O que é que se passa na Comporta? Tudo e nada

As ‘histórias de verão’ da plataforma de luxo Mr.Porter são uma das faces da Comporta, escreve Catarina Nunes na crónica ‘Sem Preço’
As ‘histórias de verão’ da plataforma de luxo Mr.Porter são uma das faces da Comporta, escreve Catarina Nunes na crónica ‘Sem Preço’
Jornalista
Tenho-me dedicado ao exercício de perguntar a portugueses e a estrangeiros que frequentam a Comporta o que é que esta localização tem de tão diferenciado. A natureza e a vida simples são as primeiras características mais referidas. Mas na continuação das conversas vão-se revelando outras motivações, algumas inconciliáveis com a resposta inicial, e até observações negativas, que refletem a ambiguidade da Comporta.
Muito se tem escrito sobre a Comporta nos últimos anos, nomeadamente na imprensa internacional, o que tem contribuído para a construção do seu estatuto de destino de luxo, alicerçado nas referências às celebridades e jet-set internacional que por aqui passam temporadas. Mas já vamos a isto e às contradições da Comporta, que têm o seu encanto, tendo em conta a crescente procura para ver (e ser visto) o que por aqui se passa.
O que traz a Comporta à crónica desta semana não são os seus frequentadores nem os projetos turísticos de luxo, apesar de serem parte da equação que faz com que, cada vez mais, marcas de luxo escolham esta localização como cenário de eventos. É o caso da Mr.Porter, plataforma norte-americana de comércio eletrónico dedicada ao consumo de luxo no masculino, que em junho reúne durante três dias um grupo internacional de 30 convidados, entre influenciadores, clientes e jornalistas.
O motivo? Instalar, numa villa de arquitetura moderna no meio do pinhal, uma espécie de show-room de apresentação de roupas e acessórios de verão, essenciais nos roupeiros masculinos e à venda na Mr.Porter. No total são 25 marcas de luxo, entre Tom Ford, Brunello Cuccineli, Gucci e Paula’s Ibiza, por exemplo, que são uma ínfima parte das cerca de 500 marcas que a Mr.Porter vende na Internet. A ideia é marcar com um único evento físico o arranque da ‘Mr.Porter Summer Stories’, uma campanha digital mundial de promoção de moda de verão que dura três meses e é a maior que a Mr.Porter alguma vez fez.
Interessada pela escalada de fascínio com a Comporta, prossigo com o meu ‘estudo de mercado’. Daniel Todd, diretor de compras da Mr.Porter e anfitrião do evento, conhece Portugal, mas é a primeira vez que está na Comporta, da qual salienta o sossego e a serenidade, principalmente para quem, como ele, acaba de aterrar vindo do bulício de Londres. Prosseguindo na conversa, a resposta vai mais direta ao ponto. Daniel Todd sente que está muita coisa a acontecer em Portugal, com a crescente vinda para cá de clientes da Mr.Porter, onde se destacam os norte-americanos, os maiores consumidores de luxo.
A acrescentar a isto, a Comporta surge como uma localização que corporiza as ‘histórias de verão’ que dão o mote à campanha e que, para Daniel Todd, são, em última análise, a celebração de produtos de verão e de todas as emoções que esta estação do ano evoca. O diretor de compras da Mr.Porter destaca ainda tratar-se de um lugar acessível, calmo, relaxado e que toda a gente adora. Resumindo: o lugar perfeito. Mais ou menos.
Voltando ao início desta crónica. O que muita gente acaba por constatar por experiência própria é a outra face do sossego, da privacidade e da natureza selvagem, que é haver pouco que fazer, não se vislumbrar em cada esquina as ditas celebridades e os mosquitos, implacáveis ao final do dia e que podem deixar memórias de férias menos agradáveis. Nesta matéria, a Mr.Porter faz o que está ao seu alcance: alerta para a questão e disponibiliza repelente de insetos aos convidados, o que não me livra de voltar a Lisboa com várias erupções cutâneas do tamanho de uma bola de ténis. São parte do melhor da Comporta, o seu ecossistema.
