101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.
‘Tourada’, Fernando Tordo (1973)
De tarde, no ensaio geral, sussurraram a Simone de Oliveira: “E se logo à noite perdes a voz?” Simone respondeu com temperança: “Eu nunca mais vou perder a voz”. As suspeitas tinham fundamento, todavia. Simone perdera a voz quatro anos antes, logo depois de ‘Desfolhada’, e estava de regresso naquela noite de 26 de Fevereiro de 1973 - com uma voz mais grave, mais madura, uma voz pouco a fazer lembrar os seus tempos de diva do festival. Seria dela a última atuação daquela noite fria no teatro Maria Matos. Uma grande canção: ‘Apenas o Meu Povo’, letra de José Carlos Ary dos Santos e música de Fernando Tordo – que nesse ano participavam com quatro canções (a aproveitar a expertise de compor a quatro mãos). Simone de Oliveira sabia que não poderia desapontar. Cantou ‘Apenas o meu povo’ com verve, dizendo que estava de volta, que estava de volta uma nova Simone. Venceu o prémio de interpretação, como se o destino lhe quisesse dar alento.
Fernando Tordo e Ary dos Santos compunham juntos há dois anos. A primeira canção fora ‘Cavalo à Solta’ e a partir daí resolveram fazer, mais do que música, história. Decidiram que tinham um compromisso para com a música portuguesa – que era ajudar a criar substância nas suas criações. Nesse ano, enviaram cinco canções (duas delas interpretadas por Fernando Tordo), uma delas ‘Tourada’.
Fernando Tordo tinha composto uma melodia – ainda sem título – e que, pelo seu ritmo e cadência, o remetiam para o universo da tourada. Desceu quatro lanços de escada (Tordo morava nas águas-furtadas e Ary no R/C do n.º 23 da Rua da Saudade) e desafiou o seu parceiro a escrever a letra daquela canção ainda anónima. Contudo, Ary não dominava a terminologia da festa brava. Sem dramas: a partir de vocabulário ditado por Tordo, Ary bordou a ponto-luz uma das letras mais intrincadas da sua lírica. Expôs o Portugal de então: os seus tipos sociais, as suas hipocrisias e as suas contradições. ‘Tourada’ era uma metáfora da decadência de um regime; de uma primavera com atmosfera de Outono. ‘Estamos na praça da primavera’, um dos versos de ‘Tourada’, era um exercício de ironia - pela inação de um vento novo.
Profetizava-se uma mudança no panorama de Portugal desde 1968 – ano em que Marcelo Caetano assumira o governo do país. Porém, a mudança, cinco anos depois dessa data, nunca fora real. 1973 estava a ser um ano com várias manifestações de subversão e a censura estava mais atenta que nunca. Não se entendeu por isso, até hoje, que a censura não tenha conseguido entender a mensagem veiculada por uma letra que era, em si, uma crítica direta e satirizante ao regime de Marcelo Caetano.
As canções eram enviadas para o ‘exame prévio’ sem indicação dos seus autores. Simplesmente não era necessário ser-se excecionalmente perspicaz para aferir que ‘Tourada’ era uma letra do poeta vermelho, Ary dos Santos. Os compositores não esperavam, por isso, que esta sua canção, a primeira a ser enviada, transpusesse o crivo dos censores, o que propiciaria cedências para as quatro restantes. Equivocaram-se; ‘Tourada’ não foi eliminada e veio mesmo a vencer o festival. Muitos dos versos manifestavam a essência da sua doutrina: ‘Toureamos ombro a ombro as feras’ ou ‘Com bandarilhas de esperança, afugentamos a fera’ mostravam o despudor com que Ary afrontava o poder.
Não foi a tourada, afinal, que se pensava que ia ser (ou que hoje, à distância, se deduz que pudesse ter havido), mas continua, ainda assim, a parecer inverosímil este equívoco. A justificação não poderá ser com certeza a tolerância à insolência. O regime, mais do que não ser tolerante, não estava tolerante.
Para a história daquele Festival RTP da Canção de 1973 fica o toque de tourada inicial, Fernando Tordo a entrar na música devagarinho, de camisola preta e jaqueta vermelha, cabelo frisado e olhar determinado – como um toureiro, enfim. A música e a letra crescem em gradação, como um ataque em catadupa ao cotidiano lusitano e ao poder instalado. No final, em suspensão, acusa a censura (o ‘inteligente’) de acabar com as canções e termina ensaiando uma pose de toureiro a pé, com bandarilhas de esperança empunhadas. Esteve-se mesmo, pelo menos durante aqueles três minutos, na praça da primavera.
Venceu. Por pouco, é certo (Paco Bandeira ficou a quatro pontos), mas venceu. Não havia como inverter. Dois anos depois de ter levado a melhor canção de sempre (‘Cavalo à Solta’, em 1971) ao festival e de se ter quedado por um terceiro lugar, depois de dois últimos lugares (em 1970 e 1972), Fernando Tordo venceu. ‘Tourada’ não foi censurada antes do festival, mas foi-o depois: vetada pelas rádios, não se tornou num grande sucesso nesse ano. Fernando Tordo, depois do 25 de Abril, foi um interventor no processo revolucionário, ao lado de Ary dos Santos e de outros músicos insubmissos.
De Ary dos Santos, fica o seu valor pedagógico de um tempo em que era necessário fintar o lápis azul para alertar o povo para a prepotência e para a urgência de poder dizer não (‘Poeta castrado, não!’).
Entenderam-se, estes parceiros, na harmonia entre palavras e melodia. Durante onze anos, criaram das mais belas canções da nossa herança musical, da nossa memória coletiva, e viram cumprir o seu intento de perpetuar uma história que contribuiu para a formação de uma génese musical em Portugal.
Com bandarilhas de esperança
Afugentamos a fera
Estamos na praça da primavera
Nós vamos pegar o mundo
Pelos cornos da desgraça
E fazermos da tristeza graça
Ouvir também: ‘O Café’ (1973). Single gravado no final de 1973, música de Fernando Tordo e letra de Ary dos Santos. É uma canção alegre, mordaz, criticando os vícios do Portugal de então – como se várias personagens que compõem o quotidiano de Portugal se sentassem a uma mesa de café. Uma outra variação de ‘Tourada’, em que também se convidam vários tipos para a festa.
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