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Tina Turner (1939-2023): toda a história contada num documentário que “ela não fazia ideia que estava a ser preparado”

Tina Turner (1939-2023): toda a história contada num documentário que “ela não fazia ideia que estava a ser preparado”
David Redfern/Getty

Fera nos palcos e dona de um vozeirão invejável, Tina Turner - que morreu esta quarta-feira, aos 83 anos - passou largos anos subjugada à violência e aos ciúmes do marido Ike Turner. Depois, viria a ser coroada “rainha do rock” nos anos 80. Um documentário da HBO Max traz-nos essa história, aqui recuperada num artigo publicado originalmente em maio de 2022

Este documentário é feito de coisas a que não associamos Tina Turner, intérprete maravilhosa, cintilante, solar, sempre com aquele sorriso enorme de orelha a orelha. É um filme de mágoas e de ressentimentos. Chega mesmo a ser triste em especiais passagens. Há dores que não se esquecem, por mais que uma pessoa passe a vida a tentar fugir do passado. E também Tina tentou de certa forma escapar ao seu até ter decidido que, afinal, o melhor era encará-lo e fixar esse testemunho, em livros autobiográficos e agora neste filme.

Quando a bonança veio e o êxito lhe bateu com toda a justiça à porta, quando ela conseguiu ser apenas ela e nada mais do que si própria naqueles anos 1980 e 1990 da glória planetária, Tina cantou ‘Ask Me How I Feel’. Não é por acaso que o filme arranca com essa canção. É que Tina, prisioneira de um casamento infeliz, viveu quase 20 anos com um homem, Ike Turner, com o qual nunca conseguiu ser feliz.

Começaram juntos uma carreira nos finais da década de 50, foi ele, aliás, quem batizou artisticamente Anna Mae Bullock, nascida em 1939 em Brownsville, no Tennessee, a 50 quilómetros de Memphis, filha de pais camponeses (toda a família dela vinha da terra e do trabalho duro nas plantações de algodão). Mas só em 1981 contaria Tina ao mundo (numa entrevista à revista “People”) a verdadeira história da sua vida com o músico que a levara ao estrelato. Uma vida de abusos, humilhações e violências de toda a espécie, até um certo dia em que ela bateu com a porta do quarto de um hotel de Dallas e jurou que nunca mais. Abandonou o marido, deixou-o ficar com tudo mas exigiu guardar o nome artístico, a ‘Tina’ e o ‘Turner’ que ele lhe dera.


“Escapámos ao modelo MTV, contornámos a ideia do guião biográfico. Tina Turner não fazia a mínima ideia que tipo de filme estávamos a preparar quando nos recebeu”
T. J. MARTIN, REALIZADOR


Tal como acontece numa boa parte destes documentários biográficos — e este trabalho de Daniel Lindsay e T.J. Martin é especialmente rico neste aspeto —, “Tina” vale igualmente pelos seus arquivos, que são por si só uma história da evolução do black gospel, do blues e do rock americanos da segunda metade do século passado. O filme começa com uma entrevista de 2019 a Tina na sua fabulosa casa de Zurique (hoje afastada das tournées, naturalizou-se suíça em 2013) e depois parte, aventureiro, para uma viagem no tempo (através dos arquivos, lá está), até aos primeiros hits de Ike & Tina como ‘A Fool in Love’, os primeiros rasgos de empatia que o dueto gera imediatamente com o público, por causa dela...

“O que se passa com Tina” — contou-nos Daniel Lindsay em entrevista quando este documentário se estreou em Berlim 2021 — “é que, independentemente da artista espantosa, ela tem uma história de vida tão incrível que se adapta a géneros cinematográficos muito diferentes. A ligação dela a Ike Turner é um melodrama. Mas não menos interessante é pensarmos que ela passa por uma história coming-of-age aos 40 anos de idade a partir do momento em que se livra do marido — e tudo renasce para ela a partir dali. Nós neste filme quisemos ir mais longe do que alinhavar um episódio histórico a outro. O que tentámos foi retratar uma experiência de vida em que Tina, a um nível emocional, passa por altos e baixos extremos, como uma montanha-russa.”

Já T. J. Martin falou dela como um gato com sete vidas, “e garanto que cada uma delas dava um episódio diferente se este filme fosse uma série de televisão.” Segundo o realizador, criar um daqueles documentários tradicionais sobre Tina Turner comentados por ela e por quem a conheceu não faria qualquer sentido. “Era uma redundância: ela não tem nada a provar. Começou a cantar profissionalmente aos 18 anos, passou seis décadas em cima dos palcos! Nós não fomos por esse caminho, escapámos ao modelo MTV, contornámos a ideia do guião biográfico. O que tentámos foi interlaçar os arquivos de tal maneira que esta torna-se uma história propícia a outro tipo de temas: a intimidade, a confissão, etc. Ela tem a perfeita noção de que é um ícone da pop e em simultâneo é a pessoa mais terra a terra do mundo. Sempre calorosa, sempre franca connosco. Não fazia a mínima ideia que tipo de filme estávamos a preparar quando nos recebeu. Depois percebemos que com ela não há fingimentos. E isso encorajou-nos a desenvolver a gravidade das emoções que estão no filme.”

Tina, que até hoje estava no seu “castelo de Zurique”, como os realizadores dizem, é uma sobrevivente, pode contemplar o que lhe aconteceu “em paz com ela própria”, das tentativas de suicídio à conversão ao budismo. Quando a vemos a cantar uma versão de ‘Help!’, dos Beatles, aquela é canção com título que vem a calhar. “Como é que nunca nenhum homem viu a beleza que está dentro de mim?”, perguntará ela a uma dada altura. Aqui, T. J. Martin volta ao início do filme que coassinou, à canção ‘Ask Me How I Feel’. “Achámos que ela merecia que alguém lhe fizesse hoje essa pergunta!”.

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