101 canções que marcaram Portugal #89: ‘Chico Fininho’, por Rui Veloso (1980)
Rui Veloso na foto da capa do single de 'Chico Fininho'
“Ar de Rock” inaugurou um novo período na música portuguesa e ateou a nova mentalidade de uma juventude que queria o futuro a cores. ‘Chico Fininho’, que abria o álbum, tinha uma letra inventiva, inquietante e arejada. Refletia o Portugal que estava a nascer e despia-se de formalismos. Inaugurou o boom do rock português e fez de Rui Veloso o pai do movimento. É a 89ª canção de 101 que marcaram Portugal.
Jorge Cerejeira
101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.
‘Chico Fininho’, Rui Veloso (1980)
Lançado na terceira semana de Julho de 1980, “Ar de Rock” não foi o primeiro álbum de rock da música portuguesa. Nem o seu autor, Rui Veloso, o primeiro rockeiro em Portugal. Nem da sua geração fora o primeiro a lançar um álbum de rock. Já antes, Xutos e Pontapés e UHF, por exemplo, se tinham lançado nesta nova linguagem e nem por isso foram considerados pioneiros. Havia muito a acontecer nessa época em Portugal e “Ar de Rock”, especialmente a sua canção de abertura, ‘Chico Fininho’, foi fruto de muitas coincidências que fizeram de Rui veloso o pai do rock português. Na verdade, bem merece o cognome – porque foi quem ateou, quem desbravou, quem despertou uma nova geração para este novo género, transversalizando-o. Inaugurou, enfim, um novo período da música portuguesa.
O que é que Rui Veloso tinha? Tinha a seu desfavor o cabelo curto, a timidez, o sotaque do norte, a esqualidez, os óculos de sol e o desbragamento de linguagem. A seu favor tinha tudo o que importava: era o retrato de uma época. De uma época que já não se revia no Maio de 68 nem nos pais que tinham feito o 25 de Abril. De uma juventude que se cansara de barricadas, de filmes franceses, de recuperação de autores neorrealistas. Que se cansara de suíças (de bigodes nem tanto) e de óculos grossos de massa. Que se cansara de mensagens metafóricas ou alegóricas, de palavras solenes e poses sisudas. Era uma geração urbana, que queria ver o seu futuro (melhor: o seu presente) a cores. Que precisava de letras que se conjugassem com as personagens reais com quem se cruzavam no seu quotidiano. Era uma geração a quem dizia bem mais Lou Reed do que Georges Moustaki ou Zeca Afonso. Os seus pais já tinham conquistado a liberdade real, anos antes. Esta geração ansiava somente por ter liberdade para dançar. Para curtir. Para tripar. Para abraçar um admirável futuro novo.
As rádios ainda não se tinham desacostumado de exibir música de intervenção ou do nacional-cançonetismo, ainda que se antevisse a emergência de novas linguagens. Daí que esta geração tivesse sentido um baque quando ouviu ‘Chico Fininho’: para além do ritmo frenético, a canção era uma manifestação de liberdade semântica de Carlos Tê (já agora, compositor igualmente da música, caso único neste álbum). Contava a história de um junkie da cidade do Porto, que percorria várias vezes ao dia o trajeto da Cantareira, na Foz, até à baixa. Este freak seria provavelmente um pequeno traficante, fazendo-o sobretudo para sustentar o seu próprio vício em heroína. Carlos Tê ter-se-á cruzado muitas vezes com Chicos Fininhos na sua juventude – não sabendo eles que serviriam de inspiração para a sua primeira composição em português.
