Habitualmente, os 35 anos não são encarados como uma “data redonda”. Um artista pode celebrar o 10º, o 20º ou o 50º (se tiver sorte) aniversário da sua carreira ou de um disco em particular, mas qualquer número que não termine em zero tende a ser descartado. Claro que os Xutos & Pontapés, que mais que artistas são uma grife, não seguem, nem poderiam seguir, as regras do jogo. O que acaba, também, por contribuir para a sua longevidade: tendemos a gostar mais de quem não é óbvio.
Uma longevidade que se constrói, também, com o facto de, tantos anos depois, o grupo ainda continuar a encher salas de espetáculos como a do Teatro Tivoli, mesmo que esta não tenha sido a primeira data das celebrações em torno de “Circo de Feras”: os Xutos já por aqui tinham passado em novembro. Em 1987, “Circo de Feras” deu aos Xutos - note-se que serão sempre “Xutos” e nunca o seu extenso, como um nome de família ou uma peça de mobiliário - o ambicionado sucesso, como o explicou, a meio deste mesmo espetáculo, um novamente vivo Zé Pedro através de um vídeo de arquivo. O álbum era “o elemento que faltava” à carreira do grupo, e aquele que mais ressalvava o “dom de Tim”, eterno letrista e vocalista, que “fala de uma maneira que se entende”.
À altura, nem todos se congratularam com o êxito. Em “À Minha Maneira”, história oral dos Xutos compilada por Ana Ventura, João Cabeleira recorda que “havia algumas pessoas que diziam que os Xutos já não eram a mesma coisa”. Para trás ficava algum do espírito punk; o então presente fazia-se de canções radiofónicas, orelhudas e simples, com produção menos crua e mais comercial, com mensagens universais feitas sangue na goela. “Quero-te tanto”, “um pouco de fé”, “não sou o único”. Trechos que se cantam aos 8, aos 80, e em todas as idades que há pelo meio.
No Tivoli, esta noite como em todas as outras que os Xutos pisam um palco, havia bastantes oitos: rapazes e raparigas que não eram vivos sequer quando o grupo editou “Puro”, mas que foram ensinados pela família a gostar de e a acarinhar estas canções, que os viram agora pela primeira vez ou que, levados pelos “carolas” familiares, já os acompanham desde o berço. Os mais velhos não descuraram os lenços vermelhos ao pescoço, os braços cruzados num “X” que marca sempre o local de um tesouro, as t-shirts pretas ou brancas com o logótipo sobejamente conhecido. Alguns dignaram-se, inclusive, a fazer videochamadas com quem não pôde, por qualquer razão, estar presente. Outros gritaram como se a velhice fosse psicológica.
Nem o facto de os lugares no Tivoli serem sentados (e a esmagadora maioria ignorou esse facto, como se quisesse dizer que o rock and roll nunca se aburguesará) os demoveu de apreciar o espetáculo dos Xutos por aquilo que é: uma máquina de incendiar sensações que há muito se julgavam esquecidas, que debita hinos que por vezes parecem mais emblemáticos que a própria “A Portuguesa” (olhe-se para ‘A Minha Casinha’, por exemplo), e que continua, independentemente do êxito, a fazer bandeira de slogans intemporais, como os que são narrados em ‘Sai P'rá Rua' (lemos as notícias que nos chegam de Paris e podia ter sido escrita hoje…) ou os que são colocados, no ecrã de fundo, em ‘Esta Cidade’.
Máquina, mas nem por isso perfeita. Não é crítica, é elogio: há mais honestidade nuns Xutos & Pontapés que se enganam do que em artistas que tapam o sol com a peneira. Tim equivocou-se numa parte de ‘Vida Malvada’ e, já depois de um encore com Kalú a cantar ‘Morte Lenta’ e o grupo a incitar uma explosão final com ‘À Minha Maneira’, decide voltar ao palco para reinterpretar, desta vez tudo certinho, o tema presente em “Circo de Feras” (e isto apesar dos imensos pedidos para que a escolhida no regresso fosse ‘Homem do Leme’). Pelo meio, Tó Trips, uma vez mais guitarrista convidado, deixou que a noite fosse inteiramente do grupo que nunca foi seu mas com o qual partilha afinidades que poucos entenderão - nomeadamente, a morte de um colega de banda e amigo do peito. “Obrigado por voltarem a estar aqui depois deste tempo todo”, atirou Tim a dada altura. Foi o seu momento menos honesto: ele sabe perfeitamente que o público dos Xutos estará sempre com eles.
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