Pode ter por mote o ferry que liga Setúbal a Troia, mas o terceiro álbum da portuguesa A Garota Não vai além dessa âncora, desenhando um manifesto sobre o Portugal contemporâneo e espetando o dedo nas feridas que mais nos doem. Das mães discriminadas no trabalho, ou que têm de dar à luz em ambulâncias, na brilhante ‘Este País Não É Para Mães’, à gradual privatização de serviços (no tema-título, com direito a citação de José Saramago), Cátia Oliveira, a mulher que Setúbal deu ao mundo há 42 anos, constrói um disco incisivo e profundo, tão pessoal como um diário de bordo e tão urgente como um telejornal cheio de últimas horas. Nas notas que acompanham “Ferry Gold”, descreve o sucessor do aclamado “2 de Abril”, lançado em 2022, como um disco de ensaios e subtextos. “Os temas nascem de textos terceiros, de beats, pinturas, manias e notícias. De lugares onde a poesia anda à larga e a natureza torna os dias mais sãos”, explica. Poetisa de direito próprio, A Garota Não, galardoada em 2023 com o Prémio José Afonso, decidiu, no terceiro capítulo de uma obra já idiossincrática, apoiar-se nos ombros de (outros) gigantes. E é assim que, além de José Saramago a bradar “privatize-se tudo”, numa leitura inflamada de “Cadernos de Lanzarote”, temos canções urdidas a partir de uma peça de Federico García Lorca (‘A Casa de Bernarda Alba’, que abre o disco com guitarras condizentemente hispânicas), da poesia de Florbela Espanca (‘Impossível’) ou do génio do amigo e herói Sérgio Godinho (‘Irmãos de Sangue’).
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