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Twitter: o homem mais rico do mundo comprou uma “bomba atómica mediática” e abriu caminho para o fim das redes sociais grátis

Twitter: o homem mais rico do mundo comprou uma “bomba atómica mediática” e abriu caminho para o fim das redes sociais grátis
DADO RUVIC/REUTERS

As taxas de certificação servem para acabar com as fake news ou são apenas uma forma de impor a censura a quem não as paga? Elon Musk garante que as taxas de 7,99 dólares devolvem o poder ao povo. Apesar do repúdio de algumas marcas, não será de estranhar que haja empresas dispostas a pagar pela credibilidade. Entre especialistas, há quem anuncie o fim de uma era. E entre os críticos, há quem vislumbre uma agenda política escondida. Em contrapartida, Musk manda uma acha para a fogueira mediática e confirma o apoio ao Partido Republicano nas eleições intercalares dos EUA

Se a liberdade tem um custo, os tuítes têm um preço. Para Elon Musk, o magnata da Tesla e da SpaceX, as taxas mensais de 7,99 dólares (7,98 euros) para certificação de contas assumem contornos de tudo ou nada depois de fechar a compra do Twitter por 44 mil milhões de dólares (43,95 mil milhões de euros). Na pior das hipóteses, é a queda a pique da rede social do passarinho, como já trataram de prever temas de debate iniciados com o célebre “hashtag” (#). Mas, em caso de sucesso, será o princípio do fim das redes sociais grátis e o início de um negócio chorudo que levará empresas, partidos e instituições públicas de todo o mundo a pagar pela credibilidade. E, num dos cenários menos animadores, é uma nova forma de censura digital.

“A única maneira de pôr as pessoas a refletir é com a carteira. Se as pessoas não puderem usar a carteira é natural que fiquem de fora”, garante Diogo Gomes, investigador do Instituto de Telecomunicações e professor na Universidade de Aveiro.

A fasquia é elevada: ou Musk consegue mudar o paradigma das redes sociais ou dificilmente consegue recuperar o avultado investimento. Pelo meio há questões técnicas e políticas que não aparentam ter solução imediata. Alexandria Ocasio-Cortez, a parlamentar que é também uma das coqueluches do Partido Democrata dos Estados Unidos, logo tratou de apontar para uma alegada tentativa de cobrar à população uma taxa pelo exercício de um direito fundamental, como a liberdade de expressão.

Musk, provavelmente o mais inflamável dos magnatas e dono da maior audiência do Twitter, animou a turba digital ao lembrar que as camisolas vendidas nas campanhas eleitorais de Cortez também têm um preço (58 dólares ou 57,93 euros) – e publicou um tuíte em jeito de cobrança: “Os seus comentários são muito apreciados, mas agora pague os 8 dólares”.

A acidez da resposta só surpreende quem nunca se deparou com os tuítes pouco honrosos que Musk publicou sobre antigas namoradas ou a contabilidade de contas falsas do Twitter, ao mesmo tempo que negociava a compra da rede social, numa violação grosseira das boas práticas que ficou inexplicavelmente sem punição.

As últimas notícias dão conta do possível despedimento de cerca de metade dos profissionais da empresa, assim que foi executada a “decapitação” da anterior gestão pouco depois de Musk entrar na sede do Twitter com uma pia, possivelmente para prodigalizar os famosos memes na Internet. O empresário sul-africano ainda tentou minimizar estragos quando disse que estava a pugnar pelo bem da civilização mundial ao desenvolver uma plataforma que permite juntar os opostos num debate saudável, mas a promessa parece ter deixado muita gente por convencer.

Pfizer, United Airlines, General Mills, Audi, Ford, Volkswagen e General Motors logo anunciaram que iriam deixar de investir em anúncios na rede social. Não é claro se este boicote informal se deve a fatores ideológicos ou à recusa em pagar uma taxa que também pode ser encarada como um imposto.

Em cerca de uma semana, mais de 800 mil pessoas abandonaram a rede social do passarinho em reação à investida de Musk, avançou a Technology Review. Não será uma perda irrecuperável para uma rede que tem 217 milhões de utilizadores ativos – mas também ajuda a quantificar a primeira vaga de repúdio que levou as Nações Unidas a recomendarem ao empresário que mantenha o respeito pelos direitos humanos.

Qualquer outro empresário aproveitaria para se remeter ao recato até a poeira e polémica assentarem, mas Musk preferiu seguir um caminho alternativo e anunciou o apoio ao Partido Republicano nas eleições intercalares dos Estados Unidos. Em paralelo, prosseguiu o fecho de contas falsas de pessoas que decidiram parodiar o próprio Musk – como a comediante de esquerda Kathy Griffin.

Será que o empresário é realmente um defensor da liberdade absoluta, como chegou a propalar? Ou será que pretende usar os selos azuis da certificação como uma forma de censura com a mesma cor dos lápis usados pela polícia política PIDE, antes do 25 de abril de 1974?

