Em 1985, Pedro Ayres Magalhães estava no Brasil a promover o filme de estreia de Joaquim Leitão, “Duma vez por todas”, do qual era o protagonista. Recebeu uma chamada de Gabriel Gomes e Rodrigo Leão, que, entusiasmados, lhe disseram que tinham encontrado a voz para o projeto (paralelo às suas carreiras na Sétima Legião e nos Heróis do Mar) que germinavam. Daí a dias, Pedro Ayres Magalhães desembarcou em Lisboa e os dois músicos fizeram-no ouvir, ali mesmo, num walkman, a voz de Teresa Salgueiro. Tinha sido escolhida entre catorze raparigas porque gostava de fado. E o seu fado, como princípio de Pigmaleão, era ter estado umas noites atrás no Bairro alto, no Bar Gingão. Era comum Teresa Salgueiro, aos 17 anos, cantar a cappella pelas capelas do bairro (mais alto do sonho, como escreveu Ary dos Santos) Alto, mas naquela noite quem entrou no bar foi Gabriel Gomes e Rodrigo Leão – que a ouviram e a convidaram para uma audição. A audição decorreu no estúdio de Paulo Abelho, integrante da Sétima Legião (tal como Rodrigo Leão e Gabriel Gomes) e foi-lhe pedido que cantasse três canções – uma com letra de Pedro Ayres (‘Fado do Mindelo’), outra do poeta decadentista Gomes Leal (‘Cantiga do Campo’) e a última de David Mourão-Ferreira (‘A Sombra’, cantada por Amália e incluída no filme de Joaquim Leitão). As palavras serviam de agregação à música que os Madredeus queriam fazer e à matriz que, ainda sem o saberem, os uniriam a Teresa Salgueiro.
Nesse ano de 1985, Pedro Ayres Magalhães esboçou os Madredeus – em entremeio aos seus Heróis do Mar –, conceito de raiz popular, assente em palavras, assente no fado (então género tabu), mas sem guitarra portuguesa. Os Madredeus eram um conceito estranho, improvável, que ajudava a construir um imaginário português com a música como veículo. Manifestavam o roteiro da saudade – escorado numa mulher que está à espera. O roteiro era esse: o de uma mulher que está à espera, quase sempre desconhecendo de quê. Foi um conceito maturado, sem pressas, esculpido com bom gosto, erudição e foco. O sucesso deu-se apenas cinco anos mais tarde, quando traziam já muita bagagem de empatia. Não eram o ângulo despojado dos Heróis do Mar nem da Sétima Legião. Os Madredeus eram um outro rosto musical dos criadores dos Heróis do Mar e da Sétima Legião. Foi aliás na apresentação do álbum “Mar de Outubro”, da Sétima Legião, que os Madredeus se estrearam, em novembro de 1987.
Quando se ouvia ‘A Vaca de Fogo’, a voz soprano de Teresa Salgueiro marcava a cadência de uma sonoridade envolvente, magnética e extravagante. Os Madredeus pareciam tanta coisa e não eram, para além da sua substância, nenhuma delas. Faziam música sofisticada, que remexia as nossas raízes afetivas – e percebia-se que o faziam com desvelo, com exigência, com brio. Os músicos despiam-se de ornatos para sublimar o essencial, apenas o essencial. Serviram mensagens, serviram discursos, em forma de música. Foram talvez por isso, durante a vida dos Madredeus, olhados de soslaio por produzirem música de elite, feita para as elites; todavia, os Madredeus venderam um milhão de discos em Portugal – e um milhão de discos em Portugal é índice maior do que é ser popular. Venderam o dobro disso no estrangeiro e isso tornaram-nos, para além de populares, motivo de orgulho – desde Amália, no final dos anos 60, que Portugal não era distinguido musicalmente fora de Portugal. Amália não tinha ainda deixado sucessores. Haveria de depor essa sucessão nos Madredeus.
Eram seguidos, os Madredeus: em Portugal e nos quarenta países por onde passaram. Tudo começara em Portugal com ‘A Vaca de Fogo’ – uma manifestação popular pagã que envolve uma vaca de madeira em chamas que vai largando bichas de rabear, celebrando a ressurreição –, mas os Madredeus tinham ambições mais vastas. Porque sabiam que a sua qualidade, a sua disciplina, o seu requinte e, enfim, a sua portugalidade poderiam ser o escopo de que os Madredeus e Portugal precisavam para se impor no estrangeiro. Bem tentaram em 1991, quando foram convidados para atuar na Bélgica, durante a Europália, onde distribuíram um kit à imprensa com um vídeo, fotografias, posters e um texto de apresentação em várias línguas. Deu certo: passaram a calcorrear a Europa de comboio; passaram a tocar em salas pequenas, a impor o seu nome, a sua sonoridade. Sabiam ao que vinham e sabiam porque vinham. Não eram todavia sequer uma sombra daquilo que seriam três anos mais tarde.
O destino, como um elo que se propaga (já o tinha feito no Gingão, quase dez anos antes), haveria de colocar Wim Wenders no caminho dos Madredeus em janeiro de 1994. Foi o alento de que precisavam para se desprenderem cá do burgo. Wim Wenders foi enlevado pelos Madredeus e fez, depois disso, com que quarenta países se deixassem enlevar pelos Madredeus. Escolheu os Madredeus para compor as músicas do seu “Lisbon Story” e detonou a sua música etérea para um público para quem era necessário legendar os concertos mas cuja matriz musical era comum aos que fazem da música o seu ambiente afetivo e de partilha. “O Espírito da Paz”, de 1994, foi editado em doze países europeus, alavancado por terem sido escolhidos por Wim Wenders para compor a sua banda sonora. Terá sido aí que começaram os Madredeus tal qual tinham sido projetados por Pedro Ayres Magalhães e Rodrigo Leão: chegar longe, olhando a pátria, amando-a com os seus defeitos e não recusando o lugar onde se nasce.
Duzentas canções depois daquela audição no estúdio de Paulo Abelho, os Madredeus perduram como a memória mais viva daquilo em que assenta a substância de que se faz uma banda marcante: com quase tudo feito, depois do seu fim, perspetiva-se o outro tanto que poderia ter sido feito.
Os putos já fogem dela
Deitam fogo a rebentar
Soltaram uma vaca em chamas
Com um homem a guiar
Ouvir também: ‘Alfama’ (1995). O single do álbum “Ainda”, composto especialmente para o filme de Wim Wenders. No teledisco da canção, participaram o protagonista do filme e o próprio realizador.