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101 canções que marcaram Portugal #82: ‘Cristina (Beleza É Fundamental)’, pelos Roquivários (1982)

Roquivários
Roquivários

O boom do rock português fez-se de atitude, letras inconsequentes e refrões orelhudos. Era o tempo da malta da pesada, como lhes chamava Júlio Isidro. De músicos guedelhudos vestidos de ganga e um público ávido de vitalidade e farra. ‘Cristina (Beleza É Fundamental)’ foi o grande êxito dos Roquivários e é a 82ª de 101 Canções que Marcaram Portugal

101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.

‘Cristina (Beleza É Fundamental)’, Roquivários (1982)

Pergunta-se hoje, 40 anos depois, como em tão pouco tempo foi possível um movimento ter marcado tanto a música produzida em Portugal. O rock português durou pouco mais de dois anos, mas é curioso perceber-se o que esteve na sua origem e o seu fim tão súbito. O rock em Portugal nascera 20 anos antes, em 1961, e manter-se-ia vivo até ao advento da democracia. Bandas como Genesis, Yes, Creedence Clearwater Revival ou Deep Purple serviram de referência psicadélica, sinfónica ou progressiva a bandas portuguesas dos anos 70, o que demovia músicos menos virtuosos de se aventurarem nesta vaga complexa. O punk e a new wave vieram encorajá-los a produzir sonoridades mais descomplicadas e neste tempo nasceu a maioria das bandas que iriam corporizar o boom do rock português, iniciado com o álbum “Ar de Rock”, de Rui Veloso.

Maria de Jesus tinha um atelier de estética, área em que se formara, e a sua existência poderia cingir-se a desempenhar essa aptidão. O destino, todavia, reservaria a Maria de Jesus uma outra atitude – já não como Maria de Jesus, mas como Midus – e seria essa atitude que a fariam singular no período que estava a nascer. As cassetes entregues pela mãe de Rui Veloso a António Pinho (sondando se o seu filho tinha talento) iriam precipitar o advento desta nova vaga do rock e, sem o saberem, teria de se aproveitar, como se o tempo estivesse cronometrado, a aposta que as editoras e o público exigiam. Era tempo de formar os Rock&Vários, um nome que retratava tudo o que se acomodava na formação musical dos seus membros – pop, rock, reggae, ska ou jazz. Roquivários, ainda que não abdicando da sua genética, soava bem mais vigoroso e cru – bem mais rock&roll, afinal.

Os Roquivários foram uma das bandas mais destacadas no menu que o rock em Portugal serviu, ainda que tivessem apenas uma grande canção para contribuir. Nada a que o mercado não estivesse acostumado: o rock português não se fez só de Rui Veloso, Táxi ou Xutos e Pontapés. Fez-se de atitude. De amadorismo. De grupos de baile reciclados. De grupos de rock progressivo reciclados. De siglas com reminiscências do PREC (CTT, GNR, UHF, TNT). De festivais. De concursos. De letras inconsequentes e refrões orelhudos. De uma nova linguagem – como um digestivo para a música de intervenção. Era o tempo do rock da pesada, como lhe chamava Júlio Isidro; era o tempo da ‘Febre de Sábado de Manhã’, na Rádio Comercial. Foi o tempo dos primeiros videoclips – para promover na tevê o trabalho do movimento musical emergente. Foi o tempo das revistas de música desempoeiradas, arrojadas – sorvendo uma geração MTV onde tudo cabia. Em Portugal, cabia sobretudo músicos guedelhudos vestidos de ganga e um público ávido de distorção, vitalidade e farra.

Tinham uma grande canção, os Roquivários. Um grande refrão, quisesse este o que quisesse dizer. Uma grande vocalista, formada na singularidade da americana Suzi Quatro – também mulher, também baixista. Midus tinha estado dois anos nos Estados Unidos e trouxera a têmpera dos B-52’s, dos Pretenders, mas também do groove de Santana e dos Cream. Seria uma das poucas mulheres vocalistas do rock português e a única a eleger o baixo como instrumento. Até o filão se esgotar, a festa foi de arromba. 

Cristina, não vais levar a mal, mas beleza é fundamental. Era só isto – que era a substância que importava. Uma ganda malha. Olhar decidido de Midus. Pose rebelde de toda a banda. Instrumentos tocados com ímpeto. Foi das canções que mais bem representou este período. Fez os Roquivários correrem o país de lés-a-lés, o público ansiando por deseletrificar o corpo ao som de ‘Cristina’ e acompanhar o refrão com fervor gutural.

A partir da gravação do segundo álbum, ainda o boom estava a meio, os Roquivários, agravados por quezílias internas, pouco mais tinham a dizer nesta linguagem. Ansiavam já por novos conceitos – que não cabiam na natureza de cada um dos integrantes. Os Roquivários eram um todo; o todo passou a ser uma soma de partes. E terminaram. Esfumaram-se num ano em que a maioria das bandas ainda acreditava que o fenómeno iria durar.

Midus continuou a fazer a pop com a qual se sentia identificada – em Londres, ao lado de Anne Clark, Melanie C., Tanita Tikaram, Jay Smith, Billie Myers ou Bryan Ferry. Passou a tomar o baixo como sua extensão, bem mais do que a voz. Os outros membros dos Roquivários dedicaram-se a expressões musicais que não cabiam numa banda rock e os Roquivários passaram a ser um parágrafo no seu percurso.

Do boom do rock português, ficaram os melhores – e alguns dos melhores tiveram de domar a sua fibra para continuarem a sobressair no mercado que escolheram. Não ficaram os one-hit wonders – ainda que com muito bom para dizer nesses êxitos efémeros. Hoje resta apenas um punhado, que se modelou às exigências cíclicas do mercado e do público. Os Roquivários permanecem na memória como uma das bandas mais representativas do que foi aquele início dos anos 80, um carrossel de fantasias e de prenúncio de um tempo novo.

Dizes que te guardaste só para ele
Ficaste sempre à espera
Estás cansada de tanto tempo esperar
Agora és uma fera

Ouvir também: ‘Totobola’ (1981). Lado A de um single que repescou uma das canções do primeiro álbum dos Roquivários. Este ska tinha a voz de Mário Gramaço e não de Midus. Ficaram célebres os versos “Dizem que o treze é o número do azar, mas este jogo dá dinheiro até fartar“.

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