Menos falado do que os mosquitos, outro dos aspetos que surpreende, principalmente os estrangeiros, é que aquilo que é referido como Comporta, ao contrário do que é percecionado nas inúmeras reportagens internacionais, não é uma vila onde tudo se concentra e acontece em frente a uma praia. É antes o epicentro de uma região com hotéis, restaurantes e praias espalhados por várias vilas e povoações (Carvalhal, Brejos da Carregueira, Carvalhal, Muda, entre outros), que implicam, obrigatoriamente, deslocações de carro, mais ou menos demoradas. A título de exemplo, o alojamento dos convidados da Mr.Porter é dividido entre o Sublime (Muda), a Quinta da Comporta (Carvalhal) e o Alma Lusa (Comporta), sendo que entre o primeiro e o último hotel há uma distância de cerca de 20 minutos de carro.
É na vila da Comporta que arranca a experiência Mr.Porter, com um jantar no Cavalariça, instalado num antigo estábulo reconvertido em restaurante. O detalhe que mais chama a atenção são os pratos personalizados com o nome dos convidados, criados pela Vida Dura, loja de artigos para a casa em Melides, e que servem também de marcador de lugar. A partir das 22h não se vê viva alma na rua do Secador, principal artéria da Comporta e onde se encontra o Cavalariça. Justiça seja feita, é quarta-feira. Os locais garantem que só a partir de julho/agosto se começa a ver mais gente, mas nunca há aglomerados na rua. E discotecas é coisa que não existe por aqui.
O dia seguinte começa com uma aula de ioga no Sublime numa cabana aberta para uma piscina biológica, tratada com plantas aquáticas e sem utilização de produtos químicos, onde os mosquitos dão o ar da sua graça. De seguida, é hora de arrancar para a villa privada convertida no show-room da Mr.Porter, cujo acesso se faz por uma estrada de areia pelo meio de um pinhal. Lá dentro, dividido entre um piso térreo e uma mezzanine, encontram-se expositores com os essenciais de verão no masculino. Calções, camisas, calças, camisolas, chinelos, bolsas e carteiras, mas nenhum de marcas portuguesas.
A Portuguese Flannel é a única marca nacional na plataforma Mr.Porter, mas Daniel Todd garante que está sempre à procura de novas marcas, com produtos com histórias interessantes e pontos de diferenciação, sejam de Portugal ou de qualquer parte do mundo. Nesta apresentação na Comporta, as escolhas recaem sobre marcas globais com elevada notoriedade e apelo, como por exemplo a Loewe que, aliás, é a parceira nas Summer Stories. A marca espanhola que integra o grupo LVMH está presente com a coleção principal e a sub-marca Paula’s Ibiza, por Daniel Todd considerar que há um paralelo enorme entre Ibiza e Comporta, por partilharem uma atmosfera descontraída e um estilo de vida perto do mar e da natureza.
Mas o que faz a Comporta ser a Comporta não tem propriamente a ver com a simplicidade, o sossego, a praia e a natureza, que, verdade seja dita, existem por todo o país. O que faz a Comporta ser a Comporta são as pessoas. E não me refiro às gentes locais nem às celebridades internacionais, que mais recentemente popularizam esta localização. Só alguns (todos portugueses) dos questionados no meu ‘estudo ad hoc’, aqueles que têm dezenas de anos de frequência e estão enturmados nas dinâmicas de famílias e amigos na Comporta, referem a verdadeira razão de a Comporta ser a Comporta.
Numa versão abreviada, a história começa nos anos 1980 quando Pedro Espírito Santo e os seus primos (Luís, Marina e Vera Saldanha) começam a comprar ou a arrendar as cabanas dos pescadores que se encontram na propriedade da sua família, a Herdade da Comporta, e a viver de forma simples e boémia. É nestas cabanas que se instalam durante o verão com os seus amigos, igualmente de famílias de referência na Europa ou artistas, como Andy Warhol, com quem Vera Saldanha trabalha em Nova Iorque. A partir daqui foram-se juntando tantos outros amigos internacionais e com nomes sonantes, do universo das artes, da aristocracia e das famílias ligadas aos grandes grupos económicos, como os Agnelli.
