Diário da Peste. Hoje troquei mensagens com muitas pessoas
5 de Abril
Hoje troquei mensagens com muitas pessoas.
Muitas pessoas dessas muitas pessoas estão a quebrar.
Muitas pessoas dessas muitas pessoas depois de quebrar vão de novo estar fortes.
Mas algumas dessas muitas pessoas não.
Essas algumas pessoas vão quebrar e ficar quebradas e vai ser difícil voltar à casa de partida.
Já não há casa de partida.
Alguém destruiu essa hipótese do recomeço a zero.
Boris Johnson foi internado no hospital e a Rainha lembrou a separação de pais e filhos na Segunda Guerra Mundial.
A NBA pondera cancelar a época e um incêndio florestal está a aumentar a radiação em Chernobyl.
Perto do Cais do Sodré, em Lisboa, dizem-me que os sem-abrigo correm quando vêem uma pessoa.
Porque é muito raro verem uma pessoa.
E pedem dinheiro ou comida.
Os dealers que vendem droga fajuta agora também correm atrás dos clientes para que eles percebam qual é o seu produto.
Já não sussurram, às vezes gritam.
Mas vêm com máscaras.
Um entusiasta, Philipp Klein, faz uma curta metragem, na sala, simulando subir uma enorme montanha branca feita de lençóis.
Uns himalaias privados.
Na cidade podes abrir a janela, mas não há endireitas como havia na aldeia.
Que colocavam no sítio, à força, um osso deslocado.
Há muitas pessoas que abrem a janela a pedir um endireita ou a pedir para voltarem à casa de partida, mas não há ninguém no exterior.
A casa de partida é a casa dos pais.
Em todos os jogos deve ser isso, calculo.
Uma ou outra cabeça vai quebrar por dentro.
Nenhuma ortopedia mental de emergência vai poder pôr certas peças do puzzle de novo juntas.
“A Rússia quer endurecer o combate ao doping”, diz uma notícia de hoje.
Roma está bem, mas agora com um colar à volta.
Chama-se colar Elisabetano ou Isabelino por causa das golas chiques usadas no tempo da Rainha Isabel I.
Chamar colar a um funil transparente é a nova-língua a circular no mundo dos animais.
Uma imagem terrível, um cão com um plástico na cabeça.
Parece um altifalante.
Como se a Roma fosse fazer um discurso para o mundo.
Mas se o fizer só a Jeri, a golden, vai entender.
Ou então aquilo é a uma máquina caseira de instalar a absoluta concentração.
Preciso de um funil igual, para não olhar para os lados.
O Brasil é a “Terra em que Deus anda com os pés no chão”.
Mas por lá estão também com medo.
Não tenho máscara em casa, penso nisso.
Se necessário, uma máscara humana pode ser roubada à cabeça dos animais que estão proibidos de lamber as patas.
Eu sou um humano, e também devia estar proibido de lamber as minhas patas.
A única coisa a fazer com as patas é avançar.
Em Abril de 2020, dia 5 de abril.
“Voltaremos a estar com os nossos amigos, voltaremos a estar com as nossas famílias, voltaremos a encontrar-nos.”, disse a Rainha Isabel II, hoje.
Sem razão alguma ponho-me a analisar a estrutura de um telescópio.
E a pensar como subitamente este aparelho foi abandonado nas últimas semanas.
Não vais querer pôr-te a focar com uma lente um planeta ou uma constelação qualquer.
Tóquio regista o maior número de novos casos num só dia e milhões de indianos desligaram as luzes às 21 horas e foram até às “janelas, varandas, terraços” com velas na mão.
A luz como aquilo que salva e junta, mas curioso que não a luz eléctrica mas a luz que vem do fogo.
Peço desculpa por hoje estar triste.
Amanhã será certamente um outro dia.
Faço festas à Roma e à Jeri, companheiras ao lado de outros companheiros humanos.
Ainda o filme “Embriagado de mulheres e de Pintura” de Im Kwon-Taek.
"Que tipo de jarrões desejas?” - pergunta o pintor ao dono da olaria.
Os dois a olharem para o forno enquanto as peças cozem.
O dono da olaria responde:
“os pintores do teu calibre querem que a limalha agarre para que os desenhos ganhem vida;
os vidradores desejam que o vidrado se espalhe de forma uniforme;
os donos das olarias esperam vir a sair delas uma ou duas obras-primas.
Mas as coisas não saem forçosamente como desejamos.
Estamos sujeitos aos caprichos do fogo."
Muitas pessoas querem muita coisas diferentes, mas é o fogo que decide.
O fogo é aquilo que não controlamos.
---------------
Índice
Diário da Peste. Ei, ei, estou aqui!
Diário da Peste. Alguém diz que o pico será no dia tal
Diário da Peste. NASA cancela pesquisas na lua
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt