Sim, Kanye West já foi um ser humano. O que aprendemos com “jeen-yuhs”, o documentário que o rapper não quer que vejamos
Kanye West em “jeen-yuhs” / foto: Netflix
Acaba de chegar a primeira parte da trilogia da Netflix que conta a história de Kanye West desde o princípio. Um retrato de alguém que da primeira vez que é filmado se apresenta como “o único”, mas que reencontramos mais humano do que nunca. Contamos o que vimos
Em ‘I Love Kanye’, tema do álbum de 2016 “The Life of Pablo”, o controverso rapper que o mundo mais adora odiar rimava algo como “Tenho saudades do velho Kanye / O Kanye que cortava velhos discos de soul, o Kanye que vinha de Chicago / Odeio o novo Kanye, o Kanye maldisposto / O sempre mal educado Kanye, o Kanye que está sempre nas notícias”. No início do milénio, entre a sua Chicago natal e a Nova Iorque palco de todos os sonhos, o velho Kanye – que na verdade era ainda o jovem Kanye: em 2000 o aspirante a super-estrela contava apenas 23 anos – já se fazia acompanhar por uma equipa de documentaristas convencido de que a história que ali começava a desenhar-se seria um dia digna de nota. Pois bem, a estreia do primeiro episódio de “jeen-yuhs: Uma Trilogia Kanye”, que sucedeu esta semana na plataforma Netflix, diz-nos que, de alguma maneira, o miúdo de apenas 20 anos que conseguiu produzir um terço do multiplatinado álbum “Blueprint”, do então já gigante Jay-Z, conseguia de facto prever o futuro. Donda West, a mãe do rapper e produtor, professora de inglês desaparecida em 2007, explica nas imagens captadas pelos realizadores Coodie & Chike que as certezas do seu rebento podiam soar a arrogância, mas que na verdade eram pura determinação. Tinha razão.
“jeen-yuhs” (percebem, certo? geen-ius = genius) é tanto a história de Kanye West quanto a do homem por trás da câmara, Coodie Simmons, um aspirante a comediante de stand-up de Chicago que cocriou o programa de culto “Channel Zero” em meados dos anos 90, um espaço que deu muita atenção à cena musical de Chicago (e mais além) e por onde passaram estrelas como os Run DMC, Snoop Dogg ou KRS One. É na qualidade de repórter do “Channel Zero” que Coodie vai à festa de Jermaine Dupri, um artista e produtor já estabelecido que para o seu aniversário convida toda a gente, incluindo um jovem e ainda desconhecido Kanye West (que tinha acabado de produzir vários temas para o álbum dos Harlem World, grupo que lançou o seu único trabalho em 1999, na So So Def de Dupri). Quando se apresenta para a câmara de Coodie, Kanye faz questão de explicar que o seu nome significa “O Único” em swahili. Com pouco mais de 20 anos, o ainda desconhecido produtor que conseguiu vender alguns beats para um álbum que também tinha nos créditos de produção gente como os Neptunes de Pharrell Williams, Dame Grease ou o próprio Dupri, apresenta-se na primeira vez que é filmado como “o único”. Coodie percebeu logo aí que estava ali uma história que iria merecer ser contada.
Este primeiro episódio de “jeen-yuhs” estreou no festival de Sundance, ocasião em que os realizadores – a Coodie Simmons haveria de juntar-se nesta aventura Chike Ozah, realizador que no arranque do milénio era responsável pelo programa “You Hear It First” da MTV, que deu alguma da primeira exposição nacional a Kanye – fizeram questão de alertar o público: “Tenham em conta que este é um filme baseado na fé”. A fé a que Coodie e Chike se referem foi a força que os levou a investirem 20 anos do seu tempo neste projeto, seguindo a carreira de Kanye, do zero aos cem, do anonimato absoluto à condição de revolucionário ícone cultural. Ainda assim, a fé que Coodie e Chike depositaram no projecto não parece ter sido correspondida por Kanye. Em janeiro, na sequência da ante-estreia em Sundance, o rapper veio a público, usando as suas plataformas sociais, para deixar claro que não estava propriamente incensado com o projeto: “Tenho que ser eu a aprovar a montagem final deste documentário antes que estreie na Netflix… Abram a sala de montagem imediatamente de forma que eu possa tomar conta da minha própria imagem”.
