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Miramar: “Fomos bafejados pela magia” Uma entrevista para quem gosta muito de (ouvir) guitarras

6 fevereiro 2022 11:00

Peixe e Frankie Chavez formaram o grupo Miramar em 2017

Donos de carreiras longas e ricas, Peixe (Ornatos Violeta, Pluto) e Frankie Chavez conheceram-se por acaso e a magia aconteceu de forma instantânea. “Miramar 2” é o segundo disco da dupla, que falou à BLITZ sobre tocar com Mário Laginha, fazer uma versão de Conan Osiris e a sorte de se terem encontrado

6 fevereiro 2022 11:00

Foi há cinco anos que Peixe, conhecido pelo seu trabalho nos Ornatos Violeta, Pluto ou Zelig, conheceu Frankie Chavez, homem de um sólido percurso, sobretudo a solo. À química que de imediato uniu os dois guitarristas seguiram-se três concertos conjuntos no festival alentejano Guitarras ao Alto, no Alentejo, e o primeiro disco, um belíssimo álbum que batizaram com o mesmo nome da dupla: Miramar. Três anos depois dessa estreia, Peixe (que recentemente voltou aos palcos com os Pluto, que formou com Manel Cruz após o fim dos Ornatos Violeta) e Frankie Chavez, que este ano lançará um novo disco a solo, voltam à carga com a música onírica, contemplativa e aventureira que brota dos seus espíritos inquietos. “Miramar 2”, já disponível, foi o pretexto desta conversa.

Este disco começou a nascer ainda antes da pandemia. Custou-vos ter de esperar até agora para lançá-lo?
Frankie Chavez:
Foi natural. Tivemos uma primeira ida ao estúdio em junho ou julho de 2020, na altura do primeiro confinamento. Em dezembro voltámos para acabar algumas coisas… foi um disco gravado com tempo. Não foi nada apressado, o que foi bom, porque deu para deixarmos respirar o que tínhamos feito na primeira ida ao estúdio. E depois terminámos com a gravação do [pianista e compositor] Mário Laginha em janeiro.

Como surgiu essa colaboração com o Mário Laginha, no tema ‘Recolher’?
FC: Tinha-me cruzado com ele um ano antes, no festival Braga Blues, no qual atuaram os Budda Power Blues, eu e o Mário Laginha. Foi aí que nos conhecemos pessoalmente, mas já era fã dele já muito tempo. Em junho, eu e o Peixe estávamos a preparar os arranjos de várias músicas e a pensar no que ficaria bem nesse tema, o ‘Recolher’. Lembrámo-nos do Mário e enviámos-lhe mensagem. Dois dias depois, ele respondeu a dizer que tinha muito gosto em fazer a participação. As agendas também ajudaram, pois na altura ninguém tinha muitos concertos. Estava tudo a trabalhar em casa, pelo que foi fácil encontrar tempo e disponibilidade para nos reunirmos.

E foi estranho gravarem com um terceiro elemento, habituados que estão a trabalharem só os dois?
FC:
Não, foi bom ter sangue novo.
Peixe: E nessa altura já tínhamos gravado com o [percussionista] António Serginho, que participa em dois temas, ‘Port Royale’ e na versão de ‘Celulitite’ [de Conan Osiris].
FC: Estranho não foi, mas foi engraçado Nós já tínhamos acabado as sessões e o Mário preparou a parte dele e veio mais tarde, uns meses depois, ao estúdio da Orquestra Jazz de Matosinhos fazer a parte dele. Para nós, foi maravilhoso vê-lo a interpretar o tema à sua maneira e perceber o que tinha preparado antes de vir para estúdio. E foi engraçado, porque ele fez uns seis takes e o primeiro foi o que ficou melhor. Foi o mais imediato. Todos eram bons, mas realmente o primeiro veio com uma expressão incrível e foi o que quisemos usar.