“Não se pode comparar o lápis azul [da PIDE] e o blue check [o selo de certificação do Twitter]”, responde Gustavo Cardoso, professor no ISCTE e líder do Observatório da Comunicação. “O que se está a fazer é a celebrização de pessoas. E quem quiser ser célebre paga os oito dólares por mês, para ter acesso a um circuito paralelo, sem precisar de passar pelas secções de informação ou entretenimento dos meios de comunicação social”, acrescenta o investigador.

De Trump ao Chega

Donald Trump foi suspenso pelo Twitter quando ainda era presidente dos EUA; Steve Bannon, o ideólogo da nova extrema-direita americana, também. Em Portugal, o caso mais conhecido foi protagonizado por André Ventura, presidente do Chega, que viu a conta pessoal suspensa por mais de uma vez no passado recente.

“Elon Musk pode ser uma nova garantia da liberdade de expressão que o Twitter não tem tido, por exemplo, com o presidente do Chega”, defende André Ventura, quando questionado pelo Expresso. “O Twitter deve ser um espaço de liberdade política e civilizacional, apenas limitado pela legislação criminal”, acrescenta o líder do Chega.

Na ponta oposta do espectro partidário, a entrada em cena de Musk e a eventual reabilitação de políticos e cidadãos anónimos com discursos de ódio são encaradas com muito mais reservas: “Trump usava as redes sociais de uma forma incendiária, que punha em causa a própria democracia. Os apelos à desordem não podem ser considerados como próprios da liberdade de expressão”, considera Fabian Figueiredo, dirigente e ex-deputado do Bloco de Esquerda (BE).

O dirigente bloquista não menciona diretamente o líder do Chega, mas recorda que também em Portugal já houve suspensões ditadas pelo discurso de ódio e não hesita em considerar que as taxas das certificações vão acabar por fragilizar quem opta por não as pagar, ou quem as queira pagar, mas não consiga obter a certificação. Para estes receios contribui ainda a suspeita de que Musk quer usar o Twitter como caixa de ressonância da agenda do Partido Republicano.

“Apesar de ter sido melhorado ao longo do tempo devido às denúncias sobre discursos de ódio, o Twitter sempre teve um algoritmo que promove a polarização. Quando Elon Musk defende a moderação mínima passamos a esperar maior toxicidade no debate”, refere Fabian Figueiredo, sem deixar de fazer a acusação: “E já se percebeu que Musk vai usar o Twitter de forma discricionária para alimentar o ego e a estratégia empresarial”.

Pagar para credibilizar

Sendo empresário, Musk sabe que a gratuitidade da Internet é uma ilusão. E sendo o mais rico do mundo da atualidade, provavelmente será também a pessoa mais bem colocada para aplicar uma velha ideia que já remonta aos primórdios do e-mail: “Já no passado se dizia que, se o correio eletrónico tivesse custos de envio, como acontece com os selos que pomos nas cartas, não haveria tanto spam [correio e mensagens não solicitadas]. As redes sociais são de borla, mas alguns economistas admitem que, se fossem pagas, provavelmente teriam menos lixo”, responde Diogo Gomes.

As taxas mensais de certificação não são propriamente novas: em 2009, o Twitter enveredou por este mecanismo nos mercados anglo-saxónicos. Antes de Musk, essa certificação custava 4,99 dólares mensais. Agora passa para 7,99 dólares mensais – e deverá ser adaptada ao poder de compra de diferentes países.

“As marcas vão para onde estão os consumidores. E vão pagar o que for preciso para estarem junto desses consumidores… mas acredito que esse tipo de decisões não seja tomado em dois meses ou três”, refere Catarina Pestana, diretora da empresa de marketing BangBang Agency. “As redes sociais surgiram com a ideia de que seriam sempre grátis, mas estamos a ver que nada é realmente grátis. As marcas que não investirem no Facebook não aparecem no algoritmo, mesmo que tenham boas carteiras de seguidores”, refere a especialista de markerting.

A conta de Trump foi suspensa do Twitter, quando o empresário ainda era presidente dos EUA
Jakub Porzycki / NurPhoto / Getty Images

Ainda que com preço afixado, a credibilidade pode representar uma mais-valia para quem gere um negócio. E a taxa mensal de 7,99 dólares não é uma barreira de entrada tão grande que não possa ser acomodada na estrutura de custos, mesmo das pequenas empresas.

“Uma empresa ativa no Twitter, que tenha uma comunidade de seguidores vai querer que olhem para ela como marca oficial e paga os oito dólares na hora. Mas também vai haver um grupo de empresas que rejeitam pagar devido às posições de Musk. E há um terceiro grupo de empresas que vão esperar para ver. A maioria das empresas portuguesas vai estar neste terceiro grupo”, prevê David Quinta, diretor da Área Digital da agência de marketing e publicidade BBDO Portugal.

