Com muitas das principais figuras da Saúde em Portugal, o Observatório da Fundação para a Saúde apresenta esta terça-feira o seu primeiro relatório anual e a conclusão é negativa para a governação do setor, sobretudo a atual. A incapacidade de atrair e reter profissionais no Serviço Nacional de Saúde (SNS) é diagnosticada como a ‘doença’ mais ameaçadora, com manifestações agudas na falta de acesso da população aos cuidados, e o Plano de Emergência e Transformação da Saúde (PETS) do Executivo não prescreve tratamentos eficazes.
“O que as pessoas mais valorizam num sistema de saúde é o acesso oportuno aos cuidados de que precisam. Um sistema de saúde que não deixe ninguém de fora. É evidente que há uma crise de acesso ao SNS. É igualmente evidente que esta crise de acesso tem como causa principal a incapacidade crescente de atrair e reter profissionais de saúde”, ora “seria razoável esperar que uma política para as profissões de saúde no SNS teria especial proeminência nesse Plano de Emergência”. Não teve, criticam os autores: “Não dá qualquer relevo à prioridade evidente de tomar medidas urgentes para atrair e reter profissionais de saúde no SNS.”
Aliás, a ‘sangria’ de profissionais está a piorar. “No que diz respeito à capacidade do SNS atrair e reter profissionais de saúde de que necessita, a situação não pára de se agravar – abertura equivocada de concursos necessários, atrasos nas contratações, negociações sindicais insuficientes e continuação do abandono.” No relatório é mesmo explicado que algumas das medidas do Governo vão tornar o SNS ainda mais ‘anémico’.
USF-C, CAC e PPP de Cascais
Questionam os autores: “Quais são, de facto, as transformações que o PETS prescreve para o sistema de saúde português? A resposta é simples e fácil de constatar: a criação 20 Unidades de Saúde Familiar (USF) modelo C no setor social e privado; o estabelecimento de Centros de Atendimento Clínico – públicos ou privados, começando por Lisboa e Porto; e a implementação de consultas de cuidados de saúde primários no Hospital de Cascais (único hospital português em Parceria Público-Privado)”. São três medidas que, garantem, têm um efeito adverso. “O argumento de que, ‘como as unidades do SNS deixaram de ser atrativas para os profissionais, há que promover soluções privadas’” leva a não “recorrer aos instrumentos disponíveis para corrigir rapidamente problemas há muito identificados”.
Dito de outra forma, “adotou-se o princípio de transferir para o setor privado situações de espera excessiva, uma vez esgotada a capacidade de resposta dos hospitais do SNS". É esperado que tal “aconteça em benefício dos doentes”, mas na situação atual "é absolutamente necessário dar um passo para além ‘da capacidade existente’ para um investimento indispensável no SNS”. Ou seja, “poder evoluir rapidamente para a ‘capacidade necessária’, caso contrário, atrás dos doentes transferidos para o setor privado irão os recursos financeiros necessários e atrás de ambos irão os profissionais de saúde do SNS”.
Mas o Observatório vê de forma crítica a própria metodologia e até apresentação do Plano de Emergência que o Governo garantiu ser a salvação do SNS. “A súbita mudança do Plano de Emergência do SNS para o Plano de Emergência e Transformação da Saúde (PETS) no ato da apresentação poderia significar, simplesmente, um salutar aumento de ambição na rápida recuperação das condições de trabalho no SNS para superar a crise do acesso, mas uma análise, mesmo que ainda superficial, mostra que não é, de todo, aquilo que ocorreu. O que se observou foi uma substancial reorientação na lógica do plano – já não se trata de dar os primeiros passos, passos decisivos, para melhorar, transformando o SNS, mas antes transformar a natureza do sistema de saúde.”
“Nada é minimamente fundamentado”
Mais, “o PETS foi preparado no curto período de algumas semanas, isso aconselharia alguma prudência na expectativa de delinear uma estratégia transformadora para o sistema de saúde e para o SNS e aconselharia, também, uma inteligente utilização dos recursos técnicos de análise e planeamento da DGS, ACSS, INSA e PLANAPP” – o que não aconteceu, afirmam os autores. “A ausência de qualquer desenho estratégico nas categorias que estruturam o PETS e as insuficiências técnicas dos seus conteúdos – nada é minimamente fundamentado e não há qualquer indicação da magnitude e origem dos recursos associados ao 'plano' (aspetos essenciais para um plano ser um plano) – indicam que os recursos de planeamento do Ministério da Saúde e da Administração Pública ou não foram utilizados, ou o foram muito insuficientemente.”
Além da atual equipa do Ministério da Saúde, o relatório foca-se nos governos anteriores e também não poupa nas críticas. Por exemplo, no que diz respeito às aprendizagens feitas com a pandemia: “Ao contrário de outros países, não fizemos ainda uma avaliação independente da gestão da covid-19, tirando os ensinamentos necessários dessa experiência marcante para o futuro”.
Cirurgias oncológicas e linha grávida passam no teste
Outra nota negativa é dada à falta de empenho na expansão das USF do modelo B: “Sucessivos governos foram restringindo o desenvolvimento das USF-B, aquelas que assumem a plenitude de todos os atributos esperado de uma unidade de saúde familiar.” A maior generalização só aconteceu em janeiro deste ano, por iniciativa do anterior Governo. É ainda apontada a criação do Registo de Saúde Eletrónico, há 15 anos posto em marcha e ainda hoje sem sair do papel.
Apesar de críticas ao Plano de Emergência, os autores sublinham como positivas as medidas contra as listas de espera cirúrgicas, sobretudo em oncologia, e a nova componente obstétrica da linha de atendimento SNS24.