101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.
‘Fado’, Heróis do Mar (1986)
‘Quanto mais ao povo a alma falta / Mais a minha alma atlântica se exalta e entorna’. Assim escrevia Fernando Pessoa em “Mensagem”, uma ode sobretudo ao futuro, agitando Portugal pelos colarinhos e incitando-o a não se contentar com um presente comezinho. Esse estímulo a um horizonte com perspetivas mais largas (olhando para os pergaminhos dos feitos passados) era o fundamento do Quinto Império de “Mensagem” – que serviu também de génese à banda portuguesa mais polémica de sempre: os Heróis do Mar.
25 de Novembro de 1975: uma movimentação militar colocou o país em estado de sítio (o povo em aflição, temendo o pior), com grupos de esquerda radical (ligados a alguns ramos das Forças Armadas) a intentarem um golpe de estado, só travado por outra fação militar (o grupo dos 9), ao qual se juntou Ramalho Eanes e Jaime Neves. Foram estes homens que conseguiram então consolidar a democracia e concretizar a serenidade de que necessitava.
25 de Novembro de 1981: estreia dos Heróis do Mar no Rock Rendez-Vous. Um acaso a data coincidir com a intentona de seis anos antes. Logo se levantaram vozes de que a banda, pela encenação e outfit invulgares (bizarros, para muitos), tinham o objetivo de (re)implementar um golpe em Portugal (de direita, bem de ver) e que a sala tinha dirigentes revolucionários disfarçados para os apoiar.
Duas semanas antes, aquando do lançamento do seu primeiro álbum, “Heróis do Mar”, a manchete do jornal Se7e era demolidora. Usava uma interrogação retórica para afirmar a sua convicção: “Heróis do Mar”: uma banda fascista?”. Como uma contra-provocação, a banda fez publicar neste mesmo jornal um anúncio de página inteira com um conceito personificado (espoliado de Fidel Castro) “A história nos absolverá”. A história, tinham razão, absolvê-los-ia. Todavia, também por esta polémica, nunca se conseguiram livrar, desde aí, do rótulo de banda fascista. Na verdade, o visual militar, os estandartes, as bandeiras, as letras sobre a saudade e referências a um Portugal glorioso parecia ter saído da cartilha da Mocidade Portuguesa ou da Legião Portuguesa. Portugal vivera cinquenta anos sob uma ditadura de direita e a democracia era ainda imatura (com traços de radicalismo, como convém a períodos de afirmação), politizada e fraturada.
Os Heróis do Mar eram jovens, impetuosos (como a democracia em que viviam), vanguardistas. Queriam intervir no renascimento de um Portugal sobre o qual pensavam e com o qual não se sentiam identificados. Traziam mundo de Londres, dos Estados Unidos, de Paris, mas sobretudo das muitas músicas que todos tinham ouvido e apreendido. Traziam mundo também de uma elite cultural de Lisboa – que frequentava o Brown’s ou o Trumps e se relacionava com criadores de outras linguagens. Conseguiram agregar essas sonoridades e produzir um som original, uma identidade, enfim, Heróis do Mar.
Foi um pandemónio, foi. ‘Pátria’ ou ‘Saudade’ eram palavras tão proibidas no pós-25 de Abril como ‘Comunismo’ ou ‘Liberdade’ eram no tempo do Estado Novo. ‘Querem é a herança de Salazar’, diziam-lhes – quando tudo o que os Heróis do Mar queriam era descomplexificar a miséria de costumes que era Portugal. Lutar por aquilo que quisessem. Eram não fascistas mas ativistas. Reconheciam a dificuldade que o país atravessava e queriam contribuir para uma mudança progressista e libertária.
Mais do que o leitmotiv semântico ou cénico, era na sua música, em todo o caso, que residia a sua substância. Funcionava todavia em duas cadências: os álbuns que queriam realmente fazer – e que não eram invariavelmente um sucesso de vendas – e os singles lançados no entremeio para saciar a ambição comercial da editora que Tozé Brito geria, a Polygram. ‘Amor’, ‘Paixão’, ‘Alegria’ ou ‘Inventor’ foram singles ou EPs intervalares de LPs dos Heróis do Mar – normalmente dançáveis e muito, muito mesmo, trauteáveis.
Depois de quatro anos de um percurso criativo ziguezagueante – confuso, pela heterogeneidade do género de canções que produziam, até para o seu público – decidiram tentar retomar a linguagem convergente que os definia. O lugar que escolheram para essa confluência foi Macau – território português no qual não recaía qualquer espectro de exploração, até porque tinha sido oferecido a Portugal como uma dívida de gratidão, representando, em todo o caso, alegoricamente, o período de expansão, a fase de glória que convinha não desaprender.
Rui Pregal da Cunha, o vocalista, tinha nascido neste território e serviu como um encontro/reencontro entre todos os membros da banda. Desta passagem (que estava planeado durar dez dias mas acabou por durar um mês) pelo oriente emergiu um grande álbum dos Heróis do Mar. Porventura o álbum mais amadurecido e racional dos quatro que lançaram ao longo de oito anos de existência. Este álbum dos Heróis do Mar chamou-se “Macau” e era um álbum sobre os Heróis do Mar. Não outros heróis do passado. As personagens de “Macau” e o seu enredo eram eles mesmos: o seu percurso, as suas desordens, os seus rumos, as suas confluências e sobretudo o seu futuro – agora que o destino que tinham idealizado se tinha cumprido. Como se longe, no Oriente, conseguissem olhar para si em perspetiva, como um ritornelo de saudade.
Gravado em 1986, “Macau” era musicalmente bem mais avançado do que aquilo que os Heróis do Mar tinham feito ou fariam. “Macau” era o seu álbum. A sua música. Era os Heróis do Mar despojados. O seu ‘Fado’, como a canção-single, de toada triste e atmosfera de epílogo, estava já definido. Como um contrassenso, o seu álbum mais consistente e talvez a sua canção mais bem desenhada fosse uma premonição do seu fim. Tinha já passado demasiado tempo desde que tinham concebido uma identidade – aquela que os unira e que se tinha entretanto dispersado.
Havia vontade, depois de “Macau”, entre quase todos os membros, de voltar a fazer música. Simplesmente não havia vontade de a continuar a fazer em conjunto. Pedro Ayres Magalhães e Carlos Maria Trindade viviam já dias de Madredeus e Rui Pregal da Cunha e Paulo Pedro Gonçalves tinham ânsia de produzir outros registos musicais noutras geografias. Duraram, ainda assim, mais dois anos e atuaram pela última vez ao vivo no dia 1 de Outubro de 1989.
Em 1981, quando se estrearam, Portugal ainda não vivia plenamente a cores. Continuava a ser um lugar estranho. Os Heróis do Mar contribuíram para arejar a música que cá se produzia, inventando assim um futuro pop para Portugal.
Com a voz que me resta eu não vou poder cantar
As coisas do mundo, não sei descrever, estou longe
São portas fechadas, segredos por revelar
São coisas do mundo, só se podem ver ao longe
Ouvir também: ‘Saudade’ (1981). Este single foi o primeiro registo dos Heróis do Mar, em Agosto desse ano. O lado B era ocupado por ‘Brava Dança dos Heróis’. O álbum só sairia dois meses depois. Estas duas canções eram o amuse-bouche para o vendaval que aí vinha.
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