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“Renaissance”, de Beyoncé: urgência no salão de baile

5 agosto 2022 18:56

Mário Rui Vieira

Mário Rui Vieira

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Jornalista

“Renaissance” é o primeiro álbum de Beyoncé Knowles-Carter desde “Lemonade”, de 2016

carlijn jacobs

Ao sétimo álbum, Beyoncé renasce como rainha suprema da pista de dança. Num exercício de arqueologia musical, homenageia os pioneiros e parte em busca da libertação

5 agosto 2022 18:56

Mário Rui Vieira

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Jornalista

Aprendemos há muito que Beyoncé Knowles-Carter não é artista de ficar deitada à sombra de louros do passado. Depois de se destacar como líder das Destiny’s Child, no final da década de 1990, a cantora texana atirou-se, sem receios, para um frutuoso percurso a solo que reconfirmou não só o seu talento vocal ímpar como uma tenacidade incomum enquanto performer. No ano em que se completam precisamente duas décadas desde a estreia em nome próprio, com a canção ‘Work it Out’, integrada na banda sonora do filme “Austin Powers em Membro Dourado”, Beyoncé dá seguimento a um processo contínuo de reinvenção e afirma-se como rainha suprema da pista de dança em “Renaissance”, sétimo álbum de estúdio a solo. Depois de anos a dominar as tabelas de singles com canções tão incontornáveis quanto ‘Crazy in Love’ (2003), ‘Irreplaceable’ (2006), ‘Single Ladies (Put a Ring on It)’ (2008) ou ‘Run the World (Girls)’ (2011), mostrou-se pronta a abraçar um público mais adulto quando, em 2013, apostou num registo homónimo imbuído de espírito feminista. Três anos mais tarde, em “Lemonade”, que fez correr muita tinta pelo facto de lidar, sem paninhos quentes, com a infidelidade do marido, o rapper Jay-Z, investiu ainda mais fundo em música com mensagem, assinando momentos tão assombrosos quanto ‘Freedom’, em dueto com Kendrick Lamar, ou ‘Formation’, um grito de afirmação da mulher negra. Este novo renascimento, depois de seis anos dedicada a projetos de menor fôlego — “Everything Is Love”, a meias com o marido; o estrondoso disco ao vivo “Homecoming”; e a banda sonora de uma nova versão cinematográfica de “O Rei Leão” —, é de um calibre diferente. Anunciado como primeiro ato de uma trilogia resultante de um surto criativo em período pandémico, “Renaissance” revela-se, acima de tudo, um convite à dança como forma de libertação, oferecendo música como antídoto para as injustiças sociais que a emergência global expôs. “A minha intenção era criar um lugar seguro, sem julgamentos. Um espaço onde possamos libertar-nos do perfeccionismo e não pensar demasiado”, explica a artista na mensagem que acompanha o disco, “um lugar onde possamos gritar e sentir a liberdade”.

Basta escutar os primeiros segundos de ‘I’m That Girl’, tema que abre as portas a “Renaissance”, para entendermos que este álbum é uma aventura singular na discografia de Beyoncé. É certo que, pontualmente, já tinha enveredado de forma mais direta pela música de dança — lembramo-nos, em particular, de ‘Sweet Dreams’, de um mal-amado “I Am... Sasha Fierce” (2008), e ‘Run the World (Girls)’, que ao fim de uma década continua a instigar verdadeiros motins coreográficos —, mas nestas 16 novas canções a artista norte-americana fá-lo como um intuito muito particular: homenagear “todos os pioneiros” e “todos os anjos caídos, cujas contribuições nunca foram verdadeiramente reconhecidas”. Agradecendo ao “Tio Jonny”, já desaparecido, vítima de sida, que diz ter sido a primeira pessoa a expô-la “a muita da música e cultura que serviu de inspiração a este álbum”, Beyoncé celebra movimentos artísticos com ligações umbilicais às comunidades negras e LGBTQ+, que desde sempre a colocaram num pedestal, recuperando para o presente géneros como o disco sound ou o house e a cena ballroom, de onde, no final dos anos 80, irrompeu o fenómeno vogue. A olho nu, talvez muitas dessas referências passem despercebidas, mas a artista consegue democratizar a pista de dança entre hinos de autoafirmação (“estou confortável na minha pele”, canta numa magnífica ‘Cozy’, com produção da artista transgénero Honey Dijon) e momentos carregados de luxúria (uma ‘Virgo’s Groove’ que nos traz os Daft Punk à memória ou a estrondosa ‘Thique’, provavelmente a canção mais arriscada do disco). O trabalho de ‘samplagem’ é meticuloso e para lá das citações mais óbvias — ‘Show Me Love’, de Robin S., no primeiro single, ‘Break My Soul’ e a canção-diamante ‘I Feel Love’, de Donna Summer, e Giorgio Moroder, em ‘Summer Renaissance’ —, há muito passado para descobrir (ou redescobrir) aqui. Encontramos uma referência a ‘Ooo La La La’, êxito de 1988 de Teena Marie, numa bamboleante ‘Energy’, e um sample direto de ‘Cocaine’, do rapper Kilo Ali, a encorpar ‘America Has a Problem’, contudo, talvez o tesouro mais precioso em que tropeçamos seja ‘Miss Honey’, da lendária artista drag nova-iorquina Moi Renee, desaparecida nos anos 90, que ajuda a transformar ‘Pure/Honey’ num dos pináculos criativos de “Renaissance”.