Não se sabe exactamente o que pode estar a incomodar o Kanye West maldisposto de 2022. Entre o manancial de material que compõe este documentário em três partes (montadas a partir de mais de 320 horas de filmagens!) haverá, certamente, aspectos da vida do “velho Kanye” (isto é, do jovem e remoto Kanye) que podem incomodar o novo Kanye (isto é, o mais maduro e actual Kanye). Mas não saberemos – porque nem a Netflix, nem os realizadores parecem ter anuído à exigência do rapper – se tendo sido autorizado a usar a sua “tesoura”, o ex-candidato à presidência teria retirado a cena em que num quiosque de Nova Iorque confessa para a câmara que tem “um pequeno vício” antes de pedir uma cópia da revista erótica “Black Tail”, equivalente da “Playboy”ou “Penthouse”, mas focada na beleza feminina afro-americana; ou se teria retirado o segmento em que Scarface vai ao estúdio para ouvir a maquete de ‘Jesus Walks’ – que se revelaria como um dos mais fortes temas de “The College Dropout”, o álbum de estreia que “Ye” lançou em 2004 – e se vai embora sem ter sido suficientemente impressionado para deixar um “guest verse” na faixa; ou ainda se teria optado por deixar de fora o seu encontro com Dug Infinite, produtor e rapper que lhe dirigiu pouco simpáticas rimas por nítidos ciúmes do movimento ascendente da sua carreira, mas a quem o futuro autor de “Through The Wire” quase parece ir pedir desculpa quando o encontra na rua.
Na verdade, e julgando por este primeiro episódio, “jeen-yuhs” devolve-nos o Kanye humano, o Kanye que embora já equipado com um desmedido ego, soube usar essa característica como a determinante força que o impôs como figura incontornável da música popular das últimas duas décadas, o Kanye que entra de rompante nos escritórios da Roc-a-Fella de Jay-Z com a sua equipa de filmagens e tenta, sem sorte aparente, impressionar os executivos presentes metendo a tocar uma maquete de ‘All Falls Down’, o incrível tema de “The College Dropout” com participação de Syleena Johnson, que um par de anos mais tarde haveria de escalar até ao top da tabela de rap forçando até a entrada no Top 10 da chart principal da Billboard. Ou ainda o Kanye que se alonga em cândidas conversas com a mãe, que recorda o filho que já jovem adolescente tentava mostrar ao mundo o seu talento quando participava em concursos de escola e imitava o Stevie Wonder de ‘I Just Called to Say I Love You’. A fé a que a dupla de realizadores se referia na estreia em Sundance era já abundante no discurso da senhora Donda, capaz de empurrar o filho para cima mesmo quando o mundo parecia mais interessado em mantê-lo em baixo.
Para lá do importante foco nas raízes do fenómeno/furacão Kanye, este documentário oferece ainda um dos mais vívidos retratos do hip hop num momento de transformação, saindo dos anos 90 de intenso fulgor criativo para se afirmar como a mais vigorosa força do mercado no novo milénio. O filme de Coodie & Chike mostra de forma muito clara como funcionava o hustle neste tempo: não era apenas uma questão de ficar no estúdio a aprimorar versos ou batidas e esperar que o mundo percebesse, era necessário também circular com empenho entre escritórios de editoras e estações de rádio e TV, entre bastidores de concertos e festas de estrelas já estabelecidas, fazendo contactos constantes, afirmando sem rodeios quais os argumentos que cada aspirante a estrela tinha para apresentar num já muito povoado e competitivo ecossistema. Kanye esteve lá e fez isso tudo. E felizmente para nós havia alguém com uma câmara interessado em documentar esse acidentado caminho.