Curiosamente parte desta história é-me contada pela atriz Marisa Berenson, durante uma entrevista em 2018, em que me revela a sua ligação à Comporta, para onde vai de férias desde criança, e a longa amizade com Pedro Espírito Santo, falecido nesse ano. A origem da Comporta, que a torna cada vez mais um destino de marcas de luxo, é tão determinante que o Jncquoi Comporta Club House prepara a abertura do restaurante Vera. Uma homenagem a Vera Saldanha, já falecida e considerada a fundadora do estilo de vida da Comporta.
Alheio a estas histórias, o evento da Mr.Porter prossegue para a praia do Carvalhal, com um almoço no SAL. Parte do restaurante, que este ano se muda para aqui vindo da praia do Pego, tem o exterior devidamente personalizado, em azul e branco (cores que caracterizam a Comporta) com cadeiras, toalhas e raquetes de praia com a marca Mr.Porter. Uma boia salva-vidas e sinalética no areal complementam o cenário, que é o palco das fotografias e vídeos dos cerca de uma dezena de criadores internacionais de conteúdos digitais, entre influenciadores, modelos e fotógrafos, maioritariamente muito jovens, onde se encontram também os portugueses Luís Borges e Francisco Faria. O resultado desta encenação é o objetivo da Mr.Porter: uma presença nas redes sociais que a associe à Comporta, a reboque destes influenciadores.
Daniel Todd revela que a média etária do cliente da Mr.Porter tem vindo a descer, encontrando-se nos 38 anos, o que confirma que o consumo de marcas de luxo é feito por pessoas cada vez mais jovens. Portugal alinha com esta estatística, mas no negócio da Mr.Porter ainda é um mercado muito pequeno, situando-se no top 20 europeu. O crescimento das vendas tem sido feito à conta de alguns portugueses, mas também com os novos residentes estrangeiros e aqueles que vêm de férias e que desejam renovar o guarda-roupa quando já estão em Portugal. As marcas mais procuradas no mercado nacional estão alinhadas com as mais procuradas a nível global: Brunello Cucinneli, Tom Ford, The Row e Mr.P, a marca própria da Mr.Porter.
Por força da colaboração com a Loewe, esta é a marca que mais está em destaque ao longo dos três dias de ‘Summer Stories’. É envergada pelos influenciadores internacionais e por alguns dos 120 convidados presentes na festa na última noite, o único momento aberto a um número mais alargado de portugueses. Entre eles, e sem surpresa, encontravam-se personalidades ligadas às artes, atores, empresários, proprietários de casas ou de negócios na zona, entre outros, numa mistura próxima daquela que fez a Comporta ser a Comporta nos anos 1980.
No terceiro e último dia de ‘Summer Stories’, que volta a estar restrito aos cerca de 30 convidados do início, a marcação na agenda de um atelier de cestaria na Quinta da Comporta faz-me sonhar com as técnicas artesanais da região, um belo encerramento da imersão na Comporta. Só que não. Afinal não há cestas, mas antes cabeças de burro em ráfia à espera de serem personalizadas por cada participante. E o artesão local do meu imaginário dá lugar a Javier Sanchez Medina, designer artesanal vindo de Madrid. A tarefa fica entregue, e bem, àquele que é reconhecido internacionalmente por criar cabeças de animais em ráfia, inspirados na iconografia espanhola, como burros e touros.
Terá a Comporta como fugir à simbiose com o que vem de fora? Ou foi e é nessa simbiose que a sua identidade se constrói? Quer gostemos ou não, para o bem ou para o mal. A Comporta, na sua base, continua igual a si própria, atualizada e amplificada para os novos tempos e seus protagonistas. As cabanas da família Espírito Santo dão lugar a hotéis e a lojas de luxo - como a Quinta da Comporta e a Fashion Clinic com um corner da Dior, no Carvalhal -, que partilham a rua com casas populares com anões e outras figuras em loiça nas entradas. Nos locais com visibilidade pública, pouco ou nada acontece. Em locais privados, acontece tudo e reúnem-se celebridades e milionários. Seja em eventos como o da Mr.Porter ou em casamentos, aniversários e festas privadas. Os mosquitos, se falassem, fariam-me o retrato mais completo e preciso da Comporta.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: CNunes@expresso.impresa.pt