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35 anos de “Circo de Feras” ao vivo em Lisboa: a noite em que os Xutos & Pontapés reencontraram Zé Pedro

Com a ajuda de Tó Trips, os Xutos regressaram ao álbum “Circo de Feras”, homenagearam Zé Pedro e insuflaram energia renovada em canções que já viram muita estrada. E que ainda estão aí para as curvas. A crónica e as imagens de uma noite para recordar

Dois atos. No primeiro, temas que serviram para os Xutos & Pontapés calcorrearem os trilhos que os haveriam de levar ao topo. No segundo, o alinhamento integral de “Circo de Feras”, o álbum de 1987 que definitivamente consagrou a banda de Tim, Kalu, João Cabeleira, Gui e Zé Pedro, o saudoso guitarrista que continua a ser figura de espírito presente em 2022, mesmo tendo passado já (quase) cinco anos sobre o seu desaparecimento.

Sim, Zé Pedro também participou nesta apresentação especial de “Circo de Feras” que ontem se estreou no Tivoli BBVA, em Lisboa, perante uma plateia praticamente esgotada – o espetáculo repete hoje, dia 3, e ainda amanhã e sábado (vezes dois): ao eterno guitarrista dos Xutos coube o interlúdio que serviu de passagem entre os dois atos, momento em que imagens de arquivo o mostraram a falar da importância de “Circo de Feras” e de como as letras do seu companheiro Tim iam direito ao assunto tocando nas pessoas exatamente por serem escritas na mesma língua que todas entendiam, a de um português corrente, das ruas, das gentes que trabalhavam, festejavam e protestavam quando tinha que ser. Antes, como agora.

O espetáculo que os Xutos ontem estrearam no coração desta cidade conta com cuidado enquadramento visual a cargo de João Pombeiro segundo idealização de Henrique Amaro. As colagens de Pombeiro – carregadas de icónicas imagens de arquivo dos Xutos, claro, mas também do Portugal que os viu crescer na primeira metade dos anos 80 – são elegantes e modernamente recortadas e serviram de perfeito cenário de fundo para a “história” que foi contada, em primeiro lugar, por Tim e Kalu, Gui e João Cabeleira.

O palco apresentou-se despido, com a bateria a meio, ladeada, à direita, pelos amplificadores de baixo e guitarra de Tim e Cabeleira e, à esquerda, por mais dois amplificadores Orange que, no entanto, de nada serviram a Gui, que ocupava esse lado da boca de cena. Arrancado o concerto com o tema que os Xutos criaram para o “Som da Frente” de António Sérgio, no entanto, toda a gente esqueceu aqueles amplificadores cor de laranja para se concentrar no que o quarteto fantástico tinha para nos oferecer.

Umas breves ideias sobre o público: parece não existir meio-termo – havia pais de meia idade (e alguns avós) e filhos adolescentes (e talvez alguns netos), mas escasseavam gerações no meio, facto que talvez se explique porque os Xutos colocaram no centro do concerto um disco com 35 anos. Muitas das pessoas que ali estavam seriam elas mesmas adolescentes quando o tema ‘Contentores’ rebentou em tudo o que era rádio deste país. Essas pessoas não faltaram à chamada, muitas certamente por quererem revisitar os temas que lhes serviram de banda sonora a uma fase importante da vida, outras porque fizeram questão de mostrar à descendência como é que se rockava no seu tempo. Todos pretextos válidos, pois claro.

‘Esquadrão da Morte’, ‘1º de Agosto’, ‘Conta-me Histórias’, ‘Remar, Remar’, ‘A Minha Aventura Homossexual com o General Custer’, ‘Sou Bom’ e ‘A Minha Casinha’ preencheram o primeiro ato que nos mostrou, a espaços, os Xutos em modo “power trio”, com Gui, nas pausas das suas incursões saxofonísticas sempre assertivas, remetido a segundas vozes ou mesmo a um discreto silêncio. E com o músculo inalterado de Kalu, a guitarra sempre eletrificadamente sinuosa de João Cabeleira e o baixo pulsante de Tim, a verdade é que nada mais é realmente necessário, com a força das canções a revelar-se intacta, mesmo após tanto uso (e talvez até algum abuso...) a que foram submetidas.

Depois do emocional interlúdio com um bonito e jovem Zé Pedro a meter os pontos nos ii, veio o alinhamento do álbum de 1987, sempre com ilustração certeira de João Pombeiro: em ‘Sai Para a Rua’, por exemplo, surgiram imagens de manifestações condizentes com o que nos mostrava a televisão umas horas antes (talvez o país, nalgumas coisas, pelo menos, permaneça igual, mesmo se uma geração mais tarde...) e depois ‘Pensão’ deu o mote certo para um desfile de néones clássicos de pensões, hotéis de segunda e residenciais, aqueles lugares onde dantes se dava o que se andava a prometer.

No clássico ‘Esta Cidade’, talvez uma das melhores canções dos Xutos, a menção a “filhos da puta” fez os pais na fila à frente do repórter olharem para a filha pré-adolescente com ar semi-embaraçado, semi-“já-sabes-que-estas-coisas-não-são-para-se-dizer”, mas os braços no ar na peça seguinte, ‘N’América’, foram sinal de que esses “palavrões” já pouco importavam.

E depois, já quase no final, o trio de trunfos eternos: ‘Não Sou o Único’, ‘Vida Malvada’ e ‘Circo de Feras’, canções carregadas de história e de histórias que as pessoas cantam porque as carregam bem fundo na memória e na história de vida, algo que se percebe bem quando se observa a intensidade da entrega do público. A fazer todos estes temas soarem com mais drama e corpo elétrico esteve Tó Trips, esclarecendo enfim porque estavam ali os amplificadores Orange. O agora ‘makumbeiro’ conhece bem os Xutos: fez-lhes primeiras partes quando ainda integrava os Lulu Blind e ganhou definitivo impulso elétrico ligado à voltagem de Zé Pedro e restantes companheiros. Estar ali a fazer as vezes do seu grande amigo é ato de justiça poética para ambos – não haverá ninguém melhor para calçar aquelas botas, de facto.

O concerto terminou após um emotivo discurso de Tim que falou no “acreditar” e que acrescentou que o que ali vimos todos “são memórias muito...” deixando às reticências o papel de sugerirem o que se percebeu bem que lhe enchia o coração. Seguiram-se ‘Morte Lenta’ e ‘À Minha Maneira’, dois rebuçados de elevado grau calórico-voltaico que saciaram toda a gente. Hoje, amanhã e depois haverá mais. Com a promessa de podermos todos um dia destes rever o espetáculo na TV. As gerações futuras hão de também agradecer porque os Xutos, já ninguém duvida, são para sempre.

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