Sei que não gostam muito de dar títulos aos vossos temas instrumentais, mas ‘Recolher’ foi inspirado pelo recolher obrigatório?
FC:
Por acaso não! [Nasceu] antes da pandemia e teve que ver com o recolher, mas por já ser muito tarde. Eu tinha aquela ideia que não me saía da cabeça, gravei-a no telemóvel e pensei: “bem, é altura de recolher”, e fui dormir. Pelo menos comigo, os títulos das músicas [surgem] quando tenho de as registar com nome, e é sempre com a primeira palavra que me vem à cabeça. A ‘Lisboa 2020’ chama-se assim porque foi gravada em 2020 e tem a guitarra portuguesa, que é uma guitarra de Lisboa. Até lhe queria ter chamado ‘Lisboa – Porto’, pela dualidade das cidades muito presentes em Miramar. Foi um título de rascunho que não evoluiu para algo melhor.

Quantas guitarras usaram neste disco?
P: Usámos guitarras acústicas folk, de cordas de aço; a guitarra resonator, que é uma guitarra de caixa totalmente metálica e que foi usada na ‘Celulitite’; a guitarra Weissenborn, que é um lap steel acústico (à la Ben Harper); o lap steel elétrico, mais convencional; a guitarra elétrica hollow body e a guitarra portuguesa.

Na vossa versão, a ‘Celulitite’, do Conan Osiris, parece quase um tema folclore português… Quiseram mostrar esse lado da canção?
P:
Não houve intenção nenhuma, foi uma coisa natural e um momento de diversão, lúdico, que fomos criando nos ensaios de som. Quando estivemos no festival de Safira, que é uma terra entre Évora e Montemor-o-Novo – e onde fizemos a última música do disco, daí chamar-se ‘Safira’ – o Conan estava a ficar muito conhecido. Já tínhamos falado dele: “é uma coisa esquisita, mas engraçada…” No tal festival, estávamos na casa do organizador e alguém pôr a tocar a ‘Celulitite’, com aquela frase “oh mor, solta os cães e traz o lixo”. Eu achei aquilo delicioso. Estávamos com o Jorge Quintela, o realizador que trabalha connosco, e pusemo-nos a escrutinar o disco, a ver os pormenores dos arranjos… e achámos um piadão à música. A partir daí, no fim dos ensaios de som, quase como brincadeira eu começava a tocar melodia. E quando fomos fazer um showcase na redação do “Jornal de Notícias”, onde há muita gente a trabalhar, estávamos a experimentar som e de repente começámos a ver que o pessoal, que estava a ignorar as nossas músicas todas (risos), começou todo a abanar a cabecinha e a bater o pé. E pensámos: “Se calhar devíamos fazer uma versão disto!” Mas não teve nada de conceptual.

No booklet do disco surge uma imagem da icónica capela do Senhor da Pedra, na praia de Miramar, em Vila Nova de Gaia. Essa envolvência do lugar que dá nome ao vosso disco acaba por inspirar-vos na hora de fazer música?
FC: Esse lugar é especial desde a génese daquilo que depois se tornou a banda Miramar. Nós preparámos repertório para um festival com três datas [o Guitarras ao Alto, em 2017], e foi em Miramar que o fizemos. Logo aí sentimos uma energia ótima, seja pela casa onde ficámos, seja pelo sítio, por ser perto do mar… Acho que fomos bafejados por uma magia que fez com que continuássemos a tocar e que as coisas fluíssem e soassem bem. A nossa abordagem às canções um do outro foi muito positiva e construtiva. Como há um estúdio em Miramar, foi lá que acabámos por fazer a gravação, o que também nos inspirou bastante, porque é tranquilo e perto do mar. Entre sessões, caminhávamos ao longo do mar… Toda essa envolvência acaba por nos inspirar.

