24 junho 2022 12:43

João Caçador e Lila Fadista: Fado Bicha. Antes de ser, “Ocupação” já era um marco na história da música portuguesa
rita carmo
Entre o íntimo e o político, a tradição e o desafio, nasce o grito de afirmação de Fado Bicha
24 junho 2022 12:43
“Não podemos deixar o passado de fora, até porque ele vive dentro de nós.” Por mais que olhemos para o álbum de estreia da dupla Fado Bicha como um exercício de rutura — de rutura com o silêncio, acima de tudo —, torna-se impossível negar a tradição e a história que carrega em si. Uma história mal contada e uma tradição que teima em excluir em vez de abraçar. Tudo isto é triste, tudo isto é fado. Talvez seja, mas tudo isto é também importante e vive bem para lá do fado. Há muito de admirável em “Ocupação”, mas aquilo que sobressai é a forma como Lila Fadista e João Caçador conseguiram encontrar uma linguagem própria, enraizada no caos, que entre o músculo panfletário e uma sensibilidade à flor da pele nasce para emprestar uma voz à comunidade LGBTQIA+, silenciada e arredada, ano após ano após ano. Claro que duas pessoas nunca poderão falar pelo todo, e haverá sempre quem renegará essa voz, mas a urgência da luta pela visibilidade, despida das pequenas grandes vergonhas que ensombram quem receia empunhar bandeiras, ganha cada vez mais fôlego. “Ocupação” chega com muita vontade de iniciar diálogos, mas com a certeza de que estes só poderão existir no dia em que se quebrar o manto de irresolução que cobre as dimensões trágicas das vidas do bailarino Valentim de Barros (‘Requiem para Valentim’), de Gisberta Salce (‘Medusa-me’) e de incontáveis anónimos. “Emociona-me pensar no passado”, confessa Lila Fadista, “e este álbum recorre ao passado de uma forma que, esperemos, possa reescrever aquilo que se diz sobre aquelas pessoas ou as suas memórias. Mas também olha para o futuro”.
As canções podem até partir de uma matriz comum, o fado, mas aquilo que as Fado Bicha criaram, com o apoio de uma produção maravilhosamente discreta de Moullinex, foi uma obra policromática. Tanto se deixam abraçar pelos ensinamentos de António Variações (‘Crónica do Maxo Discreto’ é um piscar de olho mordaz a uma homo/bi/pansexualidade hesitante) ou se enlevam na sedução das eletrónicas, numa monumental ‘Medusa-me’ em parceria com a dupla Trypas Corassão, como agitam a tradição fadista em ‘Lila Fadista’, uma releitura fantasiosa de ‘A Júlia Florista’, celebrizado por Amália Rodrigues. ‘Fado do Ciúme’, repensado ao piano e embrenhado em ambientes eletrónicos providenciados por Labaq, é o momento mais ao pé da letra do disco, resultando do último pedido de autorização para gravar um fado escrito por outrem. “Fomos confrontadas com recusas por parte das pessoas que detêm os diretos de autor dos fados que cantávamos desde o início”, lamenta a cantora, referindo títulos como ‘Conta Errada’ ou ‘Tive Um Coração, Perdi-o’. “Não foi uma surpresa, mas ficámos meio que sem chão.”