Contra-semântica

Existe muita coisa que não me disseram na escola, PSD

O título deste artigo é roubado à Bia Ferreira, uma cantora brasileira negra e lésbica, que explica à viola como não nos disseram na escola de como é diferente ser “preta” na comunidade em termos de oportunidades.

Existe muita coisa que não me disseram na escola. O pior resultado do silêncio violento na minha escola sobre as pessoas da comunidade, nós, eles, tu, foi o que não fiz comigo e, sobretudo, o que não fiz com os outros, como consequência.

Na escola pública disseram-me das disciplinas clássicas, mas não me disseram uma palavra que fosse sobre o significado profundo do princípio constitucional que une a comunidade, que é de todas e de todos, que não pertence a nenhum Partido, segundo o qual “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei”. Ninguém me explicou, desde pequena, como eu gostaria que tivesse acontecido, por que razão a lei das leis diz que não se pode discriminar as pessoas em razão de sexo, raça, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.

Quem já ensinou – é o meu caso - sabe que nestas matérias não há nada de interdito a crianças, pelo contrário. Há, claro, uma linguagem para cada ciclo de ensino, mas falar de igualdade a jovens pré-adolescentes ou adolescentes é proteger as suas vidas e a saúde da vida da cidade.

Existe muita coisa que não me disseram na escola. Por isso mesmo, não tive grandes armas para defender o meu colega negro sujeito a bullying diário. Não sabia o que dizer, não sabia que se podia fazer queixa e muito menos do quê, sabia que o queria proteger, era isso.

Existe muita coisa que não me disseram na escola. Foi por isso que os meus colegas gays e as minhas colegas lésbicas tiveram medo de dizerem quem eram, foi por isso que se esconderam, foi por isso que nunca tiveram uma palavra de ninguém em sua defesa quando alguém os identificava como “paneleiros de merda” ou como “fufas nojentas”. Medo de dizerem quem eram, porque não se falava disso, do que eram, não se falava de homossexualidade, que tem a ver com o que se é e não com o que se faz, não se falava e na minha cabeça ficava o caldo cultural em que nasci: a homofobia.

A homofobia era o caldo cultural e em grande medida o caldo legal, porque quando eu tinha 14 anos os homossexuais não tinham direitos, pelo que a empatia por uma pessoa era o que me restava, mas nunca fiz nada por ninguém e nunca vi nenhum crime de ódio ter defesa.

Hoje ainda me é difícil olhar nos olhos de amigos e amigas homossexuais que só muito tarde se sentiram confortáveis para me dizerem quem são. Sei que estiveram anos e anos ao meu lado em silêncio, na sua dor e no insulto, imaginando que não seria seguro contar comigo, porque de mim nunca tinham visto um sinal de adesão à não discriminação de gays e lésbicas. Isto ainda me dói.

Um dia um colega gay vítima de bullying e de rejeição familiar suicidou-se. Não gouve minuto de silêncio ou de reflexão. Morreu. Foi esta a notícia nos corredores. Morreu. A pergunta interior sangrava:

- Onde é que eu estava?

Eu estava onde a escola me deixou. Na ignorância. Eu não tive uma escola onde se falasse abertamente de igualdade de género e de homossexualidade ou de transexualidade. Hoje, fala-se. Cada vez mais. Cada vez mais se percebe que educar para a cidadania é educar – também – para a igualdade. A lei mudou. As famílias são plurais. Os filhos e filhas dos meus amigos e amigas gays e lésbicas vão à escola e é bom que nessa escola haja inclusão e que os seus pais e mães seja, mesmo, assunto de crianças.

Recentemente vimos o que jamais aconteceria na escola onde não me disseram muita coisa: alunos e alunas da Escola Secundária de Vagos protestando e erguendo cartazes contra a homofobia em defesa de duas colegas lésbias. Fizemos um longo caminho.

Em tempos de Bolsonaros e Trumps, há quem adira ao slogan da “ideologia de género” da extrema-direita e ataque este percurso civilizacional. Para além de André Ventura, várias Deputadas e Deputados do PSD ergueram-se contra o que um Deputado apelidou de “porcaria” e “perversidade”, associando sessões de esclarecimento com esta finalidade a desvio de menores, assim, para assustar, como faz Damares, a ministra do déspota brasileiro. Fernando Negrão, o líder da bancada laranja com um percurso aflitivo em matéria de coadoção, aderiu à homofobia e fica por saber qual é a posição de Rangel, cabeça de lista do PSD às europeias sobre este programa político declarado do PSD clonado de Bolsonaro.

O lado positivo deste episódio é que sabemos quem é quem, politicamente. Sabemos de que lado está a homofobia primária e perigosa. Não quero uma única queixa contra Deputado algum. O Deputado da porcaria é mesmo uma porcaria e não merece ser um mártir da liberdade de expressão. Deixem-no falar e vejamos até onde vai o tamanho da tropa, agora liderada por Negrão.

Gostava muito (tanto...) que o meu colega tivesse vivido para ver o caminho que fizemos, apesar de, pelo caminho, haver gente como o Fernando Negrão que já em 2017 aconselhava a afastar a Constituição dos jovens. “Tem uma carga ideológica muito forte”, dizia.

Quem sabe do que não lhe disseram da escola, sabe do que lhe devia ter sido dito na escola.

Eu sei.

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