Portugal registou, em 2022, mais episódios de doença e pior acesso aos cuidados de saúde para os mais pobres, segundo um relatório hoje divulgado, que aponta para um forte impulso no uso da Linha SNS24.
O relatório Acesso a cuidados de saúde, 2022 -- As escolhas dos cidadãos no pós-pandemia, que resulta da Iniciativa para a Equidade Social, uma parceria entre a Fundação "la Caixa", o BPI e a Nova SBE, revela uma redução na procura de serviços de saúde e um aumento dos episódios de doenças.
Os dados indicam que a pandemia acentuou a associação entre a condição socioeconómica do agregado familiar e a ocorrência de episódios de doença: as pessoas de grupos socioeconómicos de maior rendimento reportaram menos situações de doença (provavelmente devido à redução de contactos sociais resultantes da maior permanência em casa) e o grupo socioeconómico com maior dificuldade financeira reporta um acréscimo grande.
Os autores indicam que o período da pandemia de covid-19 trouxe "uma inversão da tendência positiva de redução de dificuldades de acesso [aos cuidados de saúde] de quase uma década".
Concluem igualmente que, nos anos da pandemia - 2020 e 2021 -, apenas 27% e 30% dos inquiridos, respetivamente, disseram que se sentiram doentes, pelo menos uma vez, mostrando que o período pandémico "foi marcado por valores anormalmente baixos neste indicador".
Fatores como rendimento mais baixo (47,6%) e idade mais avançada (57,6%) estão associados a uma maior probabilidade de a pessoa se ter sentido doente, lembram os investigadores, que apontam para "uma subida expressiva" em 2022 nos episódios de doença, com 40% dos inquiridos a dizer que se sentiu doente pelo menos uma vez no ano.
"Por um lado, o início de 2022 foi marcado por grandes impactos da variante ómicron da covid-19", por outro, "ao longo do ano de 2022, a redução da utilização generalizada das medidas de proteção individual contribuiu para um aumento de circulação dos vírus", escrevem.
O relatório regista também um forte aumento da utilização da Linha SNS24 no pós-pandemia: passou de 3%, em 2019, para 28%, em 2022.
A prestação de cuidados de saúde nos setores público e privado foi igualmente alvo de análise, verificando-se um aumento no recurso ao setor público, recuperando parcialmente a queda verificada entre 2019 e 2020, em grande parte devido à maior utilização da Linha SNS 24.
"Acabamos por constatar que as pessoas utilizam a Linha Saúde 24 e depois são reencaminhadas e vão aos serviços a que devem ir", o que se traduz "num aumento do número de contactos com o setor público", explicou à Lusa Pedro Pita Barros, um dos autores do relatório.
Os autores do estudo observam também que, depois do período de pandemia, há "uma certa reconfiguração" do setor privado, com o aumento do peso do recurso aos hospitais privados, "quando as pessoas se sentem doentes, mas também porque a prática em consultório privado individual tem desaparecido para se integrar dentro destas unidades no setor privado", explicou o especialista em economia da saúde.
Questionado sobre o peso dos seguros de saúde nesta evolução, o investigador diz que ajuda, "mas não está a ter o efeito determinante nesta utilização", sublinhando que o numero de pessoas que diz ir ao setor privado (10%) se tem mantido estável nos últimos anos.
"Os seguros de saúde facilitam, mas provavelmente facilitam às pessoas que já iriam lá de qualquer forma e, portanto, agora têm uma cobertura financeira para algo que antes pagariam", acrescentou.
O investigador chamou ainda a atenção para a "preocupação maior dos próprios operadores privados em terem uma oferta de médicos de família", apontando o aparecimento de um anúncio nesse sentido.
"Para lançarem um anúncio a dizer que têm essa disponibilidade, estão claramente a ter de ter uma organização e isso poderá trazer, para um futuro próximo, uma alteração substancial", acrescentou.
As famílias com menores rendimentos tiveram em 2022 mais dificuldades em fazer face às despesas habituais, sobretudo a comprar medicamentos, que ainda representam a maior fatia das despesas associadas aos cuidados de saúde primários ou urgências.
