“É um tsunami”: serviço de urgência do Beatriz Ângelo está em rutura, o pessoal está exausto e há falta de profissionais, espaço e macas
Luís Barra
O hospital de Loures tem ocupadas nas unidades de cuidados intensivos 20 camas para doentes covid e outras seis para doentes não covid. Só entra quem tem possibilidade de sobreviver. Mas o cuidado de saúde está a atuar cada vez mais tarde, por isso os doentes vão chegando em estado pior. E começam a fazer-se escolhas. O maior problema está no serviço de urgência, contam ao Expresso dois profissionais daquele hospital
O serviço de urgência do Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, está em rutura. A confirmação é dada ao Expresso por dois profissionais de saúde daquele espaço. Os que têm chegado àquela unidade são maioritariamente doentes covid-19. Os turnos estão maiores, os médicos e enfermeiros estão exaustos e há baixas entre eles, infetados ou com a necessidade de isolamento. Há falta de macas e há ambulâncias a ficarem bloqueadas por isso.
Atualmente, o hospital tem ocupadas, nas unidades de cuidados intensivos (UCI), 20 camas para doentes covid e outras seis para doentes não covid. Só entra quem tem possibilidade de sobreviver. Mas o cuidado de saúde está a atuar cada vez mais tarde, por isso os doentes vão chegando em estado pior. E começam a fazer-se escolhas. A idade média dos doentes críticos que por ali passaram ou que ainda ali permanecem está entre 58 e 62 anos. O doente crítico mais novo tinha 22 anos, o mais idoso pouco mais de 85.
Carlos Meneses Oliveira, de 58 anos, é médico-intensivista naquele hospital e vai revelando no Twitter com alguma regularidade a realidade com que se depara. Na segunda-feira escreveu o seguinte: “SOS interno em Loures para profissionais de back office irem ao covidário da urgência dar de beber água a médicos e enfermeiros, evitando colapso físico dos profissionais por desidratação”. Esta situação verificou-se no serviço de urgências, que vai sofrendo baixas. “À medida que a doença contamina e infeta médicos e enfermeiros, isso torna o serviço de urgência muito pesado”, explica. A situação agrava-se a cada dia que passa e os profissionais permanecem agora mais tempo com os fatos e materiais de equipamentos de proteção individual.
“Entram num processo de perda de água, de desidratação. É preocupante. Não têm tempo. No serviço de urgência são médicos geralmente novos, estão em exaustão física e psíquica. Se olharmos para a cara de um enfermeiro ou médico depois do turno, perdeu quilos de peso em água. Parece que ganham 10 anos. Depois recuperam com a hidratação. Hoje [segunda-feira] aconteceu o pré-colapso físico das pessoas que estão no serviço de urgência. Houve um apelo interno para que as pessoas que não são profissionais de saúde se predisporem a entrar na zona de covid da urgência para levar água, para ajudar a hidratação dos profissionais. Eles não conseguem sair…”
Ao Expresso, uma profissional daquele serviço confirma: “Na urgência estamos a ficar lá dentro dias inteiros ou noites sem comer nem beber. Andamos nas seis horas [com o fato, até à pausa; antes eram quatro horas] e às vezes mais que isso. São muitos doentes, é impossível”. Estão internados atualmente 220 doentes covid em enfermaria e UCI. No domingo, o hospital disse em comunicado que os doentes covid-19 ali hospitalizados representam 60% da capacidade do mesmo. Há doentes nas urgências ligados a ventiladores.
Para além da falta de espaço e de pessoal, há carência de macas. E isto promove um problema: as ambulâncias que levam os doentes, que não podem abandonar sem a sua maca, têm de esperar pelo escoamento do serviço, pelo que ficam ali imobilizadas, indisponíveis para irem buscar outros doentes com outras patologias. “Muitas vezes não temos sítio onde deitar os doentes. Não somos só nós, atenção, está a acontecer noutros sítios também. O doente está na ambulância porque não há uma maca onde deitar o doente. É um problema com que nos estamos a debater”, explica Meneses Oliveira.
Os doentes ora ficam em macas ou em cadeiras, até “nas nossas cadeiras”, revela a profissional de saúde ouvida pelo Expresso. A maioria de doentes que ali chega - de ambulância, sozinhos ou acompanhados - são doentes infetados com covid-19, que normalmente apresentam sintomas “mais graves” como febre alta, falta de ar e cansaço extremo. “Na urgência há uma carência enorme de pessoal”, admite. Há não muito tempo, aquele serviço chegou a ter num dia 50 doentes a cargo de uma médica especialista e dois internos. Oliveira Meneses aprofunda: “Quando vou lá abaixo [serviço de urgência], vejo colegas exaustos. Tiram a viseira, passam numa esquina, rasgam o fato de proteção e põem adesivo. Não podem sair porque têm tantos doentes para ver. Não conseguem abandonar. Na urgência estão a receber o embate desta onda, é um tsunami verdadeiro”.
Aquele serviço está a receber mais doentes do que aqueles que consegue ver, diagnosticar e tratar, explica o médico-intensivista. “Não há fim à vista. O que me assusta é que esta doença tem uma enorme capacidade de matar. Os milhares de pessoas que estiveram internados no país teriam morrido [sem esses cuidados]. Em Portugal só internamos doentes graves. Agora não internamos doentes com doença moderada, algo que aconteceu em março.”
E esclarece: “O meu testemunho direto é que há uma modificação no sentido de que os doentes muitos novos que recebemos e que conseguíamos tratar, não estamos a conseguir tratar”. Ou seja, há mortes “evitáveis” a acontecer. "O momento em que o doente entra está a ser adiado, por isso apanhamos os doentes num estado cada vez mais grave." Mais: se se verificarem mais óbitos em doentes mais jovens, explica, poderá querer dizer que esses doentes não estão a obter cuidados de saúde.
A profissional de saúde ouvida pelo Expresso desabafa ainda que, quando a pandemia for ultrapassada, não está certa de que continuará a ter a mesma profissão. “Nós sabemos que o mundo está a cair, aliás vemos em direto quando estamos na urgência. E não conseguimos fazer mais. Não somos heróis nenhuns, fazemos isto em qualquer altura do ano ou da vida. O problema é não conseguirmos fazer mais ou melhor…”