6 de abril
O humano número 486 morreu num hospital de Madrid.
Listas de mortos.
Listas de livros escolhidos.
Lista de locais a visitar depois da peste, quando se afugentar a ansiedade e não os corpos.
Dez páginas no jornal com retratos de pessoas com duas datas.
Jocob Steinberg, poeta israelita: “nós parecemos esta noite uma cidade que arde”.
Preciso de gaze para as feridas de humanos e animais e consulto um link.
“https://www.mifarma.pt/gasas-suaves-hansaplast-10-uds-85m-x-5cm”.
Nos detalhes o link diz o seguinte:
“Ao olhar, as toupeiras indicaram limpar e coletar feridas.”
Mais à frente: “Invólucro estéril individual.”
Depois, o decisivo. Como usar:
“Limpe a área circundante cuidadosamente antes de aplicar o olhar.”
“Use ou cure o olhar Hansaplast para fixar um olhar em nenhum lugar.”
“Aplique um novo, acho que menos cabelo diariamente.”
Todas as instruções deviam ser assim.
Instruções de um maluco para outros malucos.
Gosto dos tradutores automáticos que entram na alta estética sem o saber.
“Limpe a área circundante cuidadosamente antes de aplicar o olhar.”
Limpar bem a superfície de uma pata ou de um braço humano.
Limpar cuidadosamente e depois aplicar o olhar.
Com uma certa força.
Tento isso com a pata da Roma.
Medicina que limpe cuidadosamente a área em volta e depois aplique o olhar.
Os antigos eram homens que aplicavam o olhar.
Não resultava.
A minha amiga grega conta-me que há dias, no acampamento para refugiados em Ritsona, uma mulher deu positivo no teste do coronovírus quando foi dar à luz num hospital público.
Só aí se percebeu que muitos no campo estavam infectados.
Quarentena. O bebé revela coisas.
O bom soldado Svejk e a descrição do manicómio:
“um inventor muito instruído (…) “que passava a vida a tirar macacos do nariz e só dizia uma vez por dia: acabei de inventar a electricidade.”
O anúncio delirante e mal traduzido da gaze fez-me lembrar este louco que inventava a electricidade uma vez por dia.
Depois disto acabar, o exterior vai estar repleto de loucos, inventores diários da electricidade.
Em Itália o governo aprovou a passagem de ano de todos os alunos.
Na Suécia teme-se milhares de mortes por covid-19.
Alguém pergunta: se perdesses o desejo, ias procurá-lo?
Onde?
Alexander Kluge fala de uma boneca "onde os olhos" indicam as horas.
Ver as horas certas pelos olhos da boneca.
Ver as horas certas pelos olhos de alguns homens velhos na televisão.
Em certos momentos, os relógios parecem deixar de funcionar.
Apenas funcionam os olhos humanos.
Em Itália, todos os que andam na rua têm as horas certas nos olhos.
Em Espanha também.
E noutros sítios. Nos Estados Unidos.
Recebo um link: carrega-se num ano e aparecem as músicas mais ouvidas nesse período.
Chama-se “máquina de nostalgia”.
Uma máquina coletiva de nostalgia.
Jung explícito e em dó ré mi.
Clico em 1986.
As escolhas são péssimas.
De Phil Collins a Samantha Fox.
Por vezes é melhor perder a memória: memória 0.0.
Há dois dias na Índia: “Milhares de pessoas em fuga para fugir à fome.”
As fábricas fecharam, quase tudo de quarentena.
Milhares abandonam a capital e regressam à aldeia.
Mas não há autocarros suficientes.
Relatos no The Guardian. Muitos tiveram de regressar a pé.
200 quilómetros desde Nova Deli.
“A estrada parecia infindável e os meus filhos faziam pequenas pausas para dormir no chão”, contou Mamta.
A única coisa que nos fez continuar foi o facto de não termos outro lugar para ir, disse Mamta.
A única coisa.
“A cada dia um renascer mais profundo" dizia o pintor, citando um mestre.
No dia seguinte, no mesmo sítio, porém mais afundado.
Só com a cabeça de fora.
Assim se aprende: só com a cabeça de fora.
Boris Johnson foi internado nos cuidados intensivos.
O ministro dos Negócios Estrangeiros, Dominic Raab, vai substituí-lo.
Volto ao livro.
“Dê cinco passos para a frente e cinco passos para trás”, diz um médico no manicómio do bom soldado Svejk.
É um teste para ver se um homem é louco ou não.
Tento fazer isso.
Todos devíamos fazer isso.
Cinco passos para a frente e cinco passos para trás para ver se ficamos no mesmo sítio.
Não ficamos no mesmo sítio.
Já não é possível ficar no mesmo sítio.
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