Justiça

Uns homens abordaram “Maria”, gritaram “polícia” e tiraram-lhe o saco: lá dentro tinha cocaína. Era uma cilada do namorado, acabou presa

Uns homens abordaram “Maria”, gritaram “polícia” e tiraram-lhe o saco: lá dentro tinha cocaína. Era uma cilada do namorado, acabou presa
José Fernandes

Jovem foi acusada pelo Ministério Público por tráfico de droga e esteve presa durante meses. Foi libertada e inocentada antes do arranque do julgamento. Agora, vai exigir uma indemnização ao Estado português

Uns homens abordaram “Maria”, gritaram “polícia” e tiraram-lhe o saco: lá dentro tinha cocaína. Era uma cilada do namorado, acabou presa

Rui Gustavo

Jornalista

‘Maria’ passou seis meses e meio presa por um crime que não cometeu, concluiu o juiz Luís Ribeiro, acabando em junho com o pesadelo desta mulher de 24 anos que pretende agora processar o Estado. “Fui vítima de uma cilada do meu namorado e de um erro grosseiro de uma juíza e de uma procuradora, que não quiseram saber da verdade e só me fizeram perguntas sobre a minha nacionalidade. Não quero acreditar que houve xenofobia, mas se são profissionais do ramo deviam saber o que é um traficante ou um correio de droga. E eu não sou e nunca fui isso.”

‘Maria’ nasceu num país do Leste da Europa, mas vive em Portugal desde os nove anos. Foi detida pela PJ em dezembro de 2022 com 885,2 gramas de cocaína num saco “verde com decorações de Natal”. Foi levantá-lo ao Hotel Alicante, no centro de Lisboa, a pedido do então namorado, que vivia na Suíça. “Já me tinha mandado outras coisas, presentes, encomendas, é uma coisa normal entre emigrantes, e eu confiei. Afinal, namorávamos há seis anos.”

O saco com o presente envenenado foi-lhe entregue por Demetrius, um ourives brasileiro que chegara ao aeroporto de Lisboa um dia antes — a 14 de dezembro — com a droga escondida no organismo. A PJ esperava-o e deteve-o, e ele decidiu colaborar: disse-lhes o nome do contacto a quem tinha de entregar a cocaí­na: ‘Maria’. “O meu namorado disse-me para ir buscar a encomenda ao hotel, mas não me disse quem a tinha. Só lá estava esse senhor, que veio ter comigo e mostrou-me uma gravação de voz que tinha no telemóvel: ‘Entregas à minha namorada. É uma loura.’ Era a voz do Sady, o meu namorado, e eu acreditei.”

Saíram do hotel, entraram na pastelaria Primo Basílio e beberam um café. “Eu paguei, porque ele disse que não tinha euros porque tinha acabado de aterrar, e assim que saí fui abordada por uns homens que disseram ‘polícia’ e me tiraram o saco. Até pensei que eram ladrões. Um deles perguntou-me se sabia o que estava no saco e eu disse que não. Era cocaína. Eu não queria acreditar. Deixaram-me mandar uma mensagem ao meu namorado e eu perguntei-lhe como me podia ter envolvido naquilo. Ele disse que também tinha sido enganado e prometeu-me que ia resolver tudo.” Esta troca de mensagens no Instagram foi, segundo o juiz de instrução Luís Ribeiro, “determinante” para a libertar. Mas não foi tida em conta no primeiro interrogatório a que ‘Maria’ foi sujeita, para “pasmo” posterior do juiz que a haveria de libertar.

‘Maria’ e Sady tinham-se conhecido há mais de cinco anos num desfile de moda no centro do país. “Começámos quase imediatamente a namorar. Mas ele jogava futebol e passados quatro ou cinco meses foi jogar para a Suíça. Quando vinha a Portugal, ficava na casa dos meus pais. Passou a fazer parte da família. Depois de eu ter sido presa não voltou a falar comigo e nunca foi capaz de dizer alguma coisa aos meus pais.” As suspeitas relativas a Sady — há escutas em que combina a entrega da droga — estão a ser investigadas num processo à parte. O suspeito nunca chegou a ser detido pela polícia.

Ela aceitou imediatamente colaborar com a polícia e no mesmo dia foi entregar a droga a um terceiro destinatário, Mamadu C., que a esperava no McDonald’s do Saldanha. O homem recebeu o saco com as 95 embalagens de cocaína e foi imediatamente detido pela polícia. Tal como ‘Maria’, clamou sempre por inocência e garantiu que não sabia que tinha aceitado receber uma encomenda de droga.

‘Maria’, Mamadu e Demetrius foram presos e acusados pelo Ministério Público de tráfico de droga. “Eu nunca tinha estado numa esquadra da polícia e de repente estava a dormir ao lado de uma mulher que tinha matado o filho. Pensei que o assunto se ia resolver no fim de semana, depois pensei que iria ser depois do Natal e depois percebi que ia demorar.”

A defesa da estudante pediu a instrução do processo e só aí a história mudou. O juiz Luís Ribeiro considerou a questão a decidir “simples”: “A arguida, quando foi buscar a encomenda, sabia ou não que a mesma tinha produto estupefaciente?” Para o juiz “não” se pode “partir do pressuposto de que sempre que alguém vai buscar algo a pedido de um terceiro sabe efetivamente o conteúdo do que lhe foi pedido buscar”. “Tem que haver um plus e este plus não existe neste processo”, sustenta. O juiz interrogou longamente a suspeita, notou que a própria PJ admitia que ‘Maria’ seria uma “mera estudante” que “não” estava a par do que se passava, e decidiu libertá-la nos dias seguintes ao interrogatório. “A arguida não se encaixa no perfil habitual nem parece ter qualquer tipo de necessidade, qualquer que seja, para se envolver neste tipo de factualidade, face à disponibilidade financeira que tem da parte dos pais, do seu relacionamento familiar e da sua frequência universitária.”

Maria é um nome fictício porque na escola onde estuda ninguém sabe o que lhe aconteceu. “Disse aos meus colegas e professores que tive de ir ao país onde nasci e eles acreditaram. Os meus pais acreditaram sempre em mim e não me permiti ir abaixo. Na cadeia vi motins, colchões a arder, mas nunca ninguém me maltratou ou faltou ao respeito. Passei o tempo todo a desenhar para as minhas colegas. São mulheres que não têm nada e poderem ter um desenho do rato Mickey para dar aos filhos era tudo para elas.”

Demetrius e Mamadu foram julgados no mês passado. O correio de droga apanhou quatro anos de prisão e o homem que recebeu a droga acabou absolvido. O tribunal considerou que também ele não sabia que era droga.

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