Com capa cor de rosa como o primeiro Pap'açôrda, este livro conta a história do restaurante que “transformou” Lisboa
Fernando Fernandes e Manuela Brandão com o livro sobre o Pap'açôrda
Textos antigos, fotos e depoimentos recentes documentam a evolução e influência de um ícone aberto em 1981, no Bairro Alto. As mesas do Pap'açôrda, agora no primeiro piso do Mercado da Ribeira, testemunharam uma “revolução” na restauração da capital
A capa é cor de rosa, como as cadeiras do 'primeiro' Pap'açôrda, no Bairro Alto, e as esculturas de Pedro Cabrita Reis à vista na nova morada, o Mercado da Ribeira, a lembrarem os intemporais arranjos de flores de José Miranda. O nome e o logótipo desse restaurante emblemático, idealizados por Henrique Manuel, aparecem em tons de prata. Brilham quando expostos à luz, efeito que podia assemelhar-se ao provocado pelos lustres nos visitantes, uma espécie de “brilho acrescentado”, recuperando uma descrição de Maria João Seixas. Ainda nem se abriu e o novo livro “Pap'açôrda”, editado pela Contraponto Editores, faz a ponte para um sem número de referências.
O livro
Ao longo de 176 páginas reúnem-se textos, recortes de jornais, fotografias e testemunhos de figuras dos mais variados quadrantes que se tornaram habitués no restaurante, da cultura à política, música ou à moda. O conceito e coordenação do livro partiu de Paula de Oliveira Ribeiro, cliente de sempre e amiga da casa e que ao longo de três anos deu vida à ideia. Aproveitou-se tudo, incluindo um manuscrito de Miguel Esteves Cardoso descoberto à última hora e que estava na posse de Fernando Fernandes, cofundador do restaurante com José Miranda. Nele, o escritor, que apresentou o livro, declarava adorar o Pap'açôrda não por razões afetivas, mas por ser “objetivamente um grande restaurante português”.
Foto de arquivo do restaurante original no Bairro Alto
Portas abertas em 1981
Quando o Pap'açôrda abriu, em 1981, o Bairro Alto “vivia sobretudo das casas de fado, de alguma prostituição e tascas, tabernas e casas de pasto”, recorda Fernando Fernandes ao Boa Cama Boa Mesa. Ao nível da restauração “só havia tascas ou restaurantes de luxo, faltavam restaurantes intermédios” e o Pap'açôrda veio ocupar esse espaço, com o auxílio do génio de Manuel Reis na decoração. O espaço aliava a tradição e modernidade, simplicidade e requinte. Exibia o balcão e os mármores da casa de pasto anterior, cortinas de plástico verdes à entrada, mas também os lustres, espelhos e as flores. Os produtos eram diferenciados e o serviço cuidado.
Esculturas de Pedro Cabrita Reis lembram os célebres arranjos de flores de José Miranda
Essa proposta era uma lufada de ar fresco nos anos 80, certeza reforçada por esta pesquisa: “Tomámos consciência de que, de facto, conseguimos mudar alguma coisa. Fizemos parte de uma revolução de maneiras de estar e de um outro estilo. À época, havia uma busca pela diferença, por coisas novas. A nossa maneira de estar tinha de ser alterada e nós fizemos parte dessa mudança”, defende Fernando Fernandes. Numa altura em que “a cidade está a perder um bocadinho a sua característica própria, devido à invasão do turismo e à perda de lugares icónicos, é importante ficarmos para memória futura com um sítio que de alguma maneira transformou Lisboa, antes que essas coisas desapareçam todas”, realça.
Açorda Real
Pedro Sadio
Como se lê na introdução, o livro “nasce da vontade de avivar a memória da história de Lisboa”, que se confunde com a do Pap'açôrda. Todos o conheceram, de Mário Soares a Marcelo Rebelo de Sousa, de Catarina Portas a Clara Ferreira Alves, Ana Salazar e Robert De Niro. A proximidade entre as mesas e o ambiente familiar permitiam o diálogo, o germinar de projetos, a partilha de infinitas possibilidades e o abraçar das diferenças. Nas palavras de Pedro Bidarra, “olhava-se a sala e via-se futuro”.
A cozinheira Manuela Brandão no início do restaurante
Também o fogão se “abria” a influências de fora. “Agarrámos na essência, que era a cozinha portuguesa, e quisemos transformá-la para esse tempo”, descreve Fernando Fernandes. A obreira dessa tarefa foi a cozinheira Manuela Brandão – transmontana como o fundador -, que entrou no Pap'açôrda com 17 anos e ainda lá continua. Com o primeiro ordenado comprou livros de culinária e, das “boas massas guisadas” com que começou a impressionar o pessoal, passou a líder de um dos restaurantes mais prestigiados do país. “Era tudo uma descoberta para mim e a descoberta é agradável. Sentia-me uma princesa, fui bem acolhida. Deixei-me ficar, fui vendo e aprendendo”, conta Manuela. Havia tanto para fazer que, por vezes, dormia no restaurante: “Era como se fosse acampar para um monte no Alentejo” (risos).
Imagem do livro "Pap'açôrda"
Não são apenas as imagens das memoráveis festas que aconteciam no restaurante a engrandecer o novo livro “Pap'açôrda”, à venda por €29,90 na FNAC, Bertrand e no próprio restaurante. Destacam-se, também, as fotos das criações de Manuela Brandão que, atualizando-se na forma, nunca abdicaram da essência tradicional portuguesa. Afinal, “o segredo do restaurante é a consistência” da sua cozinha. “Hoje é assim e daqui a 20 anos é para ser igual”, o que leva a confiar na qualidade dos “Peixinhos da horta” e “Pastéis de massa tenra”, no paté de santola, nos croquetes de carne com arroz de tomate, na “Açorda real”, “Arroz de cabrito” e “Bife à portuguesa”. E claro, na “Mousse de chocolate” espessa, cremosa e gulosa, com o cliente do restaurante Pap'açôrda (Mercado da Ribeira, Av. 24 de Julho, 49, 1º, Lisboa, Tel. 213464811) a servir-se a gosto de uma grande taça. Fazendo fé na definição de “Pap'açôrda”, no final de uma refeição generosa, a “pessoa fica lenta, molengona”, mas voltará para repetir a dose.