Blitz

101 canções que marcaram Portugal #95: ‘Olhos Castanhos’, por Francisco José (1951)

Francisco José
Francisco José
D.R.

O ‘fabuloso’ Francisco José desafiou o poder em direto. O seu ato de coragem arrasou a sua carreira no seu país para sempre, quando estava ainda no auge. Obteve consagração no Brasil, tendo vendido milhões de discos. Teve uma vida frenética. ‘Olhos Castanhos’ foi a canção que o celebrizou e é a 95ª de 101 que marcaram Portugal

Jorge Cerejeira

101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.

‘Olhos Castanhos’, Francisco José (1951)

Lisboa. Bairro dos Atores, à Alameda. Rua Atriz Virgínia (Dias da Silva), n.º 18, 1.º Esquerdo. Nessa manhã do dia 22 de Julho de 1964, Francisco José levantou-se contrariado, tomou um duche, barbeou-se, vestiu o seu robe e aguardou a chegada do jornalista Pedro Rafael dos Santos, do ‘Diário de Lisboa’. Costumava ficar hospedado no Hotel Estoril-Sol quando estava em Portugal, mas atuara no restaurante ‘Chicote’ já depois da meia-noite, ali a dois passos, e resolvera pernoitar na sua casa. A noite anterior tinha sido a noite que mais iria marcar a sua carreira e a imprensa queria aprofundar as razões que o tinham levado a enfrentar o poder (e por inerência a ditadura de Salazar) - em direto na RTP. A conversa com o jornalista foi amena e Francisco José continuava com a convicção de que tinha tomado a atitude correta. Não se apercebera que tinha posto o (já decrépito, por via também da guerra colonial) governo de Salazar em sentido, é certo, mas o seu assomo de coragem, com vista a defender os seus colegas de profissão, revestia-se de suficiente densidade ideológica para nunca prever que a sua carreira tinha terminado para sempre em Portugal.

Francisco José estava há quase dez anos radicado no Brasil e fizera sucesso nos últimos cinco. Regressava a Portugal todos os anos e era ainda um artista aclamado (bem menos que do outro lado do Atlântico), com honras em programas em horário nobre – e se o tempo em televisão era contado: as emissões só começavam às 19h30. Às 23h15 do dia 21 de Julho de 1964, uma quarta-feira, tinha estado no programa ‘TV Clube’, um programa musical, em direto, apresentado por Melo Pereira. Cantou muitos dos seus êxitos e, quase no fim, expôs a injustiça que era a RTP pagar 20, 50, 100 vezes mais a artistas estrangeiros, considerando uma atitude de discriminação em relação aos artistas portugueses.

Francisco José recebera quatro contos (o equivalente a 1.700 € atuais) para atuar nessa noite, o que tinha sido uma exceção: a RTP pagava normalmente um cachet de dois contos aos artistas nacionais. Já Carmen Sevilla, uma cantora espanhola que tinha atuado recentemente na RTP, recebera vinte e cinco vezes mais do que Francisco José. Como gesto superlativo de insolência, olhou de frente para a câmara, afirmando: ‘Sei que o programa será cortado, mas não faz mal; já contava com isso. Já disse o que tinha a dizer. Ainda tenho duas canções para cantar. Vão cortar já ou posso continuar?’. Foram três minutos de constrangimento – até os técnicos decidirem cortar a emissão, aí mesmo. Francisco José já o previra. Ao percorrer o caminho de regresso entre o estúdio e o parque onde estava estacionado o seu Oldsmobile 88 cabriolet, o ambiente era gélido. Ninguém lhe dirigiu a palavra. Fora o único escândalo da televisão até então da RTP – com quase dez anos de existência. A primavera marcelista ainda não chegara e não eram admitidos os excessos tolerados poucos anos mais tarde – como no programa ‘Zip-Zip’.

Foi uma cegada, foi o que foi. Nessa mesma noite, centenas de pessoas acorreram à porta do restaurante Chicote, no Areeiro, onde iria atuar, para ovacionar o seu arrojo em ter denunciado uma ‘intolerável’ injustiça. Num exercício de vaidade, Francisco José, da varanda do restaurante, saudou a multidão, agradeceu o seu apoio, não resistindo a vir ao exterior, onde cantou uma canção e se despediu em êxtase.

Dormiu sereno, sem prever a polémica que se seguiria: em três dias, recebeu 100 mil cartas de admiradores; a RTP instaurou um inquérito interno e processou-o; a PIDE fantasiou que a sua atitude tinha sido arquitetada por operacionais do PCP para testarem a vulnerabilidade da RTP e poderem, no futuro, transmitir mensagens políticas em direto; Francisco José foi impedido de sair de Portugal, tendo aproveitado o reconhecimento para fazer uma turné pelo país. Em todo o caso, o escândalo que provocou fez com que a RTP só abrisse, a partir daí, duas exceções para programas em direto: o ‘Festival RTP da Canção’ e ‘O Natal dos Hospitais’.

