Lisboa desconhecida: Descubra os vestígios romanos numa viagem no tempo em seis paragens

“Não há melhor forma de descobrir uma civilização do que conhecer a sua mesa”, assegura Inês de Ornellas e Castro, autora de “O Livro de Cozinha de Apício – Um Breviário do Gosto Imperial”, focado no gastrónomo romano do século I. Para perceber os hábitos romanos à mesa, comece por imaginar a azáfama, junto ao Tejo, os barcos carregados com vinho, azeite, mas sobretudo garum, molho indispensável à mesa dos romanos e, mais tarde, da restante população, feito de especiarias, sal e vísceras de peixe. Tido como um dos melhores do Império, este molho de peixe era fabricado nas cetárias de Lisboa que, séculos depois, ainda se podem visitar na capital. Siga as sugestões do Boa Cama Boa Mesa e saiba como o povo romano percebeu as condições da cidade para receber barcos, peixe e sal. Apimente o percurso e “coma como um romano” graças às recriações gastronómicas que se podem saborear por Lisboa.
Início de viagem: garrafeira antiga, outrora officinae de preparados piscícolas
Comece a viagem num ponto de partida idílico, rodeado por mais de 3000 garrafas na Garrafeira Napoleão (Rua dos Fanqueiros, 70, Lisboa. Tel. 218872042), fundada em 1969, na Baixa de Lisboa. No local, admire uma das officanae de preparados de peixe de Lisboa, então Felicitas Iulia Olisipo. As duas cetárias identificadas, continham uma preciosidade: restos do último preparado aqui produzido. Por cima encontravam-se despejos e, na camada superior, pedaços telhas do edifício que terá desabado em meados do séc. V d.C. Estes vestígios arqueológicos estão musealizados no local. Experimente e adquira algumas referências vínicas enquanto observa este legado.
Interativo, o NARC dá a conhecer cozinha, mesa, pesca e indústria do período romano
Perto do Arco da Rua Augusta, no Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros (Rua dos Correeiros, 9, Lisboa. Tel. 211131070), classificado como Monumento Nacional, numa fábrica romana dedicada às conservas e transformação de peixe, nomeadamente o especialíssimo molho garum, explica-se o processo de produção com conteúdos multimédia. Estes elementos oferecem uma melhor perceção do fabrico e conservação dos molhos de peixe, de extrema importância na gastronomia romana e exportados em larga escala para todo o Império. Além das cetárias, estão expostos almofarizes, tachos e panelas em cerâmica, jarros e funis e até ânforas vinícolas. Há visitas guiadas, de hora a hora, entre as 10h00 e as 17h00. A entrada é gratuita mediante marcação.
Conserveira de Lisboa tem receitas de Vítor Sobral para comer como um romano
“Cavalinhas com tâmaras”, “Atum de ânfora” e “Cenoura à romana” são as conservas Tricana com receitas do chef Vítor Sobral inspiradas na alimentação e gastronomia romanas. Pode adquiri-las na Conserveira de Lisboa (Rua dos Bacalhoeiros, 34, Lisboa. Tel.218864009) aberta em 1930, onde se encontra também um “tanque de sal romano no subsolo”, referência de um dos sócios, Tiago Ferreira. Durante o jantar de apresentação do projeto “Lisboa Romana | Felicitas Iulia Olisipo”, iniciativa que junta 20 municípios da Área Metropolitana de Lisboa com o intuito de estudar e dar a conhecer o período romano, o chef fez uma demonstração de possíveis preparações das conservas. Passe na loja da Baixa e leve consigo as conservas para experimentar a olhar o Tejo ou leve para casa e dê asas à imaginação.
Visitar os tanques de salga da “Casa dos Diamantes”
A proximidade ao rio fez com que grande parte das unidades de preparação de complementos à base de peixe, entre os séculos I d.C. e finais do século III, início do IV, se situasse entre a zona da Casa dos Bicos e a Baixa Pombalina. As intervenções arqueológicas da Cerca Velha descobriram um muro de uma destas unidades de derivados de peixe. Estes vestígios juntam-se ao conjunto de anexos e tanques de salga e preparação de molhos de peixe já conhecidos e a um troço da muralha, construído no final do século III, com cerca de 18 metros e espessura de 3,2 a 4,2 metros, que inclui o que resta de uma torre semicircular. Visite o Núcleo Arqueológico da Casa dos Bicos (Rua dos Bacalhoeiros, 10, Lisboa. Tel.210993811), outrora conhecida por “Casa dos Diamantes” pela configuração arquitetónica que lembra os Palácios dos Diamantes de Ferrara ou dos Duques do Infantado, em Guadalajara.
Provar garum e comer chamuças de atum a olhar o Tejo
Os romanos são muitas vezes considerados os precursores da street food. Homens transportavam pela cidade ânforas com vinhos de Itálica a Gália, e preparados de peixe, servidos em tigelas. Bancas serviam comida de rua. Mas a civilização romana deixou marca na cultura da mesa, incluindo o hábito de nos sentarmos e partilharmos uma refeição. “Roma passou da cozinha da necessidade à cozinha do prazer”, afirma a investigadora Inês de Ornellas e Castro. À mesa do restaurante Can The Can (Terreiro do Paço, 82, Lisboa. Tel. 914007100), em pleno Terreiro do Paço, prove as conservas portuguesas em receitas de autor, como as surpreendentes “Chamuças de atum” ou a “Tiborna de sardinha” e procure pelos vários tipos de garum, o condimento mais valioso do Império Romano, cheio de umami. Voltou na versão lusitana, feito com ostra, atum, cherne, espadarte, encharéu, sardinha e lírio.
Durante mais de 500 anos 34 cetárias, num único lugar, enchiam 15 mil ânforas
A Casa do Governador da Torre de Belém, situada no centro histórico de Belém, é hoje Hotel Palácio do Governador (Rua Bartolomeu Dias, 117, Lisboa. Tel. 212467800), cujo pátio tem no subsolo visível a unidade de produção de preparados piscícolas que teve grande importância no quadro económico do estuário do Tejo e da própria província da Lusitânia. Com 1500 metros quadrados e uma capacidade máxima de produção de 500 metros cúbicos, enchia 15 mil ânforas. Foram escavadas 34 cetárias, organizadas em redor de um pátio central. Terá funcionado durante cerca de 500 anos, sendo a maioria dos vestígios datados do período final de laboração da unidade fabril. Todavia, a descoberta de um conjunto significativo de ânforas do tipo Dressel 14 permitiu aos investigadores situarem o início de produção nos séculos I ou II d.c.
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