101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.
‘Foram Cardos, Foram Prosas’, Manuela Moura Guedes (1981)
“Quem é ela afinal?” – perguntou Francisco Sá Carneiro a Natália Correia. A poeta respondeu enigmaticamente: ‘é uma princesa nórdica a dormir num esquife de gelo à espera de um beijo de fogo’. Não estava, em 1976, num esquife de gelo, Snu Abecassis, mas recebeu o primeiro beijo do ardente líder político dias depois – consumando um amor real que poderia ser uma estória de ficção. A flama entre Francisco e Snu duraria quatro anos, mas a compulsão pela política ativa tinha sido inculcada desde então em Natália Correia - até quase ao final da sua vida. Interveio durante muitos anos na Assembleia da República, com uma presença distintiva do muito que não se dissera em ditadura e que era urgente dizer-se. João Morgado, deputado do CDS, defendia, em 1982, a propósito da despenalização do aborto, que o ato sexual só deveria ser consumado com o intuito de procriar; Natália Correia respondeu-lhe em verso, de improviso, tarimbada a trocar ofensas com Ary dos Santos do mesmo modo, que “Sendo pai só de um rebento / lógica é a conclusão / de que o viril instrumento só usou - parca ração! - uma vez. / E se a função faz o órgão - diz o ditado - / consumada essa exceção, ficou capado o Morgado.”
Não era comum (ainda que vital) que mulheres interviessem na Assembleia desta forma, defendendo causas a que os conservadores não estavam acostumados. Manuela Moura Guedes foi deputada à Assembleia, não tendo conseguido ser uma voz disruptiva e, sobretudo por isso, saído no ano seguinte. Não conseguiu destacar-se na política, como conseguira Natália Correia, e essa matriz nunca foi a matriz de Manuela Moura Guedes – como o foi na música, no jornalismo e na vida.
Em 1981, havia poucas mulheres no rock português – a destacar Midus, Lena D’Água e Adelaide Ferreira. Manuela Moura Guedes fez carreira breve na música, um interlúdio do que era e viria a ser o seu percurso no jornalismo – mas com uma grande canção, uma canção de estrondo, perdurando como um dos símbolos daquele que foi o período pujante do rock português.
O início dos anos 80 foram anos probatórios de uma revolução que se avizinhava – uma revolução pós-revolução. Uma revolução cansada da revolução que fora a implementação da democracia em Portugal. Em Manchester ou em Lisboa, na rádio ou nos jornais, numa fábrica ou numa escola, em casa ou num estúdio de gravação – todos quiseram contribuir para inferir essa revolução pós-revolução. Em 1980, a agitação musical em Portugal fez-se de blues, de ganga, de pose agressiva, de baixos amplificados e de baterias roucas. Houve vários rocks dentro do rock português. O mais elegante e mais descomplexificado veio de Manchester. Veio dos Joy Division. Veio do álbum “Closer”, editado, postumamente, dois meses depois de Ian Curtis ter partido.
António Variações tinha em Deolinda de Jesus, sua mãe, e em Amália Rodrigues as suas referências maiores. Mas Variações não queria cantar o fado, trazia antes Amares e Amsterdão na sua génese, como se fosse possível (e foi-o) conjugar a música tradicional com a vanguarda musical europeia. Fez sentido por isso que, tendo lido um artigo de Miguel Esteves Cardoso no Se7e – em que identificava os traços comuns entre o fado e os Joy Division -, tivesse pedido ao produtor Ricardo Camacho, compère de Luís Filipe Costa no ‘Rock em Stock’, na Rádio Comercial, para produzir ‘Povo que lavas no rio’ tal como MEC descrevia. Claro que os músicos dos Heróis do Mar conseguiram fazer a vontade a António Variações e ‘Povo que Lavas no Rio’, versão Variações, caso Ian Curtis conseguisse soletrar a letra de Pedro Homem de Mello, poderia ter sido uma canção dos seus Joy Division.
Miguel Esteves Cardoso conseguiu insinuar Manchester, onde estudara e criara fundamentos sonoros, na nova música que se fazia em Portugal – desconstruindo Chicletes, Cavalos de Corrida ou Patchoulys. O rock que idealizava deveria poder também viver dos Echo & The Bunnymen, The Durutti Column, The Sound ou, claro, dos Joy Division. Empreendeu uma nova atmosfera: ele, Ricardo Camacho, António Sérgio, Pedro Ayres Magalhães e outros queriam a música portuguesa insuflada de uma nova linguagem que não se cingisse a correr nas veias ‘sangue velho dos avós’, como amargamente se insurgia José Régio em 1926. ‘Amavam o longe e a miragem’ e pouco lhes dizia a fórmula que regia então o mercado discográfico. Um ano antes de ter fundado a ‘sua’ Fundação Atlântica, pastiche da Factory Records (editores dos Joy Division e mais tarde dos New Order), de cujo fundador, Tony Wilson, era amigo, MEC viu em Manuela Moura Guedes uma figura capaz de objetivar a influência que queria imprimir na música portuguesa. A (já então) jornalista deixara-se também enfeitiçar pela sonoridade de Manchester, pelo vigor de Ricardo Camacho e pelo talento de MEC.
‘Foram Cardos, Foram Prosas’ foi escrita de supetão, sob pressão, já depois da música esculpida por Camacho e adornada por Toli César Machado e Vítor Rua. Todos a postos no estúdio, ainda sem se saber que palavras iriam ser intercaladas na melodia. MEC chegou enfim, com um maço de papéis debaixo do braço, escrevinhados à mão, tendo retirado uma das folhas com as palavras – com inspiração na lírica provençal, nas cantigas de amigo (Há madressilvas aos pés / E águas lavam o rosto / Dedos que tens em rés pés / Oh, meu amante deposto) - que iriam compor a canção. Manuela Moura Guedes começou de imediato a gravar e ‘Foram Cardos, Foram Prosas’ saiu assim mesmo – perfeita. À la Joy Division – nem era para ter soado diferente; o influxo de Manchester era intencional – de uma Inglaterra bucólica, que todos os que fizeram esta canção souberam adequar à melancolia lusitana.
Editado pela Valentim de Carvalho, foi um dos singles mais vendidos desse ano, com privilégio de um videoclipe (taciturno, como se esperaria). Perdura hoje como uma canção não datada, elegante, com uma aura enigmática. Foi um tempo bom para Ricardo Camacho e Miguel Esteves Cardoso. A Fundação Atlântica estava à espreita (no ano seguinte) – para tentar inaugurar uma forma de nostalgia que ainda não tinha sido criada. ‘Foram Cardos, Foram Prosas’ foi o início de uma confluência criativa que conseguiu pôr em alerta o mainstream do rock que se fazia e que se viria a fazer em Portugal.
Não foram poemas nem rosas
Que colheste no meu colo
Foram cardos, foram prosas
Arrancadas do meu solo
Ouvir também: ‘Fortuna É’ (1982). Do seu único álbum. As letras e as músicas foram todas compostas por Rui reininho, Toli César Machado e Vítor Rua, integrantes dos GNR.
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