“Poder para o povo” é um chavão que mais parece retirado das denominadas lutas de classes, mas foi empunhado por Elon Musk no momento de justificar o aumento das taxas mensais. Do ponto de vista comunicacional, o tiro acabou por revelar-se certeiro. Quem estava a preparar a contra-ofensiva alegando que o Twitter iria passar a distinguir a credibilidade dos utilizadores consoante o que estão dispostos a pagar, ficou sem o plausível argumento de defesa da igualdade de condições de acesso às ferramentas digitais, uma vez que, segundo o multimilionário, é a taxa mensal que vai acabar por introduzir esse nivelamento democrático.

David Quinta recorda que o Twitter sempre teve um cuidado especial para proteger entidades governamentais e estatais. Noutros casos, os pedidos de certificação dependiam do número de seguidores ou da comprovação da titularidade da conta – mas a decisão final dependia em exclusivo do Twitter.

“Agora, deixa de ser assim, e a certificação passa a ser atribuída a todas as pessoas que queiram pagar e que pretendem ter acesso a ferramentas que permitem controlar anúncios e menções”, refere o responsável da BBDO Portugal. “A lógica é: se uma pessoa passa 20 horas a ler tweets porque é que há de ter menos poder de controlar a sua conta que uma celebridade?”, acrescenta.

Coincidência ou não, o Instagram, que pertence ao grupo Meta, que também detém Facebook e Whatsapp, começou a testar ferramentas de verificação da idade. A iniciativa poderá ter por objetivo cumprir com os requisitos legais que impedem o uso de redes sociais por crianças de idades mais tenras, mas deixa em aberto a expansão de novas ferramentas que tanto podem ser usadas para o combate às notícias falsas, como para gerar uma nova fonte de receitas.

“Não vejo razão para que empresas e entidades não paguem pela utilização de um serviço prestado por outra empresa”, defende Miguel Ralha, diretor da agência de marketing e publicidade BAR Ogilvy. “Numa era em que as fake news [notícias falsas] abundam, as mentiras são consideradas verdades e o controlo do que se diz e escreve é praticamente inexistente, a necessidade de tornar credíveis e oficiais as fontes de informação é absolutamente fundamental. E isso tem um custo”, acrescenta.

Elon Musk garantiu a compra do Twitter depois de ter alcançar o recorde de audiências na rede social
DADO RUVIC/REUTERS

O especialista da BAR Ogilvy admite que o Twitter esteja a dar o mote para a mudança de paradigma através de um escrutínio que pretende ser mais profissional e que destoa do que tem sido feito até à data por outros intervenientes, autoridades e reguladores. “Precisamos urgentemente de mudanças nas redes sociais, de mais verdade, de mais rigor, de mais certezas e acima de tudo de confiança. Não confundir com censura ou limitação da liberdade de expressão, pois essas deverão continuar a ser um direito universal”, sublinha Miguel Ralha, rejeitando a ideia de que a taxa limita a voz de quem não a paga.

Também na academia há quem admita que outras marcas possam seguir a mesma lógica. “Não serão todas coisas, mas parte daquilo que fazemos [nas redes sociais] vai passar a ter custos”, admite Gustavo Cardoso.

O circuito fechado português

Os Estados Unidos têm uma Constituição – mas o Twitter, que foi criado nos EUA, acabou por falhar na hora de dizer ao público quais as regras que devem prevalecer internamente. E essa lacuna, de algum modo, também tem sido explorada pelo novo dono da rede social. “É muito complicado aplicar regras ad hoc a alguém que publica algo errado nas redes sociais. Musk tem razão nesse aspeto. O Twitter não tinha uma regra geral prévia”, sublinha Gustavo Cardoso.

Mesmo com um novo regulamento de publicação, o Twitter não deixa de estar na jurisdição dos tribunais americanos ou de todos os outros países. Mas, por atuar a nível global, estará numa posição privilegiada para escapar aos raios de ação dos aparelhos de justiça nacionais, e ganha ainda um trunfo importante: “A compra do Twitter é comparável à compra do ‘Washington Post’ por Jeff Bezos, mas com a diferença de que na rede social não há mediação de jornalistas. É como uma bomba atómica mediática muito poderosa, que leva o resto do mundo a ter em conta na hora de falar com Elon Musk”, descreve Gustavo Cardoso.

Tendo em conta que nenhuma outra rede social consegue ombrear com a predominância do Twitter no que toca ao debate político, não faltam receios e alertas para a possibilidade de eventuais interferências do famoso passarinho em eleições de todo o mundo.

Gustavo Cardoso recorda que o modelo expansionista das redes sociais é decalcado do das telecomunicações, que tende a fomentar oligopólios e concentrações. E havendo apenas o Twitter para suportar a troca de ideias e argumentos, surge o receio de enviesamento da opinião pública. Em especial nos países em que a rede social realmente é usada para debater. “Nos EUA e até em Espanha, os cidadãos comentam e debatem no Twitter, mas em Portugal é um espaço fechado a políticos, jornalistas, comentadores ou pessoas que querem ser uma destas três coisas”, lembra Gustavo Cardoso. “Em Portugal, o Twitter serve para comunicar com a população sem passar pelos jornalistas”, acrescenta.

A avaliar pelo número de notícias baseadas em tuítes, a estratégia tem resultado.

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