O processo está em recurso na Relação de Lisboa. Neste julgamento, estão em causa o contrato de arrendamento do apartamento de Paris e contratos que o MP diz terem sido forjados com Domingos Farinho e António Costa Peixoto.
A decisão tomada pelas juízas do Tribunal da Relação de Lisboa que foi tornada pública esta tarde não é vista como surpreendente no meio judicial, mas demonstra bem como o princípio de “cada juiz, sua sentença” tem sido aplicado de forma radical no maior processo de sempre de corrupção em Portugal.
Quase três anos depois de o juiz que fez a instrução da Operação Marquês, Ivo Rosa, ter pronunciado apenas o ex-primeiro-ministro José Sócrates, o seu antigo motorista João Perna, o seu amigo Carlos Santos Silva, o banqueiro Ricardo Salgado e o ex-ministro Armando Vara (e não todos os 20 arguidos acusados), por apenas 17 de 189 crimes, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu esta quinta-feira dar razão ao recurso do Ministério Público e determinou que, afinal, boa parte da acusação produzida pela equipa do procurador Rosário Teixeira vai seguir para julgamento.
Com a exceção de Bárbara Vara e da empresa Pepelan, que ficam definitivamente livres deste processo-crime, todos os arguidos que tinham sido ilibados por Ivo Rosa voltam a entrar para a lista de réus e uma boa parte dos crimes de que estavam acusados inicialmente está de novo em cima da mesa, incluindo os três crimes de corrupção que o Ministério Público apontou a José Sócrates. O ex-primeiro-ministro está, assim, pronunciado por 22 crimes — em vez dos seis decididos por Rosa —, deixando apenas para trás nove de um total de 31 de que foi acusado em 2017.
Pronunciado em 2021 por seis crimes (três de falsificação e três de branqueamento de capitais), tal como Sócrates, o amigo Carlos Santos Silva vai responder agora por 22 crimes (em vez de 33 de que estava acusado), incluindo corrupção. Ricardo Salgado responderá por 11 (em vez de 21 de que era acusado, sendo que já foi pronunciado e condenado por três crimes de abuso de confiança em março de 2022, num julgamento autonomizado da Operação Marquês), Joaquim Barroca Rodrigues (dono do grupo Lena) por 15, José Luís Ribeiro dos Santos (ex-funcionário da Infraestruturas de Portugal) por 2, Luís Marques (Infraestruturas de Portugal) por 2, Zeinal Bava (ex-CEO da Portugal Telecom) por três e Henrique Granadeiro (ex-chairman da Portugal Telecom) por cinco.
Além disso, voltam também a ser arguidos os empresários ligados ao resort de luxo Vale do Lobo, no Algarve, e o empresário Hélder Bataglia, antigo homem-forte do Grupo Espírito Santo em Angola, pelo seu papel na lavagem de dinheiro que circulou, alegadamente, entre Ricardo Salgado e Sócrates. Bataglia protagonizou um dos momentos altos da investigação, quando admitiu aos procuradores que o ex-presidente do BES lhe pediu para fazer chegar 12 milhões de euros ao amigo do antigo primeiro-ministro.
Não é preciso prova direta
As três juízas que assinam o acórdão do Tribunal da Relação concluíram que o Ministério Público tem razão em quase tudo. Na parte que diz respeito ao BES e sobre os alegados subornos de Ricardo Salgado a Sócrates, por exemplo, acreditam que os indícios são mais do que suficientes. “Obviamente que não vamos encontrar prova direta dos factos – não se percebe o espanto do Sr. Juiz de instrução quando diz que nada consta nos extratos bancários do arguido Sócrates. Os indícios vêm da análise de outras provas.”
Para as magistradas, embora as testemunhas ouvidas no processo tenham dito que Sócrates não interferiu com a decisão da CGD na forma como o banco público votou contra a OPA da Sonae sobre a Portugal Telecom em 2007, a favor dos interesses do BES, e apesar de o voto não ter sido determinante para o seu chumbo, esse facto acaba por ser “indiferente, dado que o arguido concordou com a ‘missão’ que lhe foi pedida, tendo recebido por isso.” Seguindo esse raciocínio, dizem, “todos os meios possíveis de ‘contaminação’ da votação tinham que estar operacionais, pressupondo que, na falha de um deles, funcionaria outro.”
O coletivo de juízas chama a atenção várias vezes ao longo do acórdão de que a visão que Ivo Rosa tem sobre a prova não é correta. No caso do contrato que o grupo Lena assinou em Caracas, durante a presidência de Hugo Chávez, para o projeto de Gran Misión Vivienda Venezuela, tendo alegadamente subornado José Sócrates para conseguir o negócio, as magistradas sublinham sobre a análise feita por Ivo Rosa: “Parece esquecer-se, tal como já referimos, que não haverá testemunha alguma (pelo menos não houve até esta data) que venha relatar e confirmar, de forma direta, os factos que constam da acusação. Não haverá, igualmente, nenhum documento de onde resulte essa assunção dos factos.”
No entendimento das juízas, Rosa não deveria ter afastado a existência de indícios de corrupção fora da visão restritiva que aplicou (de apenas considerar prova direta), apesar de os pagamentos recebidos por Carlos Santos Silva, em nome de José Sócrates e relativos ao negócio da Venezuela, terem acontecido antes do início do projeto Gran Misión Vivienda, porque “este processo nada tem de linear”.
O acórdão cita o recurso apresentado pelo procurador Rosário Teixeira, para demonstrar que concorda com o Ministério Público: “O arguido José Sócrates exercia o cargo de PM, presidia ao governo. Não precisava de chegar ao ponto de dar ordens diretas, bastava-lhe dar a conhecer a sua posição, manifestar o seu entendimento acerca de determinado assunto”.
Sócrates anunciou que vai recorrer para “um tribunal superior”, para que “outros olhos possam olhar para a decisão das juízas”. E assumiu que esta foi uma “derrota jurídica”.
Nota: este artigo foi corrigido às 11h00 de 26 de janeiro de 2024 para incluir a informação de que Bárbara Vara e a empresa Pepelan, acusados pelo Ministério Público, ficaram de fora da pronúncia agora decidida pelo Tribunal da Relação de Lisboa e não vão a julgamento.