Mais pobres com mais dificuldades nas despesas
Segundo o mesmo estudo, a proporção de famílias que pede a substituição de um fármaco de marca pelo respetivo genérico aumenta com o acréscimo das dificuldades económicas, passando de 33% em 2019 para 56% em 2022.
"É um efeito que não é surpresa que exista, mas foi até certo ponto surpresa a magnitude do efeito, [o facto de] ser tão forte", admitiu, em declarações à Lusa, o investigador Pedro Pita Barros.
O especialista lembrou ainda que os mais pobres são afetados de duas formas distintas, "que se reforçam mutuamente".
Por um lado, devido ao tipo trabalho que têm, "muitas vezes não têm as mesmas facilidades para estar em teletrabalho ou poderem evitar transportes públicos, como outras pessoas de profissões que dão rendimentos mais elevados", ficando mais expostas ao risco de doença.
Por outro lado, são também provavelmente profissões em que o impacto económico da redução da atividade durante a pandemia terá sido maior.
"Acabam por ter maior exposição, mas também provavelmente menor disponibilidade financeira, ou maior incerteza financeira do que teriam fora da pandemia. (...) São apanhados numa tenaz, em que um dos lados é o económico e do outro a saúde", explicou.
Em termos de intervenção pública, Pita Barros diz que esta situação deveria preocupar os decisores para "perceber melhor como é que se pode tentar recuperar essas situações e garantir agora um acesso melhor" a estas pessoas.
"A parte económica, em princípio, estará a recuperar com a recuperação da economia. A parte de saúde, terá de se perceber se são precisas medidas especificas de proteção financeira adicional, em particular no campo do medicamento", insistiu, lembrando que é nos medicamentos associados à prescrição que está o maior peso financeiro para estas famílias.
Mais de uma em cada 10 pessoas optaram por não recorrer ao sistema de saúde em 2022 em situação de doença e, em alternativa, recorreram à automedicação ou esperaram melhorar, concluiu um estudo que será hoje divulgado.
14% não procurou o sistema de saúde em 2022
Mais de uma em cada 10 pessoas optaram por não recorrer ao sistema de saúde em 2022 em situação de doença e, em alternativa, recorreram à automedicação ou esperaram melhorar, concluiu também o relatório “Acesso a cuidados de saúde, 2022 -- As escolhas dos cidadãos no pós-pandemia”. Em 2022, cerca de 14% da população optou por não recorrer ao sistema de saúde na sequência de um episódio de doença e, em alternativa, escolheram automedicar-se (43%) ou esperar que a sua doença melhorasse (57%).
"O aumento dos que não contactaram o sistema de saúde pode ser explicado pelo aumento de infeções de covid-19, no final de 2021 e início de 2022, a par das recomendações das autoridades de saúde para não recorrer ao sistema de saúde em caso de doença ligeira", lembram os autores.
Em sentido contrário, aumentou a proporção de doentes que assumiu ter recorrido à automedicação por ter medicamentos em casa disponíveis. Em 2021 apenas 14% dos doentes que recorreram à automedicação elegeram a disponibilidade doméstica de medicamentos como a principal razão. Contudo, em 2022 esta proporção aumentou para 50%.
O padrão verificado em 2022, porém, inverte o histórico verificado desde 2013, quer no período da pandemia (2020 -- 2021), quer no período pré-pandemia (2013--2019).
Na larga maioria dos casos (quer naqueles que se automedicaram, quer nos que decidiram esperar) a baixa gravidade da doença foi eleita como a principal razão para não contactar o sistema de saúde (82,2% e 88,9%, respetivamente).
"A automedicação tem sido um aspeto que nós temos consistentemente encontrado nestes inquéritos de acesso que temos feito com regularidade e estamos a começar a explorar com mais cuidado", explicou Pedro Pita Barros, lembrando que durante o período de pandemia as pessoas foram incentivadas a ficar em casa e a tratar a doença ligeira com medicação de venda livre, como o paracetamol.