Francisco José, o insuspeito romântico, que fazia de fados boleros e de boleros fados, tornava-se num símbolo de revolta, um modelo de oposição ao poder instalado, uma voz contra as injustiças cometidas por um regime que era preciso regenerar. Passava a sê-lo, sim, mas não fora intencional. Francisco José não tinha sido instrumentalizado por quaisquer cúpulas do PCP. Temia a PIDE, aliás. Estava apenas revoltado por receber 25 vezes menos do que aquilo que recebia por uma atuação no Brasil, país onde só conseguiu regressar dois meses mais tarde.

O que poderia ter sido aproveitado por Francisco José para encetar uma inflexão no seu percurso foi-o - mas em sentido inverso. Francisco José não era um cantor de intervenção. Não era essa a sua génese nem ele queria sê-lo. Dois anos mais tarde, no Tribunal da Boa Hora, foi julgado e, no final, pediu desculpa pelo mal-entendido. Não fora sua intenção atentar contra o poder e entendia, bem de ver, que a RTP pagasse mais a artistas estrangeiros. A sua inflexão argumentativa foi uma deceção para aqueles que lhe reviam destemor e ousadia – e para quem era um símbolo de rebeldia. Passou a não estar de bem nem com a situação nem com a oposição e o seu ocaso começou aí. Talvez tivesse sido apenas ingénuo, mas a verdade é que não foi convidado para ir à televisão nos vinte anos seguintes e as suas canções, mesmo novos lançamentos, não passavam nas rádios. Foi um ocaso envolto em controvérsia e com um desfecho sem glória.

Já no Brasil, a sua carreira estava estável, apesar de o seu auge ter acontecido em 1961, com ‘Olhos castanhos’. A canção, que tinha sido gravada no início da sua carreira em Portugal, vendeu 1 milhão de cópias no Brasil, tornou-se no grande êxito desse ano e fez de Francisco José o cantor português mais bem sucedido no Brasil de sempre. Tinha feito um percurso improvável e trilhado a pulso, desde que aterrara no país em 1955. Tinha conseguido perpassar o seu êxito para além da comunidade portuguesa; tinha conseguido marcar os brasileiros com a sua pronúncia portuguesa açucarada, mas sobretudo através de uma admirável dicção – que fazia os brasileiros compreenderem, como uma exceção, as palavras ditas por um português. Estavam acostumados a que as vogais fechadas do português de Portugal fizessem soar as palavras a qualquer língua eslava. Passaram, isso sim, a tomar Francisco José como um dos seus – dando-lhe direito até a ter um programa em horário nobre na TV Continental. A sua ‘Adega de Évora’ era um dos restaurantes mais badalados no Rio de Janeiro. Francisco José conseguiu fazer da utopia realidade. Com frequência (e razão de ser), era colocado na capa dos seus discos, antecedendo o seu nome, o cognome ‘O fabuloso’, numa estratégia importada dos Estados Unidos e aplicada no Brasil (e também em Portugal: relembre-se o álbum “The Fabulous Marceneiro”).

A canção que o celebrizou, quer em Portugal quer no Brasil, ‘Olhos Castanhos’, composta pelo maestro Alves Coelho Filho, exaltava a cor dos olhos mais comum em Portugal – o que a fez obter um sucesso quase imediato e é, ainda hoje, o ícone do seu intérprete. Na letra, traça-se um paradoxo entre os bons e leais olhos castanhos e os olhos de outras cores, que, em si, denunciavam ciúme, queixume, tristeza, crueldade e traição (um orgulho para quem tivesse tido a sorte de nascer com os olhos castanhos). A letra superficial era todavia orelhuda. A orquestração e sobretudo o carisma e a voz de Francisco José fizeram da canção uma das canções intemporais do nosso património. Era cantada com o coração, com a emoção, com pungência e agonia (infundada, diga-se, uma vez que os olhos da amada até eram da cor certa).

Francisco José mereceu o cognome de fabuloso. Teve uma vida intensa – com sucesso sólido em dois países. Regressou a Portugal poucos anos antes de morrer e já pouco restava do galã que, durante décadas, arrastou gerações para o ver e ouvir. Tem sido esquecido – em Portugal e no Brasil. Em Portugal, esse esquecimento terá ficado a dever-se a uma sua imponderação e a uma consequente incongruência. Fica, em todo o caso, na história da música portuguesa, como uma voz maior, uma presença imponente e uma dicção que deveria servir de compêndio. Poderia ter sido um artista à escala internacional (um Carlos Gardel, um Mário Lanza, um Bing Crosby), mas fez bem mais do que seria expectável – por ter sido o único cantor português a alcançar de facto uma carreira fora de Portugal sem renegar a sua portugalidade.

Olhos azuis são ciúme
E nada valem para mim,
Olhos negros são queixume
De uma tristeza sem fim,
Olhos verdes são traição
São cruéis como punhais,
Olhos bons com coração
Os teus, castanhos leais.

Ouvir também: ‘Kanimambo’ (1957). Gravada no Brasil e incluída na coletânea “Coração Que Canta”. É uma canção do poeta Reinaldo Ferreira (filho do também Reinaldo Ferreira Repórter X) e escrita de propósito para João Maria Tudella a uma mesa de café, em Lourenço Marques. Foi o grande sucesso de Tudella; não consta que seja relembrado hoje no Brasil.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

Comentários
Já é Subscritor?
Comprou o Expresso?Insira o código presente na Revista E para se juntar ao debate