso todas as noites e acordava de manhã a suar, exausto.” É em 2008, durante a faculdade, que Saroo se lembra de utilizar uma nova ferramenta disponível, o Google Earth, para tentar localizar a sua aldeia natal, fazendo cálculos com a velocidade dos comboios nos anos 1980 para tentar estabelecer um perímetro dentro do qual seja razoável assumir que se encontra a sua primeira casa, dentro da imensidão do país e do caos das estações mais pequenas da Índia. “Usei a matemática e tudo o que me ocorreu sobre as paisagens e a arquitetura da minha aldeia”, explica à BBC.

CRÉDITOS: CONTA NO FACEBOOK DO FILME “LION”

Parece uma busca improvável, mas dá frutos – certo dia, depois de quatro anos de procura incessante e uma obsessão que afasta a namorada e a família, Saroo encontra mesmo a sua pequena aldeia, com o verdadeiro nome que não conhecia na altura, o tanque da água junto à estação, os terrenos que recorda com precisão. O filme, realizado pelo australiano Garth Davis, consegue retratar a luta interior e os demónios que perseguem Saroo com mestria, numa mistura de flashbacks e de pedaços da imaginação de Saroo que nos transmitem uma verdade – para ter paz, ele terá de finalmente encontrar a sua mãe e dizer-lhe que está bem.

O reencontro acabou mesmo por acontecer, como em 2012 atestaram inúmeros meios de comunicação, primeiro na Índia e na Austrália, depois um pouco por todo o mundo. Os holofotes voltaram-se para Saroo, o rapaz perdido que graças ao Google Earth conseguiu voltar à aldeia pobre da Índia onde a mãe continuava a esperá-lo. “A minha mãe biológica sempre acreditou num vidente que lhe disse que um dia nos tornaríamos a encontrar”, explica Saroo à BBC. Quando o conseguiram, levou também a sua mãe adotiva, Sue, que “sempre disse que queria conhecer a mãe biológica”. “Sinto que os dois lados de mim estão reconciliados e a vida é boa”, diz Saroo, que desde então já voltou “umas 15 vezes à Índia”.

getty

O reencontro é emocionante e parece ter sido orquestrado para obrigar toda a gente presente na sala de cinema a envolver-se na história e a ceder umas lágrimas. Emocionou Kamla, que chorou “imenso” quando Saroo viajou de novo até à Índia este mês para lhe mostrar o resultado final. Emocionou o próprio argumentista, Luke Davies: “Já o vi umas 15 vezes e choro sempre. E isso não devia acontecer, porque fui eu que o escrevi”, revela ao “The Hollywood Reporter”.

Chorou a família inteira de Saroo também quando se viu retratada no grande ecrã, conta Dev Patel ao “The Guardian”: “O nosso produtor disse-me que a família de Saroo alugou um cinema privado para ver o filme. Saroo sentou-se num canto para experienciar o filme sozinho e Sue e John estavam no centro, de mãos dadas. Mantosh [o outro irmão, também um menino indiano adotado, de Saroo] estava no outro canto. Quando as luzes se ligaram, todos se juntaram e deram as mãos enquanto choravam. Achei que isso foi lindo”.

E emocionou finalmente, de outra maneira, o menino que interpreta a fase mais jovem de Saroo, o Saroo perdido nas ruas, durante cerca de metade do filme. É que Sunny Pawar, escolhido num casting que envolveu rapazes de toda a Índia, nunca tinha visto um filme até se ver a si próprio no grande ecrã, há dois meses, na estreia do filme em Nova Iorque, com “Bill Clinton sentado atrás de si”, revelava Luke Davies nos BAFTA, quando Patel levou o galardão de melhor ator secundário para casa – o resultado de um processo de oito meses em que se preparou com “cada fibra” que tinha, aprendeu o sotaque australiano, ganhou músculos e deixou crescer o cabelo para interpretar Saroo.

Aquelas duas fases de Saroo, o menino de cinco anos que perde a sua identidade e o rapaz na casa dos 20 que está determinado a encontrá-la, fazem parte de um passado encerrado na vida do empresário, que entretanto assinou um livro sobre a sua incrível história de vida e revela agora estar a pensar escrever uma prequela e uma sequela para completar a história. “Para mim, acho que [a altura em que procurava a família] foi como ser um atleta que correu todos os dias para no fim chegar à medalha de ouro”, diz, citado pelo “Times of India”.

Agora, pode finalmente olhar para o futuro. “Porquê tornar a vida monótona quando podes torná-la excitante e conhecer pessoas fantásticas e ir a outros países e ver outras cosas? Tu fazes da vida aquilo que queres que ela seja. Quero escrever histórias humanitárias, únicas, profundas que façam as pessoas sentir que estão vivas, que são mais do que carne e osso, histórias que sejam um testemunho sobre o espírito humano.”

(No dia em que são anunciados os vencedores dos Óscares, o Expresso recorda os artigos que publicou, sobre os principais filmes na corrida)

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate