Em 1599, a peste negra reincidiu em Lisboa. A realeza (filipina), a corte e o clero saíram da capital, fugindo dos seus ares ‘apestados’, instalando-se em quintas nas cercanias. Uma das residências que quiseram ocupar foi a de Manuel de Sousa Coutinho, em Cacilhas, que, antecipando o ultraje, incendiou a própria casa. O seu irmão Jorge, clérigo, gabava as qualidades da vila que mirava o rio Tejo: “Foi escolhida esta nossa boa vila de Almada, que o deveu à fama de suas águas sadias, ares lavados e graciosa vista”. O episódio faz parte da peça “Frei Luís de Sousa”, de Almeida Garrett, e já então eram gabadas as qualidades da margem sul – já não apenas como área vasta de cultivo. A margem sul do Tejo foi, ao longo dos séculos, sendo escolhida para instalar indústria, de pequena ou média dimensão, propiciando sustento a operários vindos sobretudo do Alentejo. Ainda hoje, a ‘variante’ do português da margem sul transporta a maciez do sul. Foi todavia no século XX que se deu o maior fenómeno de imigração para a margem sul: Alfredo da Silva optou por instalar a sua CUF (Companhia União Fabril) no Barreiro e estendeu as áreas de negócio por Almada, Montijo ou Setúbal: ‘O que o país não tinha a CUF criava’. Residências, escola gratuita ou posto médico eram alguns dos privilégios que a CUF concedia aos seus trabalhadores, atraindo operários e dinamizando a economia local, expandindo-a. A CUF alavancou a margem sul. A margem sul passou a olhar de frente para Lisboa.
A maioria da gente que povoava a margem sul provinha, compreensivelmente, do Alentejo. Gente que buscava uma fuga da lavoura, do trabalho curvado de sol a sol em troca de um caldo e de umas malgas de vinho. Esta gente ("Para quem nenhuma religião foi feita / Nenhuma arte criada / Nenhuma política destinada para eles! / Como eu vos amo a todos, porque sois assim / Nem imorais de tão baixos que sois / nem bons nem maus / Inatingíveis por todos os progressos / Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida", como escrevia Álvaro de Campos na sua ‘Ode Triunfal’) foi o que inspirou João Monge a criar a substância lírica do Rio Grande. Ele próprio é filho do Alentejo, de Ficalho, no concelho de Serpa, e professor em Almada. Conhece os dramas e as glórias destes ‘expatriados’, desta fauna maravilhosa do fundo do mar da vida.
O Rio Grande são versos com gente dentro. São música com gente dentro. Retratam a angústia de ter de partir das suas vilas e aldeias para vir para a ‘civilização’ e também a angústia de ter de ficar na sua terra querendo partir para essa ‘civilização’. Em todo o caso, quando saíam do seu Alentejo, continuavam a fazer planos concretos para regressar e a enredar-se no quotidiano da terra que deixaram. Criava-se descendência e alicerces na nova terra de onde provém o sustento e, por isso, a maioria não regressava, mas faziam com que de muito Alentejo fosse composto Sesimbra, Seixal, Palmela ou Setúbal.
João Monge entregou as letras a João Gil, dando-lhe liberdade para compor músicas para aquela narrativa composta de muitas histórias. João Gil, ele próprio nascido bem longe da capital (na Covilhã), compôs o projeto Rio Grande a partir das palavras de João Monge, com as quais tanto se identificava. Convidou Vitorino, que era o modelo de um alentejano na Lisboa cosmopolita; Tim, de Beja, e ‘filho’ da margem sul do Tejo; Rui Veloso, um nortenho acolhido em Lisboa; e Jorge Palma, andarilho e com perfil de parte incerta.
A matéria que compunha o Rio Grande era a infância nos campos largos do Alentejo, com a fisga no bolso de trás e o caderno dos deveres na pasta a tiracolo; era a figura distinta do mestre-escola; era as cartas que se enviavam para Lisboa a oferecer serventia num ofício como aprendiz e a espera penosa por uma resposta; era as despedidas antes da grande partida com uma mala a que sobrava fundo e um farnel para a viagem na carreira; era o trocar o campo por um estaleiro; era um mudar de vida que, ainda não se sabendo, seria para sempre. A matéria que compunha o Rio Grande era a Lisnave (que João Gil via da sua janela), com operários que nunca tinham visto o mar e que agora, como que representando um destino irónico, se viam ali a compor ‘barrigas’ de navio. Era o dia de passeio ao domingo pela linha de Cascais, como retempero de uma semana de trabalho duro, e de umas queijadas ao fim da tarde antes de regressar a casa.
Mas a matéria que compunha o Rio Grande era sobretudo o ‘Postal dos Correios’, a carta que se escrevia aos pais, que se escrevia à terra. Esta carta, como a maioria das cartas que se escrevem quando se está longe (e Lisboa haveria de ser sempre um lugar estranho, até porque as memórias mais nítidas e puras não se tinham esboçado ali) abordam três temas: o presente, as notícias do quotidiano que deixaram e o desejo de voltar um dia, nem que fosse pelo Natal. E foi este desejo de regressar – apesar da ponte do Guadiana ficar cada vez mais longe e a ponte sobre o Tejo cada vez mais perto, que era o inverso dos seus planos – que compôs o Rio Grande.
Correu bem. Muito bem. Foram dois anos de êxito, alimentados sobretudo pelas canções do Rio Grande e não pelo vedetismo dos seus integrantes. Quem via o Rio Grande ao vivo não o fazia para ver o Rui, o Jorge, o João, o Vitorino ou o António. Queria ver o Rio Grande, ouvir o ‘Postal dos Correios’, ‘A Fisga’ ou ‘Dia de Passeio’. Por que razão aquelas canções tão simples, tão pueris, tocaram as pessoas? Porque eram comoventes. Porque eram a história da maioria dos portugueses – de africanos, de beirões, de transmontanos. Dos portugueses e estrangeiros que compõem a grande cidade – feita de retalhos de outras geografias. Aquelas canções tocaram os portugueses porque muitos também tinham tido uma fisga no bolso de trás. Porque muitos tinham recebido pão e linguiça da terra embrulhado em papel pardo – que sempre dava para enganar a saudade. O Rio Grande era enfim uma ode à saudade. E essa saudade, com a pujança lírica e emocional que João Monge depõe em tudo o que concebe, foi a matéria nos fez vizinhos daquelas composições.
Já não tenho mais assunto pra escrever
Cumprimentos ao nosso pessoal
Um abraço deste que tanto vos quer
Sou capaz de ir aí pelo Natal
Ouvir também: ‘Senta-te Aí’ (1996). A canção mais despida deste seu único álbum (já por si despojado), apenas com a guitarra de João Gil e a voz de Jorge Palma. A única também cuja temática destoa das outras canções.
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