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Rosalía incansável, até ao ‘olé’ final, na Altice Arena: houve duetos com os fãs, sentiu-se o flamenco e até lágrimas lhe caíram

Mostrando que a pop também pode ser um jogo simples, Rosalía centrou todas as atenções na sua voz preciosa. As luzes e as câmaras estavam lá, e por toda a parte, os bailarinos e as coreografias também, mas as canções do disco-furacão “Motomami”, belissimamente bem defendidas lado a lado com os êxitos incontornáveis, falaram mais alto

Ser estrela pop em 2022 é saber pegar em todas aquelas regras testadas e reafirmadas ao longo de décadas e subvertê-las. Por vezes, até, deitá-las borda fora. Rosalía, a cantora catalã que, de há cinco anos a esta parte, tem vindo a conquistar o mundo com a sua voz preciosa e uma vontade assumida de se afirmar à sua maneira, demonstrou esta noite, numa Altice Arena a rebentar pelas costuras, que não são precisos mil figurinos diferentes, uma cenografia muito elaborada e coreografias cheias de adereços para construir um espetáculo que agarre o público ao longo de duas horas. Munida das canções à prova de bala de “Motomami”, um dos álbuns mais elogiados do ano, a artista conquistou os lisboetas (nativos e adotados, mesmo que por uma noite) com uma voz que carrega o dramatismo das suas origens flamencas mesmo quando se traveste de reggaeton, hip-hop, bachata, samba, eletrónicas experimentais ou, simplesmente, de pura diversão.

21 minutos após a hora marcada, depois de um avolumar de entusiamo que rebentou no motim acelerado de ‘Matsuri-Shake’, do coletivo punk japonês Ni Hao!, Rosalía entrou no palco em forma de tela em branco ao som de motores em fúria, rodeada do seu corpo de bailarinos, todos envergando os capacetes iluminados que convêm a uma “motomami”. ‘Saoko’, incatalogável canção que abre o álbum, entrou, de rompante, com o seu rugir, dando rapidamente lugar à doçura de ‘Candy’. Desta forma, logo a abrir, ficámos cientes de que nos esperaria um desfile de canções a várias velocidades. A efervescência de ‘Bizcochito’ e a bachata (sem a voz gravada de Weeknd) de ‘La Fama’ prepararam o terreno para uma hipnótica ‘Dolerme’, servida com a companhia de uma simples guitarra, e o casamento feliz de ‘De Aquí No Sales’, recuperado a “El Mal Querer”, o disco anterior, e ‘Bulerías’, a canção de batuque rotundo que transporta consigo o flamenco que a viu nascer.

A indumentária motard, que a manteve no espírito do álbum do início ao final do espetáculo, não a impediu de seguir de perto as coreografias, ora frenéticas ora figurativas – em ‘Motomami’, os corpos dos bailarinos contorceram-se para formar uma motorizada. A acústica da sala nem sempre ajudou, com a voz de Rosalía a esvoaçar para longe quando a queríamos perto, mas conseguimos seguir todos os seus movimentos de perto, ampliados pelas câmaras que a acompanharam, de vários ângulos, enquanto se entregava às batidas intensas de ‘Linda’, dueto com a rapper dominicana Tokischa, ou servia toda a sensibilidade de ‘G3 N15’, um dos momentos mais íntimos de “Motomami”. “Lisboa, quando fiz este disco, estive dois anos longe do meu país e acho que nunca vivi nada tão duro”, confessou antes de ‘G3 N15’, “não porque os lugares onde estava não eram bonitos, mas porque me sentia sozinha. Estava sozinha e tinha muitas saudades das pessoas que amo. Foi aí que escrevi esta canção”.

‘La Noche de Anoche’, sedutora colaboração com Bad Bunny, foi apresentada bem juntinho do público e em dueto com quem se quis juntar a ela, entre bandeiras portuguesas e espanholas, num momento de comovente partilha ibérica. ‘Diablo’ chegou com Rosalía sentada numa cadeira de barbeiro, enquanto recebia alguns retoques no cabelo e na maquilhagem, seguindo depois, sozinha ao piano, pela intensidade minimalista de ‘Hentai’. “Obrigado por serem tão carinhosos comigo”, agradeceu, antes de nova viagem ao passado para ‘Pienso En Tu Mirá’ e uma versão de ‘Perdóname’, clássico do reggaeton das panamenses La Factoría. Recuando ainda mais lá atrás, ao álbum de estreia, “Los Ángeles”, e vestindo uma saia negra com cauda de largos metros, interpretou ‘De Plata’ de peito cheio, soltando o flamenco que carrega na voz até ao ponto perfeito de emoção. Ao limpar as lágrimas, no final, agradeceu “o amor” que o público lisboeta dá à sua música, confessando que, tal como o flamenco, também o fado a “emociona muito”.

Quando Alberto, um admirador que, de forma afoita, lhe perguntara, num cartaz, se poderia cantar ‘Abcdefg’ consigo, Rosalía respondeu que sim. E no abecedário da cantora encontrámos um P de ‘patrona’ mas também de Portugal e um L de Lisboa. Em roda-viva, o espetáculo seguiu, depois, com a intensidade de ‘La Combi Versace’, as sirenes e o twerk de uma versão envolvente de ‘TKN’, colaboração de luxo com Travis Scott, e o baile inconsequente de ‘Yo x Ti, Tu x Mi’, outra colaboração de luxo, com Ozuna, que casou com uma citação do êxito ‘Gasolina’, de Daddy Yankee, e a loucura completa de ‘Despechá’, que teve direito a invasão controlada de palco e uma lição de voguing de um dos bailarinos. Já na reta final, “todos os que escutaram a versão deluxe de ‘Motomami’” tiveram direito a dois mimos: a balada ‘Aislamiento’ e uma matadora, e muito aplaudida, ‘Chiri’. Pelo meio, chegou uma versão muito própria de ‘Blinding Lights’, sucesso estratosférico do amigo Weeknd. As teclas pesarosas de ‘Como Un G’ cederam lugar às palmas contagiosas de ‘Malamente’, brindada com uma enorme ovação, e à nostalgia de ‘Delirio de Grandeza’, clássico do cubano Justo Betancourt.

“Lisboa, a noite está a terminar, mas antes de voltarem para casa gostaria muito de dizer que gosto da vossa energia e espero que tenham desfrutado muito da nossa”, atirou a artista, antes de garantir que o final teria de ser “em força”. ‘Con Altura’, o dueto com J Balvin que, em 2019, a atirou definitivamente para fora das fronteiras espanholas, encerrou, então, o corpo principal do espetáculo. Mas ninguém arredaria pé sem um encore. Portanto, o regresso fez-se, em cima de trotinetas, com a pura diversão de ‘Chicken Teriyaki’, a emoção à flor da pele de ‘Sakura’ e o samba frenético de ‘CUUUUuuuuuute’. A dado momento da atuação, a cantora catalã assumiu que há muito tempo queria regressar a Lisboa, “um sítio precioso” pelo qual diz ter-se apaixonado à primeira. Esta noite, a cidade ouviu-a pela primeira vez ao vivo e a cores, e será seguro dizer que também se apaixonou pelo poderio de uma voz que não esquece as raízes, mesmo quando, em verdadeiras jogadas de mestre, se atira para outros territórios.

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