Na letra usava-se o jargão das ruas e usava-se outras expressões que passariam a fazer parte do nosso léxico. Não era de todo a primeira vez que se empregava merda numa letra em português (Ary dos Santos usara mesmo a palavra no refrão do ‘Fado de Alcoentre’), mas seria a primeira vez que se abordava o assunto drogas pesadas sem paternalismos moralistas. E com certeza que Carlos Tê foi o responsável por a expressão ‘maior da Cantareira’ passar a ser democratizada. As letras de “Ar de Rock” eram, em resumo, inventivas, inquietantes e arejadas. A letra de ‘Chico Fininho’ era mais do que isso: era uma desbunda. Era uma letra flipada sobre um marginal. Refletia o Portugal que estava a nascer e despia-se, para isso, de formalismos. Ninguém estava preparado para o fenómeno rock português. Ninguém contava com o dom de Carlos Tê.
A capa do single de 7 polegadas de 'Chico Fininho'
Rui Veloso e este álbum são uma sucessão de acasos, como se o destino de Rui Veloso tivesse sido manipulado por alguém que queria o melhor para si. Incondicionalmente. E foi-o, de facto. A sua mãe, Emília Veloso, observava o seu filho sistematicamente encafuado na cave ouvindo e tocando música, sem qualquer interesse pelos estudos. Aproveitou por isso uma visita do seu marido (à época presidente da Câmara Municipal do Porto) a Lisboa e encontrou-se com António Pinho (da Valentim de Carvalho), sem que Rui Veloso jamais desconfiasse. Queria mostrar-lhe duas bobines com músicas do seu filho – para que tivesse a certeza de que Rui Veloso tinha ou não talento. António Pinho ouviu todas as canções – todas escritas em inglês. Exceto uma, aquela que mais lhe chamou a atenção: ‘Chico Fininho’.
Não se deixou intimidar pelo vernáculo, pelo léxico inusitado. A estricnina, o chuto nas retretes, a merda na algibeira ou a trip de heroína não o escandalizaram. Pelo contrário. Ainda que contendo o entusiasmo, não foi capaz de negar que, sim, o filho daquela senhora sentada à sua frente era um jovem com talento. D. Emília saiu da editora com a certeza de que Rui Veloso tinha condições para começar uma carreira na música e António Pinho, ao vê-la sair, teve a intuição de que o caso era sério. ‘Chico Fininho’ era um devaneio de Tê (de ‘tarado’ por música, como lhe chamavam os amigos), uma inflexão à sua criatividade numa língua em que, sendo a sua, não estava acostumado a compor. Quando António Pinho se encontrou pessoalmente com Rui Veloso, só lhe importava o que aquele rapaz e o seu “Bernie Taupin” conseguiriam fazer. Perguntou a Rui Veloso se só tinha mesmo uma canção em português, ‘Chico Fininho’; Rui Veloso respondeu que a canção era uma exceção, uma ‘maluquice’. Mas o produtor queria exatamente mais ‘maluquices’ como aquela. Rui Veloso teve de convencer Carlos Tê a compor outras canções para um álbum que para a Valentim de Carvalho só faria sentido em português. E conseguiu, sim. Carlos Tê escreveu em seis meses quase todas as canções de “Ar de Rock”.
Nem um ano depois de D. Emília Veloso ter entrado pelo gabinete de António Pinho com duas bobines debaixo do braço, o álbum estava lançado, sem que ninguém tivesse conseguido prever o sucesso que alcançaria. 30 mil cópias para “Ar de Rock”, 150 mil para ‘Chico Fininho’. Mas, sobretudo, a afirmação do rock cantado em português.
Ainda que não estivesse preparado para enfrentar o sucesso repentino, Rui Veloso trilhou um caminho sólido e referencial na música portuguesa. Fez muito, muito bom, mas a sua história, a nossa história comum, começou ali – naquelas bobines – com uma letra estrambólica e um ritmo que marcou um tempo novo.
A noite vem já e mal atina Ele é o maior da Cantareira Patchouly, borbulhas e brilhantina Cólica, escorbuto e caganeira.
Ouvir também: ‘Bairro do Oriente’. Uma balada sensual, com vocabulário extravagante (kamasutra, psiché, beduínos, ignomínia, querubim,...) e a confirmar que “Ar de Rock” não era de todo só composto pelo género que lhe deu nome.
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