Provavelmente, admitiu, "durante estes anos constituiu-se um hábito de uma certa farmácia doméstica que as pessoas usam quando sentem pequenos problemas de saúde agora", afirmou, acrescentando que os investigadores interpretam este aumento da automedicação como "episódico", como consequência de um hábito criado durante a pandemia.
"Noutros países é comum as pessoas, quando sentem algum problema, a primeira coisa que lhes dizem é para tomar um paracetamol e, se não passar, ao fim de dois ou três dias, então sim, para contactar o sistema de saúde. Será que é isso que está aqui em mudança? Pode ser", considerou o especialista.
Reconhecendo a necessidade de estudar melhor os dados referentes à automedicação, Pita Barros afirma: " Vamos tentar perceber isso e, sobretudo -- e aqui também era uma ideia diferente - pensar se existe um papel, que muitas vezes tem sido reclamado por parte das farmácias, de aconselhamento das pessoas para pequenos problemas de saúde e se, nesse apoio à automedicação, se poderá justificar um papel mais formal, ou mais estruturado, desse serviço de aconselhamento".
"Isto para a automedicação não ser um bocadinho extemporânea e não ser à vontade de cada um", afirmou, acrescentando: "Hoje em dia, pode ser a farmácia, para quem tem um contacto pessoal, ou pode ser uma fonte de informação credível que a pessoa possa consultar 'online', providenciado pelo sistema de saúde, nomeadamente o Serviço Nacional de Saúde.
O especialista diz que isto pode ser uma oportunidade para um novo tipo de contacto com os serviços de saúde, "num nível intermédio entre a pessoa decidir o que vai tomar ou ter de contactar um médico".
O relatório "Acesso a cuidados de saúde, 2022 -- As escolhas dos cidadãos no pós-pandemia", da autoria dos investigadores Pedro Pita Barros e Eduardo Costa, da Nova SBE, concluiu que, em 2022, cerca de 14% da população optou por não recorrer ao sistema de saúde na sequência de um episódio de doença e, em alternativa, escolheram automedicar-se (43%) ou esperar que a sua doença melhorasse (57%).
"O aumento dos que não contactaram o sistema de saúde pode ser explicado pelo aumento de infeções de covid-19, no final de 2021 e início de 2022, a par das recomendações das autoridades de saúde para não recorrer ao sistema de saúde em caso de doença ligeira", lembram os autores.
Em sentido contrário, aumentou a proporção de doentes que assumiu ter recorrido à automedicação por ter medicamentos em casa disponíveis. Em 2021 apenas 14% dos doentes que recorreram à automedicação elegeram a disponibilidade doméstica de medicamentos como a principal razão. Contudo, em 2022 esta proporção aumentou para 50%.
O padrão verificado em 2022, porém, inverte o histórico verificado desde 2013, quer no período da pandemia (2020 -- 2021), quer no período pré-pandemia (2013--2019).
Na larga maioria dos casos (quer naqueles que se automedicaram, quer nos que decidiram esperar) a baixa gravidade da doença foi eleita como a principal razão para não contactar o sistema de saúde (82,2% e 88,9%, respetivamente).
"A automedicação tem sido um aspeto que nós temos consistentemente encontrado nestes inquéritos de acesso que temos feito com regularidade e estamos a começar a explorar com mais cuidado", explicou Pedro Pita Barros, lembrando que durante o período de pandemia as pessoas foram incentivadas a ficar em casa e a tratar a doença ligeira com medicação de venda livre, como o paracetamol.
Provavelmente, admitiu, "durante estes anos constituiu-se um hábito de uma certa farmácia doméstica que as pessoas usam quando sentem pequenos problemas de saúde agora", afirmou, acrescentando que os investigadores interpretam este aumento da automedicação como "episódico", como consequência de um hábito criado durante a pandemia.
"Noutros países é comum as pessoas, quando sentem algum problema, a primeira coisa que lhes dizem é para tomar um paracetamol e, se não passar, ao fim de dois ou três dias, então sim, para contactar o sistema de saúde. Será que é isso que está aqui em mudança? Pode ser", considerou o especialista.