O primeiro disco nasceu do vosso encontro e da vossa amizade. Quando é que perceberam que vinha aí um disco novo, um segundo capítulo?
P: Nós continuámos logo a trocar ideias como se não tivéssemos gravado nada… Volta e meia, quando nos encontrávamos para preparar um concerto, saía sempre uma ideia de uma jam. Já o primeiro disco tinha ido para a fábrica, mas ainda não tinha saído, e nós já tínhamos cinco ideias novas. “Olha esta!” “Que pena não termos posto, fica para a próxima.” Nunca houve uma crise criativa. O mais difícil é a questão logística, de marcar as tours, fazer a música e o design… A parte criativa é muito prazerosa e rápida em nós.
FC: E natural, porque temos a sorte de, cada vez que nos encontramos para preparar um concerto, haver sempre espaço para uma ideia nova. O processo criativo está sempre presente, nunca é um esforço, não temos de combinar para fazer alguma coisa.

É a isso que o Peixe se refere no texto que acompanha o disco, quando diz que as ideias brotam dos vossos corpos musicais?
P:
Quando as pessoas estabelecem qualquer tipo de relação, de amizade ou amorosa, há sempre uma energia espontânea, intuitiva ou inexplicável, que faz com que a coisa funcione ou não. Há um estímulo abstrato que não se explica bem e torna a relação exponencial. Foi o que senti com os Ornatos Violeta, os Zelig, os Pluto… sempre que as coisas funcionavam bem, eu sentia isso. Só pelo facto de as pessoas estarem juntas. É uma coisa muito bonita e exponencial, em que 1 mais 1 não são 2… não soma, multiplica. De repente tens um potencial enorme nas mãos, e isso pode não acontecer mesmo entre pessoas interessantes ou que sejam bons músicos. Podes juntar dois músicos excelentes, mas que juntos não estabelecem essa química. O nosso é um desses casos felizes, em que tudo aconteceu naturalmente. E é engraçado ir confirmando isso. O Frankie é uma pessoa que conheci recentemente: em 2017, há cinco anos. É engraçado ver que, à medida que vamos envelhecendo, esse tipo de relação e magia continua a acontecer.

Também este ano vão lançar um single na série Esfera, que vos junta ao JP Simões…
P:
Aquela pergunta que fizeste, se foi estranho ter outro instrumento… A música com o JP Simões marcou-nos mais. Não diria que houve estranheza, mas pela diferença de, pela primeira vez, nos ouvirmos com um vocalista, apesar de a intervenção dele ser mais numa linhagem spoken word.

Ele cantou, ou falou, em inglês ou em português?
P: Em inglês. Há uma história curiosíssima sobre a forma como ele descobriu o texto. Ele veio [para o Porto] na véspera da gravação e estava preocupado porque sentia que ainda não tinha descoberto o texto ideal para cantar sobre a base que lhe enviámos. Andava a escrever a história de uma personagem qualquer, um zombie cor-de-rosa. (risos) O que é curioso é que ele trouxe as folhas de rascunho – folhas em que imprimiu coisas que não eram importantes, e nas quais aproveitava para escrever… No dia em que ia gravar, não estava satisfeito e virou uma das folhas ao contrário. Então viu que ali, naquela folha de rascunho, estava impresso um texto em inglês que já tinha feito há imenso tempo. E reparou que esse texto…
FC: Encaixava na perfeição.
P: Então usou o texto que, por acaso, estava no verso! E encaixou lindamente. É uma história em inglês, que fica ali mesmo bem.

Frankie, já sabe quando sairá o seu novo disco a solo, do qual falou no ano passado, no podcast Posto Emissor?
FC: Depois do verão. Quero fazer as coisas com calma. A fase de misturas começa em fevereiro e depois vem tudo aquilo que está ligado a um disco: promoção, fazer outros conteúdos, como vídeos… Tenho estado mais focado em Miramar e em coisas pessoais. Mas não tenho pressa. Miramar agora está a avançar… É ir com o flow.