Reconhecendo a necessidade de estudar melhor os dados referentes à automedicação, Pita Barros afirma: " Vamos tentar perceber isso e, sobretudo -- e aqui também era uma ideia diferente - pensar se existe um papel, que muitas vezes tem sido reclamado por parte das farmácias, de aconselhamento das pessoas para pequenos problemas de saúde e se, nesse apoio à automedicação, se poderá justificar um papel mais formal, ou mais estruturado, desse serviço de aconselhamento".
"Isto para a automedicação não ser um bocadinho extemporânea e não ser à vontade de cada um", afirmou, acrescentando: "Hoje em dia, pode ser a farmácia, para quem tem um contacto pessoal, ou pode ser uma fonte de informação credível que a pessoa possa consultar 'online', providenciado pelo sistema de saúde, nomeadamente o Serviço Nacional de Saúde.
O especialista diz que isto pode ser uma oportunidade para um novo tipo de contacto com os serviços de saúde, "num nível intermédio entre a pessoa decidir o que vai tomar ou ter de contactar um médico".
Procura das urgências em 2022 abaixo dos níveis pré-pandemia
A proporção de pessoas que procuraram os serviços de urgência no ano passado ficou abaixo dos níveis pré-pandemia, apesar da ligeira subida face aos anos de 2020 e 2021, ainda segundo o estudo, que indica que a proporção de pessoas que foi às urgências era de 41,1% em 2019 e, no ano passado, caiu para 35,5%.
Em declarações à Lusa, Pedro Pita Barros avisa que os dados das urgências devem ser sempre analisados "com algum cuidado", questionando: "Qual é a informação que as pessoas têm no momento em que decidem ir?".
O especialista em economia da saúde considera que, quando se fala em "falsas urgências" por haver muitos casos de utentes com pulseiras de cor verde ou azul - as menos urgentes da cinco cores que compõem o sistema de Manchester --, parece que se está a "culpabilizar as pessoas".
"Parece-me sempre [como se estivéssemos] culpabilizar as pessoas por tomarem uma decisão de ir a uma urgência, quando elas têm certeza legítima sobre a sua situação", afirmou o especialista, lembrando: "Eu posso ser classificado como verde ou azul, mas só depois de lá ter ido".
Defende que a ideia de canalizar as pessoas pelo SNS24 antes de irem às urgências "é boa", mas recorda: "Como também sabemos, de dados passados, há pessoas que são enviadas para as urgências pelo atendimento telefónico, mas depois chegam lá e são azuis e verdes".
"Há decisões que só se conseguem perceber no momento" que se vê o doente, insiste.
Além das medidas para fazer com que as pessoas passem pelo SNS24 antes de ir às urgências -- à semelhança de uma experiência piloto que está a decorrer no Norte do país -, Pita Barros diz ainda esperar que os próprios algoritmos de classificação das pulseiras azuis e verdes "consigam ser afinados" para se perceber o que leva estas pessoas a recorrer a uma urgência.
Contudo, diz que é importante tomar medidas no sentido da redução no numero do número de episódios de urgência pois, defende, "o número de pessoas que recorrem, em Portugal, é manifestamente excessivo quando olhamos para o panorama geral da utilização do sistema".
Apontando exemplos de organizações diferentes nos cuidados primários para garantir a cobertura de utentes sem médico de família -- como a Via Verde, no Seixal e em Almada --, recorda: "Por vezes o Serviço Nacional de Saúde tem uma característica que é a gestão de topo achar muito bem, mas depois, em algum momento, as coisas acabam por não acontecer e não é dado o caminho suficiente para estas experiências provarem o seu valor e, eventualmente, serem expandidas".
"Por vezes, pomos isto do lado das pessoas, de terem de escolher melhor e saber melhor como se orientar dentro do sistema, mas também temos que pensar que o próprio SNS tem de ter alguma flexibilidade adicional para situações especiais, mesmo que seja numa base temporária, e, muitas vezes, não o tem com a rapidez necessária para dar resposta às pessoas", acrescenta.